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Kurt Cobain morreu há 30 anos. O ícone pop feminista que a Gen Z está a descobrir

O guitarrista e vocalista dos Nirvana saiu de cena há três décadas, mas deixou um legado que vai muito para lá das canções. A postura, a visão do mundo e a compreensão do feminismo, por exemplo, fazem de Kurt Cobain um role model para a Geração Z. Sim, mesmo 30 anos depois.

Foto: Getty Images
05 de abril de 2024 às 07:00 Diego Armés

Seattle, 8 de abril de 1994. O eletricista Gary Smith prepara-se para instalar um sistema de segurança numa mansão no bairro de Denny-Blaine quando se depara com um corpo estendido no chão da garagem. Espreita. Percebe que se trata do proprietário da casa, Kurt Cobain, guitarrista e vocalista dos Nirvana. Presume que esteja a dormir. O histórico de álcool e sobretudo de drogas de Cobain justificaria qualquer sesta, a qualquer hora e em qualquer parte. Smith, o eletricista, nota entretanto que há um pouco de sangue saído da orelha de Kurt. Olha com mais atenção, percebe que existe uma espingarda ao lado daquele corpo, apontando vagamente para o seu rosto inanimado. As autoridades hão de esclarecer: a espingarda é uma Remington. E Kurt Cobain não está a dormir. Na verdade, jaz morto naquele chão há três dias, concluirá a peritagem forense. Num vaso, ali perto do corpo, há um papel espetado na terra.

Há qualquer coisa de sacrificial na morte de Kurt Cobain, aos 27 anos. Como numa encenação ritualística, anunciou o próprio fim sem o denunciar, com pequenos enigmas mais ou menos explícitos - nos atos, nas conversas ou nas letras que escrevia; depois, desapareceu da vista de todos, refugiou-se num esconderijo; quando o encontraram, estava morto havia três dias - as autoridades determinaram a data da morte do vocalista dos Nirvana: 5 de abril de 1994. Faz hoje 30 anos. Três dias antes de lhe encontrarem o corpo, Cobain escrevera, numa última mensagem para o mundo, ou para quem o quisesse ler ou ouvir (e o frontman e compositor dos Nirvana sabia falar para o mundo, por mais que jurasse detestar a fama), uma carta de despedida - ah, o papel espetado no vaso - que terminava com uma citação de uma canção de Neil Young, My my, hey hey: "It’s better to burn out than to fade away", que é como quem diz "mais vale sair com estrondo do que ir-se apagando devagarinho".

Foi precisamente isso que fez Kurt Cobain, saiu com um grande estrondo. Embora o músico tenha escolhido o recato e a reclusão para pôr fim à própria vida, o aparato, o reboliço e o circo mediático que se seguiram às notícias da sua morte transformaram de imediato o guru do grunge num símbolo geracional. Cobain, que afirmou várias vezes não lidar bem com a fama nem com o estatuto de celebridade, soube gerir o tal estrondo final, garantindo que a sua própria tragédia não seria em vão e que, pelo contrário, deixaria um legado substancial e com significado. Muito mais do que apenas uma estrela rock - perfil com que, aliás, não se identificava -, o líder dos Nirvana transformou-se, primeiro, no líder de um momento no tempo e, mais tarde, após a morte estrondosa, numa voz transversal a várias gerações posteriores. Hoje em dia, chama-se "ícone" e "icónico" a qualquer coisa, desde sapatos a pratos de cozinha pós-moderna, pelo que a palavra se foi desgastando, mas, no caso de Cobain, ela pode ser aplicada com toda a propriedade: é um ícone.

A história de Kurt Cobain e dos Nirvana já foi contada muitas vezes. Hoje, que se assinala o 30.º aniversário da morte de Kurt, concentremo-nos no seu legado, que continua a ser descoberto pelas gerações que se lhe seguiram, que o veem como apaixonante. Podíamos comparar a herança dos Nirvana com a dos Beatles, mas seria injusto, porque não estamos a falar da mesma coisa. Se os Beatles mudaram a música e influenciaram muitos dos que surgiram nas décadas seguintes - Nirvana incluídos, já que Kurt considerava o quarteto britânico como uma das suas principais influências ("quando era pequeno, praticamente só ouvia Beatles", disse numa entrevista de 1993 a Jon Savage) -, aquilo que, de Cobain e da banda de Seattle, perdura no tempo é muito mais do que somente a música: é uma maneira de estar no mundo e na vida, feita de inconformismo cool, de autocrítica, de consciência social, de uma certa postura anti-sistema e de uma noção de causas que hoje continuam a ser motivo de debate e fonte de discórdia.

