João Botelho: “o cinema tem de inquietar, perturbar ou agitar”
Depois de recuperar Os Maias e O Livro do Desassossego, o cineasta volta a pegar numa obra literária portuguesa para adaptá-la ao grande ecrã. Quer mostrar o que fizemos, criar filmes que nos façam pensar, quer devolver-nos a vontade de ler. Hoje estreia Peregrinação, a sua visão sobre as aventuras vividas no Oriente por Fernão Mendes Pinto.

"Interessa-me falar sobre Portugal. Temos acontecimentos importantes e criadores geniais, temos Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro – são estas as histórias que quero trazer ao cinema." Num pequeno miradouro de Lisboa, embalados pela conversa e pelo sol quente de outono, falamos da vida surpreendente do realizador, de uma infância cinzenta e dura, marcada pelo frio do Norte e pelo silêncio infligido pelo Estado Novo. Conta que tinha família no Porto e que por isso fugiu para Coimbra, atrás da liberdade. Foi nessa altura que começou a refugiar-se nas salas de cinema, à noite, altura em que via tudo, "os filmes bons e maus". Estudou engenharia, mas fez-se cinéfilo, aprendeu a admirar os planos dos grandes cineastas europeus. "O Hitchcock é o maior pintor abstracionista do século XX", atira num sorriso, em tom de provocação.
Hoje estreia o seu novo filme, Peregrinação, que mantém intacta a narrativa de Fernão Mendes Pinto. "Já pensou na grandeza deste País? Saímos daqui em cascas de noz para desbravar o mundo, conhecer outras pessoas, outras culturas, outros modos de viver."

Em março de 1537, época áurea dos Descobrimentos portugueses, Fernão Mendes Pinto quis ir atrás da sua sorte e saltou para um barco que o levaria até à Índia. Viveu durante 21 anos no Oriente – foi peregrino e soldado, traficante e escravo, foi vendido e preso. Depois escreveu as suas histórias oníricas nas páginas de Peregrinação,que Botelho diz ser "um extraordinário livro de viagens, numa escrita hábil e fulgurante, carnal e violenta, terra-celeste".
"A Peregrinação é um filme quase coletivo, porque exigiu o trabalho de muitas pessoas e muitos elementos, apesar de ter um fio narrativo único. O modo de filmar e o plano é meu, mas os atores ajudaram-me imenso a construir os personagens. Os meus dois assistentes foram maravilhosos, encontraram cá os figurantes chineses e japoneses que precisava. O cenarista é um grande arquiteto de Coimbra e o guarda-roupa também veio de Espanha, teve de ser pensado ao pormenor." Confessa que foi o filme mais difícil de produzir: esteve com quatro pessoas durante sete semanas no Oriente. Tinha de filmar a muralha da China sem turistas, foi à Malásia, a Quioto e a Goa.
Manteve o texto original e inspirou-se nas suas grandes referências para o adaptar ao ecrã. "Fui vampiro quando fiz este filme. Roubei a montagem de atrações do Serguei Eisenstein, o ascetismo do Ford e a abstração do Hitchcock, que realizava em camadas até chegar à abstração." O filme vive de paisagens exóticas, narra histórias do princípio ao fim e é preenchido com interpretações das canções de Fausto, retiradas do álbum Por Este Rio Acima.

Quando adaptou Os Maias ao cinema as vendas da obra dispararam e as escolas organizaram projeções do filme. Diz que A Peregrinação são histórias esquecidas, mas espera que voltemos a lê-las, que o filme nos desperte essa vontade. Quer contrariar a tendência do cinema de agora e o culto do entretenimento que não obriga a pensar. "As pessoas preferem a piada fácil, o vídeo viral, o filme que mostra sexo ou violência. Pode ser culpa dos reality shows, mas sinto que há um nivelamento por baixo." Preocupa-o que o mau gosto esteja a minar todas as áreas, principalmente a da cultura.
"O cinema transformou-se num produto de consumo rápido. É entretenimento puro, um divertimento como o circo, o que não tem mal nenhum, mas acaba por ser dominante – as grandes produções norte-americanas ocupam as salas e esmagam os filmes europeus. Um filme razoável tem de inquietar, perturbar ou agitar." Botelho diz que os filmes hoje são consumidos como quem come e bebe, não como quem pensa, compara com os tempos em que viajava à boleia pela Europa, altura em que trabalhava para juntar dinheiro que depois gastava a devorar filmes na Cinemateca de Paris. "Quando tinha 30 anos o cinema europeu tinha mais importância e expressão que as produções de Hollywood. Hoje, os filmes norte-americanos abafam o cinema independente e as histórias de super-heróis fazem parte de uma indústria forte, são os blockbusters que canibalizam outras narrativas que têm imensa qualidade mas não são divulgadas." Hoje é isto o que mais o perturba no cinema. "Os filmes agora são todos iguais, têm milhares de planos, mas sei sempre o plano que vem a seguir." É esta previsibilidade da repetição que o aborrece. "Gosto do John Ford, do cinema duro e asceta. Vou ver clássicos à Cinemateca e a ópera ainda me entusiasma."
Nos seus projetos de futuro está voltar às origens para falar de Portugal, dos grandes artistas, não só dos escritores. Interessa-lhe Amadeo de Souza-Cardoso, imagina como seria adaptá-lo ao cinema. "O cinema é manipulação – é tudo falso, ninguém morre, ninguém tem sexo, é uma montagem, é artifício do guarda-roupa ao cenário. A única verdade é a emoção, a lágrima que escorre, o que o filme nos faz sentir. E a verdade da música, do texto, da interpretação."

O que falta fazer ao cineasta que parece que já fez tudo? "Tanta coisa! O filme é um ponto de vista, um modo de contar. Eu dou-lhe a mesma história a si e faz um filme completamente diferente. Um livro é aberto à interpretação, é uma viagem, enquanto o cinema concretiza – o autor escreve sobre o verde do vestido e eu imagino-o, mas no filme eu mostro-o, é o meu verde, é o que é."


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