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Histórias de Amor Moderno: “Tinha acontecido qualquer coisa dentro de nós, que nunca entendemos bem nem procurámos entender”

“Naquelas idades, não somos apaixonados nem amamos. O máximo que conseguimos fazer é gostar muito. E, na verdade, chega perfeitamente e é honesto.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Filme "Antes do Amanhecer", 1995
Filme "Antes do Amanhecer", 1995 Foto: IMDB
25 de outubro de 2025 às 08:00 Maria Olívia Sebastião

Nesse verão distante do fim da minha adolescência, fui com os meus pais e os pais do Manel para um parque de campismo na Serra da Estrela. Passámos lá duas semanas. Eles ficaram numa daquelas cabanas com designações étnicas, que custam tão caro como os quartos de hotel de 5 estrelas nas localidades mais próximas; eu mantive-me independente e montei a minha pequena tenda nas proximidades, com a devida licença dos gestores do parque.

Não será muito habitual uma rapariga de 18 anos fazer férias de verão com os pais e um casal de amigos dos pais, daqueles amigos que desde sempre associamos à família. Acontece que eu me encontrava num ano de transição. Terminara o secundário, ia começar a faculdade. Quis fazer uma espécie de férias de despedida, antecipando que, daí em diante, passaria a ter uma vida mais autónoma, estaria mais ausente das rotinas e eventos do núcleo familiar. Além disso, seria uma oportunidade para relaxar, para me desligar um bocadinho do mundo, para refletir sobre o que tinha sido a minha vida até ali e aquilo que esperava do futuro.

A meio da segunda semana no parque, a minha mãe chamou-me, “preciso de falar contigo”. O tom um pouco ansioso com que me abordou deixou-me inquieta, “calma, Catarina, está tudo bem, preciso só de te perguntar uma coisa”. O Manel vinha ter connosco. Tivera um problema qualquer na viagem que estava a fazer, a deambular pela Ibéria, entre Portugal e Espanha - possivelmente, acabara-se-lhe o dinheiro, mas não perguntei por detalhes -, pelo que decidira juntar-se a nós e aos pais. “Ok”, disse eu, sem perceber qual poderia ser o problema. “O problema, Catarina, é que não há lugar para ele. O nosso yurt não comporta mais ninguém, como podes ver.” Deixei-me ficar calada e esperar pelo desfecho. “Tu, por outro lado, tens espaço na tua tenda.

Resumindo: para resolver a situação, a minha mãe pedia-me que dormisse na mesma tenda que o meu amigo de infância, o que era absolutamente normal, mas que tivéssemos ambos juízo, porque éramos “praticamente primos sem ser de sangue” - as palavras são dela - e, por conseguinte, não devia acontecer entre nós nada que não fosse do âmbito estrito da amizade, embora ela soubesse perfeitamente que pessoas “nessa idade” (os meus 18, os 19 do Manel) têm muitos desejos e energias, ficando expostas ao desvario e ao erro. Quando acabou o seu discurso, misto de pedido com aviso de cautela, não consegui conter o riso, dei uma gargalhada. Divertiu-me de verdade. “Ó mãe, mas que parvoíce! Eu e o Manel somos amigos desde que me conheço, que disparate. É claro que sim, dormimos na mesma tenda.”

A notícia da vinda do Manel, neste contexto, em família, fez-me viajar pelas memórias felizes da infância. As viagens que fazíamos, todos juntos, os acampamentos selvagens com os nossos pais na Foz do Arelho, as excursões pelo país em carros ilegalmente apinhados, só para ir descobrir um restaurante de que algum dos nossos pais tinha ouvido falar algures, os dias inteiros que passávamos, para nossa enorme felicidade, no Ondaparque ou nas piscinas do Vimeiro. Até um certo momento das nossas vidas, em que, de certo modo, tanto ele como eu nos emancipámos e estabelecemos os nossos próprios grupos de amigos, eu e o Manel fizemos sempre tudo juntos.

