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Histórias de Amor Moderno: “Não sou uma mulher devassa, uma leviana que precisa de consumir homens”

“O casamento também é isto: saber fazer pactos silenciosos em nome de um bem maior e comum.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Filme "Apenas Uma Noite", 2010
Filme "Apenas Uma Noite", 2010 Foto: IMDB
22 de novembro de 2025 às 09:00 Maria Olívia Sebastião

A frase saiu-me tão fluida que as palavras pareciam líquidas, feitas de não mais que água. Só que a conversa era sobre vinho. “Quando estivemos naquela marisqueira, na Praia das Maçãs, no início do verão, provámos este vinho, não te lembras?” Estávamos à mesa, o meu irmão e a minha cunhada tinham vindo jantar connosco, os miúdos, tanto de um lado como do outro, ficaram com os avós. O Jacinto olhou-me com alguma estranheza, fez um trejeito com a cabeça, sorriu e disse “brindemos, então”.

O jantar continuou serenamente, as conversas iam e vinham, sem reservas, mas também sem exuberância. O Jacinto parecia mais calado e metido consigo mesmo do que era costume. No fim, quando o meu irmão e a Sofia saíram, assim que eu fechei a porta e me voltei para trás, sorridente, o Jacinto olhou-me seriamente e disse “eu nunca fui a uma marisqueira na Praia das Maçãs”. Virou-me as costas, retirou-se.

O Jacinto tinha razão, não foi com ele que eu fui à tal marisqueira, não foi com ele que provei aquele vinho. Terá sido com um Afonso ou um Bernardo qualquer, não sei precisar agora, teria de fazer um esforço. Não me censurem. Não me julguem. É assim que os adultos funcionam no mundo real, na vida normal. O casamento é um compromisso e um estatuto, mas é também um contrato e, como todos os contratos, é feito de concessões e de contrapartidas.

Não sou uma mulher devassa, uma leviana que precisa de consumir homens, ou uma traidora inveterada que não se aguenta quando algum homem se aproxima e se insinua. Sou apenas uma mulher normal que deixou de fugir dos próprios instintos e que se recusa a aceitar que a vida é para ser vivida em miserável contenção de desejos, aceitando insatisfações e vazios como se fossem normais e imperativos. Tenho os meus casos pontuais, sim, sempre que acho que fazem sentido, sempre que o desejo passa de matéria sonhada a plano racional. Não sou propriamente de impulsos nem dada a affairs movidos a noitadas e bebedeiras. Mas gosto do flirt. Sinto que me mantém viva, ativa e desperta, ágil no pensamento e atenta e cuidadosa com a minha imagem.

Às vezes, envolvo-me com homens. Sim, é verdade. Quando o flirt se intensifica e o caso se torna agradável, apetecível, sedutor, não me refreio. Mas essa é só metade da história. Ou pensam que eu não sei que o meu marido faz o mesmo? Que as suas viagens frequentes – embora não sejam regulares, no sentido em que não respeitam rotinas ou padrões – nem sempre são de trabalho? Eu sei e ele sabe que eu sei. E ele sabe de mim e sabe que eu sei que ele sabe. Só que o casamento também é isto: saber fazer pactos silenciosos em nome de um bem maior e comum. No nosso caso, o bem maior e comum somos nós, o casamento, os dois filhos, aquilo que possuímos porque fomos construindo e conquistando em conjunto. Somos uma equipa. Se, para que que a equipa funcione bem, é preciso ter alguns escapes, então assim seja: eu finjo que não vejo, ele finge que não quer ver, ninguém sabe, ninguém fala, ninguém questiona, ninguém mente. No fundo, estamos juntos, um com o outro, nesta farsa. Melhor: estamos juntos um pelo outro.

Chamava-se Fernando. Não, não era Afonso nem Bernardo. Fernando, lembro-me agora. Foi com ele que provei um Materramenta, um vinho açoriano muito bom. Nesse fim de tarde na Praia das Maçãs, comemos ostras e depois vieiras e depois outras iguarias, um sem fim de pequenas delícias que serviram de prelúdio a uma noite de sexo quente e maduro, sem paixão: apenas físico, prazer pelo prazer, sem compromissos.

