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Histórias de Amor Moderno: “Ela pegou-me docemente no queixo, com uma mão. A outra pousou-a entre as minhas pernas. E beijou-me”

“Assim que entrámos, ela abriu o porta-luvas e tirou de lá de dentro um baralho de cartas. Começou a baralhá-las e perguntou-me se eu tinha namorado.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Duas mulheres de mãos dadas numa cama partilham um momento íntimo
Duas mulheres de mãos dadas numa cama partilham um momento íntimo Foto: "Am I Ok?"
27 de setembro de 2025 às 07:56 Maria Olívia Sebastião

Eu tinha começado a andar com um rapaz dois meses antes, mas provavelmente não estava escrito nas estrelas. Ou nas cartas. Ou em lado algum, além das linhas de ilusão que ele me escrevia em cartas interminaveis, cheias de qualquer coisa que ele julgava ser poesia, mas que não era poesia. Não que eu seja entendida em poesia, ou em literatura, de um modo geral, mas o que ele escrevia parecia-me uma salgalhada pretensiosa, cheia de palavras rebuscadas, sentidos metafísicos e subtexto, considerações indecifráveis embrulhadas em metáforas e outras figuras de estilo muito mais obscuras. Tudo usado de modo ostensivo, a exibir o que tinha, “olha só, minha querida, vê bem como eu sei escrever”. 

Naquela noite, esqueci todas as analogias e ignorei até catacreses e sinestesias: fui sair e conheci a Mafalda. A Mafalda pagou-me bebidas e deu-me cigarros. Vamos chamar-lhes “cigarros”, por uma questão de conforto. As figuras de estilo da Mafalda eram as coincidências. Usava-as para tudo, com elas era capaz de justificar o universo, as suas bizarrias e a anti-matéria. A Mafalda era hospedeira de bordo na TAP e tinha uma pequena silhueta de um avião tatuada no antebraço, logo abaixo do cotovelo direito. Por coincidência, eu tinha uma tatuagem de uma andorinha debaixo do meu cotovelo direito. Ela meteu conversa comigo. 

Estávamos junto ao mar, eu sentada no pequeno muro que separava a estrada das rochas que antecediam a praia. Ela estava de pé a enrolar o seu cigarro. Fez-me perguntas, eu dei-lhe respostas, falámos como se estivéssemos num filme do Tarantino, com eloquência e arrogância, mas sem fazer muito sentido - pelo menos, no que toca à progressão da narrativa. Acho que é a isso que as pessoas chamam flirt. Se é, pois foi isso mesmo que fizemos: flirt. Só que eu não sabia. Na minha cabeça, estava só a falar com uma rapariga gira e interessante, curiosa e capaz de me despertar curiosidade. Na minha cabeça, eu gostava de rapazes e só de rapazes, embora não adorasse aquele com quem andava. 

A Mafalda ia-me trazendo vodkas nas suas mais variadas combinações, e às vezes até em estado puro, tão puro quanto a vodka comercial de um bar de praia pode ser. Ia-me lançando perguntas, eu ia-lhe dando respostas. Não sei se estavam certas, não creio que isso importasse. Pelo meio, ela ia fazendo “cigarros” que partilhava comigo e que eu ia fumando sem regras, cuidados ou contenção. 

Começámos a falar de contingência e consequência, já não sei quem é que começou a conversa. Em todo o caso, não é habitual encontrar-se alguém que se preocupa mentalmente com questões destas, com a incerteza e a possibilidade, com a compatibilidade improvável de eventos, com segmentos tão recônditos daquilo a que a mole humana distraída chama por atacado “realidade”. “A realidade é só uma possibilidade concretizada”, disse ela, ao que eu respondi que sim, “mas de uma perspetiva acidental”. A frase soou ambígua, ela pediu-me explicações, eu ri-me sem perspetiva alguma de concretizar a minha ideia, muito menos de conseguir explicá-la, e ela riu-se comigo. Achámos hilariante, porque àquela hora e depois de tudo o que fumámos, qualquer tentativa de interpretar ou definir a realidade estava simplesmente condenada a transformar-se em comédia. 

“E a coincidência?”, indagou a Mafalda. Torci os lábios, encolhi os ombros, “isso existe?” “Então não existe?” Explicou-me que sim e deu-me exemplos, justificou, ligou pontos, estabeleceu correlações e relações de causa e consequência. Falou-me do poder dos astros. Elucidou-me acerca das revelações que vêm nos números. Seduziu-me com o poder divinatório do Tarot, em particular, e dos baralhos de cartas, em geral, “porque têm números e figuras, tal como o universo, a numerologia e o Tarot”. Perguntou-me se eu queria que ela me lesse as cartas. Eram três e meia da manhã, eu disse que sim. “Vamos para o meu carro.” 