Numa dessas excursões, viajámos até ao Minho, fomos conhecer Ponte de Lima, Arcos de Valdevez e outras localidades na zona. Os nossos pais alugaram uma pequena casa de aldeia, lindíssima, empoleirada numa encosta, com um terraço à entrada onde as parreiras trepavam pelas latadas, fazendo uma sombra que até hoje não vi repetida. Naquele terraço, as parras verdes e os cachos de uva branca dependurados filtravam a luz do sol, dando-lhe um tom que não voltei a ver, em sítio algum: verde-amarelado, cor de limão velho, e à medida que o sol se ia afastando, o amarelo ia passando a castanho, mas um castanho suave, luminoso.

Durante esses dias, entre passeios e almoços demorados debaixo das latadas, eu e o Manel fomos experimentando o tédio da puberdade. Acredito que cada idade tem um tipo distinto de tédio, até se chegar à idade em que o tédio deixa de ser uma consequência natural de uma existência dependente de vários fatores e passa a ser um luxo desejado.

Na infância, a obrigação da sesta causava-me enfado, assim como as visitas a familiares mais distantes e mais velhos, cujas casas cheiravam a coisas guardadas. Durante essas visitas, sentava-me no meu canto e ficava calada, à espera que o tempo passasse. Quando o pai ou a mãe diziam “bom, temos de ir andando”, o meu espírito despertava do seu torpor distante, “anda, Catarina, vai vestir o casaco”, e tornava-se impaciente. A impaciência agravava-se com o arrastar interminável das despedidas, “mas já vão?”, “comam mais qualquer coisa, há tanta comida na mesa”, “olha, tinha aqui uma coisa para te mostrar e, com a conversa, passou-me”. O tédio tinha, então, uma conotação para mim quase maligna: era o sentimento que me invadia quando já não suportava mais nada a não ser o passar do tempo, a pulsação e a respiração, tudo ingredientes fundamentais à minha sobrevivência.

Com a chegada da puberdade, o enfado passou a chegar-me de múltiplas formas e surpreendentes fontes. O simples desejo de fazer outra coisa que não exatamente aquilo que estivesse a fazer era motivo suficiente para que o fastio se apoderasse de mim. Como o Manel, nessas férias, era a minha sintonia, partilhámos horas e horas de aborrecimento, que íamos resolvendo ou tentando superar com soluções não muito criativas. Ou seja, vendo televisão. Nessa casa, havia um leitor de DVD e alguns filmes que fomos experimentando ver. Mesmo os maus filmes eram certamente mais apelativos e entretidos do que mais uma tarde a ver os pais jogar às cartas ou ao dominó sobre a toalha de plástico com pequenos galos de Barcelos e corações vermelhos, enquanto bebiam vinho verde de produtores locais e qualidade duvidosa.

Numa dessas tardes, escolhemos “Antes do Amanhecer”. Nenhum de nós sabia que filme era. Começávamos a ver, parecia moderadamente chato, mas fomos deixando prosseguir. As opções não eram muitas, era preciso gerir com parcimónia a oferta disponível. Com o desenrolar da história e o crescendo inquestionável daquela paixão por concretizar, fomo-nos sentindo mais próximos, eu e o Manel. Penso que tenha sido isso. E então demos um beijo - um beijo a sério, profundo, abraçado, não um beijinho de criança. Foi o meu primeiro beijo.

Depois desse beijo, sentimos muita vergonha e mal falámos durante os dias que restavam. Sem companhia, arrastei-me entediada até ao nosso regresso. Os nossos pais perguntavam-nos se nos tínhamos chateado. Mas não tínhamos. Tinha acontecido qualquer coisa dentro de nós, que nunca entendemos bem nem procurámos entender.

A chegada do Manel trouxe grande alegria ao acampamento. Vinha cheio de episódios para contar das suas aventuras neste e naquele lugar, personagens insólitas com quem se tinha cruzado em sítios improváveis - um atirador de sabres em Toledo, uma rapariga de Elvas que tomava medicação para tratar a dependência de sementes de girassol, um grupo de rapazes que encontrou em Cáceres cujo negócio obscuro era despejar percas do Nilo nos ribeiros afluentes do Tejo e do Guadiana - e a sua incontornável graça a contar histórias. Senti-me feliz por revê-lo, ainda mais num contexto de família, como nos velhos tempos.