Eu gosto quando nos ficamos pelo exercício ora egoísta, ora exibicionista, de dar e receber, mostrando o nosso melhor e exigindo em troca não menos do que o melhor, também. Gosto do sexo e gosto de iguarias, e não misturo nem um nem outras com as emoções. É tudo matéria de gosto e de degustação, puramente sensorial. Gosto, também, do exercício mental que os precede, aquele tango vai-não-vai em que não sabemos ao certo se vamos ou não. Quem perde o pé não dança mais.

Essa curta e fugaz aventura com o Fernando é memorável por uma única razão: fez-me deslizar, fez-me falhar no compromisso tácito que tenho com o Jacinto, o “don’t ask, don’t tell” que nos mantém juntos e cúmplices, sustentados num pacto de silêncio e de fingida inocência. Falhei, mas foi sem querer. Foi um honest mistake, acho eu. Ou um deslize freudiano. Seja qual for a descrição, não me parece que tenha sido grave. De qualquer forma, nem sequer denunciei nada publicamente. Só o Jacinto se apercebeu do deslize e encarou-o com a sua habitual subtileza. Há quem possa confundi-la com passividade, mas desenganem-se: ele tem a sua maneira de ser firme e digno, só não gosta de dar espetáculo.

Descrevo o episódio com o Fernando, mas poderia estar aqui a revelar detalhes mais ou menos sórdidos, às vezes cómicos, outras vezes eróticos – mas nunca, nunca românticos – sobre os tais Afonsos e Bernardos. Quase sempre há iguarias, quase sempre há sexo sem pesos na consciência, e esses dois ingredientes são, para mim, autênticos elixires de sanidade e juventude.

Não sei se com o Jacinto sucede o mesmo de cada vez que leva para o hotel uma Patrícia ou uma Tânia qualquer. Nunca falámos sobre estes assuntos um com o outro. Nunca tivemos abertura para tanto. O acordo, que nunca foi pronunciado, verbalizado, escrito ou sequer pensado, existe como se existisse a priori, antes de nós mesmos: como se houvesse uma regra anterior a nós mesmos que nos dissesse “a vida é mesmo assim”, remetendo-nos ao silêncio para evitar a indelicadeza de tocar no assunto.

A menção ao vinho e à marisqueira da Praia das Maçãs teve consequências que eu não podia prever. Na noite do jantar a quatro, no quarto, perante o silêncio amuado do Jacinto, confrontei-o com a nossa realidade: tu vais com quem queres, eu faço o mesmo – o segredo para que funcione é não contar a ninguém, não deixar que mais alguém saiba. Respirou fundo e depois atirou, enraivecido: “Mas quem é que fez essa regra?”, perguntou-me. Fiquei calada. Ele desligou o candeeiro da mesa de cabeceira, suspirou muito profundamente, à força, e obrigou-se a dormir. Não sei se conseguiu. estava agitado como um gato contrariado. Fui dormir para o sofá.

No dia seguinte, quando acordei já ele tinha saído. Não me disse nada, não mandou mensagem, não deixou recado. Liguei-lhe, precisava de saber como faríamos para ir buscar os miúdos. Atendeu e, muito brusco, disse “os miúdos já estão comigo, obrigado”. Não fiz perguntas, desliguei. Dei início ao meu dia com todas as habituais rotinas de um sábado. Preparei-me para o running matinal e saí. Tento fazer, pelo menos, cinco quilómetros em passo regular, num exercício aeróbico que, segundo dizem, é saudável e ajuda a manter as frescuras física e mental. Dei uma volta pela tapada, o dia estava húmido e abafado. Decidi voltar para casa.

Quando abri a porta, vi que o Jacinto estava sentado no sofá da sala, ladeado pelos meus dois filhos. Fiquei surpreendida, baralhada, não entendi. Disse bom dia, mas com algum receio. Fechei a porta e fui ter com eles. “Não, não, Joana, não te aproximes, por favor. Fica aí onde estás.” Além de firme e digno, o Jacinto também sabe ser cruel. “Meninos, perguntem à mãe o que é que ela fez no início do verão na Praia das Maçãs.” E eu boquiaberta, sem reação. “Perguntem-lhe se gostou do vinho.” Eu não queria acreditar. “Perguntem-lhe se eu estava com ela.”

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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