Segui-a tanto quanto pude. Pelo meio da nossa longa conversa, e depois de consumida muita vodka, dei por mim a ver o mundo afunilar, a visão a estreitar-se, a testa a ficar dormente e o corpo a descer direito ao chão, parede abaixo, sem forças para me segurar. Não me tinha de pé. Caí de joelhos e quando me senti a tombar para a frente, já antecipando uma aterragem indefesa de cara no chão, senti uma mão segurar-me a cabeça e depois uma voz sussurrando ao ouvido, “tem calma, respira fundo e fica quietinha, vou-te buscar água”. Era a Mafalda, claro. A ida ao carro dela aconteceu já um bocado depois deste episódio de fraqueza, mas esqueci-me de o contar lá atrás, então fica contado aqui. É importante registá-lo para que se perceba que eu não estava a 100%. 

Chegámos ao parque de estacionamento e ela dirigiu-se a um velho Peugeot 205 vermelho. Estava de frente para o mar, era o mais distante de todos os carros, estava lá ao fundo. Se ela decidisse esquartejar-me lá dentro, ninguém conseguiria ver nem ouvir. Felizmente, ela tinha outros planos para mim. Assim que entrámos, ela abriu o porta-luvas e tirou de lá de dentro um baralho de cartas. Começou a baralhá-las e perguntou-me se eu tinha namorado. “Não consegues ver isso nas cartas?” Ela riu-se. “Consigo. Também consigo ver de outras maneiras. Mas já lá vamos.” E então eu disse “tenho”. “Chama-se António, não gosto particularmente dele. Não me dá especial prazer. Prefiro quando estamos quietos.” 

Ela riu-se, tirou um 7 de espadas e disse, “olha, nem de propósito”. Mas depois não explicou e continuou a baralhar. Ainda hoje não sei o que significa o 7 de espadas, nem o valete de paus que saiu a seguir, nem a sequência de três duques, todos de seguida, “agora, só me saem duques”, disse eu, e ri-me, e ela olhou para mim, parou de mexer as cartas, fixou-me muito seriamente nos olhos e então calámo-nos por um momento em que eu não sabia o que fazer, não sabia sequer o que estava a acontecer ali, ou mesmo se estava, de facto a acontecer, ou se era um sonho, uma alucinação da bebedeira, um delírio. Ela então sorriu com uma pontinha de maldade e disse “tenho a certeza que, depois de todos estes duques, vão sair duas damas”. E sem demoras virou a carta seguinte, a dama de copas, e depois mais outra, e zás, sai uma dama de paus. 

“E agora?” Ela pegou-me docemente por debaixo do queixo, com uma mão. A outra pousou-a entre as minhas pernas. E beijou-me. Eu não resisti. No fim do beijo, perguntei-lhe se fizera batota com as cartas. Garantiu-me que não, “as cartas não precisam de truques, só precisam que lhes toquemos como deve ser, têm de ser bem mexidas”, e eu acho que essa expressão era só uma metáfora anunciando tudo o que aconteceria a seguir.

O Peugeot 205, estacionado no fundo do parque, era um lugar seguro para fazermos o que quiséssemos. E fizemos mesmo. Os vidros ficaram embaciados e não os abrimos sequer quando, no final, acendemos cigarros. Estava frio. Era preferível sufocar com o fumo a termos de nos vestir para suportar aquela desagradável brisa marinha. O banco de trás daquele pequeno carro foi, durante um par de horas, o sítio mais confortável do universo. E eu sei que isto é uma hipérbole desajeitada, mas foi precisamente assim que eu o senti.

Eu e a Mafalda não nos apaixonámos. Na verdade, vimo-nos poucas mais vezes na vida. Pontualmente, cruzávamo-nos no mesmo bar de praia onde nos conhecêramos. Ela falava-me bem, com carinho, dava-me um beijinho terno. A Mafalda era seis anos mais velha do que eu, tinha mundo, tinha vida. Eu era apenas uma miúda a experimentar coisas. Acho que ela guardou carinho por mim. Eu sei que guardei por ela. E esta é uma das minhas memórias mais queridas.

Quanto ao António, o namoro eventualmente terminou, mas não acabei tudo com ele logo a seguir só por causa deste episódio. Ele, aliás, nunca soube o que aconteceu. Não soube coisa absolutamente nenhuma. Nunca lhe contei e duvido que ele pudesse sequer suspeitar daquela minha aventura.

A consequência mais profunda dessa noite com a Mafalda foi o questionar das minhas preferências sexuais. Mas também rapidamente superei a situação não fazendo dela um problema: estou com quem quero, desde que goste dessa pessoa. Só não volto a estar com alguém só por estar, tal como aconteceu quando andei com o António. Fora isso, também passei a prestar atenção às cartas e aos sinais, às sequências e às coincidências. Nem tudo neste mundo é visível, lógico e racional. Há coisas que não conseguimos explicar, e ainda bem. 

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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