Diga-se, em abono daquela geração, uma geração cuja infância foi vivida no apogeu do libertarismo hippie, que não era apenas Kurt Cobain e os Nirvana que tinham uma compreensão e uma atitude progressistas no início dos anos 90. As causas feministas, as questões raciais ou ainda a luta LGBT (na época, não havia exatamente uma sigla) eram encaradas com naturalidade, e a igualdade de direitos e de liberdades eram vistas como uma saudável inevitabilidade do progresso cívico. O mundo estava a ficar mais evoluído e mais inclusivo, e isso era apenas bom. Infelizmente, depois passou tempo, outros seres humanos surgiram e, muito resumidamente, as coisas parecem ter andado para trás, até chegarmos a este estranho tempo em que coisas tão simples como direitos iguais para todos parece ser uma exigência descabida só porque uma parte desses "todos" é diferente, por exemplo. E "diferente" pode significar simplesmente ser mulher.

O apelo de Kurt Cobain para as gerações mais jovens vai-se conservando e até crescendo, década após década. Em parte, esse apelo pode residir no facto de ter ficado cristalizado no tempo com aqueles 27 anos eternos. Mas não pode ser só isso, porque há outros que o tempo e a história decidiram cristalizar com a mesma idade no infame Clube dos 27 e cujo impacto cultural não é sequer comparável com a lenda do grunge. Essa parte, a dos 27 anos, é a que diz respeito ao mito, faz parte do folclore. O que tem vindo a revelar-se precioso na descoberta de Cobain pelas gerações seguintes é a tal postura no mundo e na vida, como se fosse um ser cool e à frente do seu tempo, quase etéreo. Um ícone que, à sua maneira e sem fazer das causas bandeiras fajutas, soube chamar a atenção, por exemplo, para os problemas cada vez mais recorrentes de saúde mental. Um ícone que conseguiu, por ser o exemplo oposto, alertar para o flagelo do consumo de drogas duras e para o abuso de substâncias, em geral. Um ícone que fez da palavra "empatia" - que usava recorrentemente em entrevistas e que incluía em diversas expressões - a raiz fundamental do seu discurso, como se fosse um mantra. E sobretudo um ícone que, sendo uma estrela rock à escala planetária, não fazia gala em organizar uma tabela com as suas conquistas amorosas ou com as mulheres com quem dormia. Pelo contrário, a sua postura em relação às mulheres e à própria mulher, Courtney Love, sempre foi empática, precisamente.

Como acontece com a palavra "ícone", também a empatia se banalizou com o uso inapropriado, ficou desgastada pelo desmazelo de quem a diz sem pensar no que significa. No caso de Kurt Cobain, todavia, o uso do termo é absolutamente legítimo. Na agora célebre entrevista de 1993 com Jon Savage - extraída de uma cassete que só foi recuperada muitos anos depois da gravação -, Cobain fala abertamente acerca das questões de género e da discriminação da mulher. "Eu próprio achava que era gay", conta sem pruridos numa passagem em que fala sobre a alienação em relação aos colegas de escola nos tempos que se seguiram à separação dos pais. Os colegas começaram a pensar que Cobain era homossexual, e o próprio não contrariou essa ideia. Pelo contrário, aceitou-a com naturalidade. Mais tarde, contudo, entendeu que afinal não era - e que seria tão normal ser como não ser. Cobain acrescenta ainda que, "embora nunca tenha experimentado [relações homossexuais]", tinha um amigo gay com quem a sua mãe não o deixava sair nem conviver. "Foi devastador, porque finalmente eu tinha encontrado um amigo masculino que eu realmente podia abraçar e a quem podia verdadeiramente mostrar afeto", lamenta.

Este tipo de mentalidade e de abertura estendia-se ao universo feminino e ao entendimento que, desde muito cedo, teve das mulheres e do que enfrentavam no dia a dia. "[Nessa altura] acabei por me dar muito com raparigas. E senti sempre que não eram tratadas com respeito. Especialmente porque as mulheres são completamente oprimidas", começa por explicar. Depois, detalha e concretiza: "Por exemplo, expressões como ‘puta’ ou ‘cabra’ eram de uso absolutamente comum. Embora eu sempre tivesse ouvido muito Aerosmith e Led Zeppelin, e apesar de ter realmente gostado de muitas das melodias que escreveram, demorei alguns anos até compreender que [as canções dessas bandas] continham muito sexismo."

De novo: aquela entrevista foi dada em 1993. O último álbum de originais dos Nirvana saiu também em 1993. Kurt Cobain morreu pouco depois, em abril 1994, faz 30 anos. E o ícone prevalece, continuando a ser apreciado e a servir de inspiração para muitos, mesmo para aqueles que nasceram já bem depois do fim dos Nirvana e do seu líder. Recentemente, o The Guardian publicou um extenso artigo em que dava conta e analisava a maneira como a Gen Z se deixou fascinar pelo homem que encantou os anos 90. Os principais motivos elencados pelos mais novos eram, claro, a célebre teenage angst (que "has paid off well", como o próprio escreveu e cantou em Serve the Servants, num assombroso assomo de honestidade), mas acima de tudo a sensibilidade de Kurt. E é extraordinário que um jovem de há 30 anos se apresente hoje como modelo de sensibilidade numa era em que o sexismo e a homofobia parecem sair de debaixo das pedras para fazer a civilização regredir. Kurt Cobain faz-nos falta.

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