À noite, na tenda, falámos bastante. Atualizámos informações acerca de um e de outro, o que andáramos a fazer nos últimos anos, em que nos afastáramos, e em especial no último ano, em que nem sequer nos tínhamos visto, uma vez que fosse. Contou-me sobre o seu primeiro ano na faculdade, todas as mudanças que sentira, os amigos que fizera, as raparigas com quem estivera. “Mas continuo solteiro”, concluiu, com o seu riso cínico mas querido. “E tu?” Sorri, “eu também”. Só que, no meu caso, nem tinha aventuras para contar.

A conversa prolongou-se. Recordámos os episódios da infância, percorremos juntos memórias partilhadas e acrescentámos passagens que tínhamos guardado só para nós. “Lembras-te do Minho?” Como esquecer o Minho? Foi o meu primeiro beijo. “O meu também.Confessou-me que gostava muito de mim. Naquelas idades, não somos apaixonados nem amamos. O máximo que conseguimos fazer é gostar muito. E, na verdade, chega perfeitamente e é honesto, concluímos. “Eu também gostava muito de ti”, confessei-lhe, e fez-se um silêncio de filme em que ficámos a olhar um para o outro.

Nessa noite, não nos beijámos. Depois do silêncio, sorrimos com cumplicidade e dormimos, cada um para seu lado. “Amanhã, vamos de bicicleta até à Torre”, disse o Manel, interrompendo o silêncio quando eu já estava quase a adormecer. E fez-me rir, por ser disparatado, mas também porque gostei da ideia. “Vai dormir, Manel”, “vamos, tens de dizer que vamos, senão ninguém dorme.” Vamos, pronto, vai dormir.

Na manhã seguinte, bem cedo, já estávamos a pé, prontos para pedalar até à Torre. Não seria uma jornada fácil. Tínhamos de descer do Vale do Rossim até Sabugueiro e, depois, fazer um caminho desesperante, quase sempre a subir até ao ponto mais alto de Portugal continental. “Grande ideia, Manel, a sério, que bom termos feito isto”, protestei sarcasticamente. Respondeu-me que me calasse e pedalasse. Levámos mais de hora e meia a chegar ao topo. A vista é esplendorosa, reconheci. E foi então que o Manel me disse por que me levou ali. “Quero propor-te uma coisa”, começou. “Sempre fomos melhores amigos, sempre gostámos muito um do outro - até para lá da amizade.” Eu ouvia-o com atenção. “Lembras-te do ‘Antes do Amanhecer’?” Acenei que sim. “Pois bem, hoje é dia 27 de julho de 2010. Se, daqui a precisamente 15 anos, continuarmos os dois solteiros, encontramo-nos aqui, neste sítio.” Fez uma pausa. “E continuamos a nossa vida juntos daí em diante.

Senti-me comovida. E arrebatada. E confusa. E surpreendida. “Eu gosto muito de ti, Catarina. Sempre gostei. E se for isto o amor?” Não contive as lágrimas silenciosas, que limpei com as costas da mão e depois disse “está bem”. “Promete.” “Prometo.”

Hoje é domingo, 27 de julho de 2025. Em casa, o meu filho mais velho faz rabiscos num papel e no chão com lápis de cor, enquanto o mais novo está sentado no meu colo. Ainda é pequenino. O meu marido está lá fora de volta do grelhador. Vêm cá alguns amigos, vamos fazer um churrasco de verão, cada casal com os seus miúdos, que hão de crescer assim, como família. Pego no telefone, abro as redes sociais. No feed do Instagram, faço scroll até que me detenho quando surge uma foto do Manel: uma selfie tirada na Torre. A legenda diz “já cheguei”.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.     

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