Ana Lua Caiano: “Tento que a minha música não diga mais nada que aquilo que é estritamente necessário."
Depois de dois EPs que a consagraram como uma das mais consistentes certezas da música portuguesa destes último anos, a música, cantora e produtora volta aos discos e aos palcos.

Há artistas assim, que surgem de repente, para abalar certezas e abrir novos caminhos. O seu segredo – ou digamos antes talento – é a capacidade de juntar a música tradicional portuguesa com uma eletrónica plena de experimentalismo, conseguindo criar melodias simples, que remetem para uma memória coletiva antiga, com recurso a coros e harmonias, mas também para a vida do quotidiano, através de sintetizadores, beat-machines e samples, trazendo a herança popular para o mundo moderno.
Embora a música seja uma paixão antiga, deu-se a conhecer há apenas dois anos, com o single Nem Mal Me Queres. Antes, ainda em criança, começou a tocar piano e mais tarde tirou um curso no Hot Clube de Portugal, enquanto concluía a licenciatura em Design de Comunicação. Algures em 2020, enquanto trabalhava em bandas sonoras, começou a coser as primeiras linhas deste inovador projeto musical, que dá tanta importância às palavas como à música que as embrulha. Isto é ainda mais notável quando se tem em conta que Ana Lua Caiano é uma "one woman show", que apenas com um sintetizador, um microfone, o sempre presente bombo e vários instrumentos de percussão, cria várias camadas sonoras em tempo real, através da sobreposição de loops. Depois de dois EPs, Cheguei Tarde a Ontem (2022) e Se Dançar é Só Depois (2023) que a consagraram como uma das mais consistentes certezas a surgir na música portuguesa nestes último anos, lança hoje o álbum de estreia Vou Ficar Neste Quadrado. Os concertos de apresentação estão marcados para os dia 5 e 11 de abril, respetivamente no Plano B, no Porto e no B.Leza, em Lisboa.


Como é que tomou a decisão de fazer esta música e apresentá-la assim, em formato one-woman-show? Nunca sentiu que poderia ser um risco?
A culpa foi da pandemia, porque antes disso sempre toquei com bandas e nunca sequer tinha pensado em ter um projeto a solo. Quando o confinamento chegou e fomos todos impedidos de estar com outras pessoas, comecei a experimentar e a produzir em casa, o que me fez perceber que, afinal, até conseguia fazer muitas coisas sozinha. Eu venho da música clássica e do jazz e não percebia nada de programas de computador, mas comecei a gostar muito dessa experimentação. Por exemplo, perceber que podia levar tudo para o microfone abriu-me muito os horizontes. E depois, na sequência disso, fiz umas experiências mais de composição, que usei num trabalho de final de curso. Mas o que realmente me fez avançar foi uma candidatura que fiz à SDB Sessions, uns concertos online organizados pelo Teatro Sá da bandeira. Uma das categorias a concurso era para artistas a solo e resolvi arriscar, apesar de ainda não ter nada em concreto. Acabei por ser selecionada e tive um mês para desenvolver uma performance sozinha. Acabou por correr muito bem e comecei por me apaixonar por esse processo de composição e pela música que daí saia.


E pelos vistos o público também se apaixonou pela sua música, como depressa se percebeu…
Sim, hoje, olhando para trás, percebo que tudo aconteceu de forma muito rápida, mas para mim pareceu-me tudo muito natural. Primeiro toquei duas ou três músicas num contexto de estúdio, sem público, depois tive um concerto num pequeno café para pouco mais de 20 pessoas, portanto nunca senti a coisa como um salto de gigante. Fui aumentando o repertório à medida que ia dando concertos.

Como é que foi a reação dessas primeiras vinte e tal pessoas que a viram ao vivo?
Foi muito engraçada, especialmente porque tinha muitos amigos e alguns familiares, que nunca tinham ouvido a minha música e ficaram muito surpreendidos. Foi uma sensação muito boa que me deu à-vontade e força para continuar neste caminho.
Já referiu a sua formação clássica, começou por tocar piano e depois tirou um curso no Hot Club. Como é que isso a influenciou ou ajudou a fazer esta música, que parece tão distante dessas bases?
A necessidade de compor já vem muito de trás. Comecei por fazer coisas muito simples, mas é um facto que essa formação clássica ajuda, porque me permite compor ao piano, caso tenha necessidade disso. Já o jazz permitiu-me ter contacto com imensas sonoridades diferentes, modos de tocar, escalas, que nunca tinha ouvido ou prestado atenção. Sinto que há muito deste vocabulário jazzístico, que pode mudar por completo a direção a uma música, nas minhas canções, embora por vezes, quando estou a compor, nem repare nisso.

Como definiria a sua música, pode-se dizer que é uma sonoridade de "inspiração tradicional", como já se escreveu algures? Como lida com estes rótulos que lhe colam?
Reconheço que a minha música é muito difícil de rotular e todos os rótulos vão ficar sempre um bocadinho aquém. Se tivesse de a definir seria de uma forma diferente, mas depois cada pessoa ouve-a de forma diferente e descobre influências em que eu nunca tinha pensado. Mas de facto a música tradicional portuguesa e os cantautores da denominada música de intervenção são algo que sempre influenciou muito o meu modo de compor, em termos melódicos, nas várias camadas de voz e harmonias que tento criar ou até no uso de instrumentos mais tradicionais. Mas depois também ouvia muitas outras coisas, que também me influenciaram, como Portishead, Laurie Anderson ou Björk. Comecei a querer perceber melhor esta outra música e participei em muitos workshops de sintetizadores ou de música concreta, que me abriram ainda mais os horizontes musicais.
Mas apesar de todas essas camadas, pode-se dizer que há sempre uma opção por se manter fiel a um formato de canção na sua música, como se aliás se constata neste disco. Concorda?
Sim, porque apesar de ouvir muitas coisas diferentes, mais ou menos complexas, na minha música gosto de me limitar ao essencial. Ou seja, é um bocadinho como o Godard dizia, que um filme deve ser como a vida mas sem as partes aborrecidas. E por isso tento que a minha música não diga mais nada que aquilo que é estritamente necessário. Daí esse formato de canção mais clássico e mais curto, que se calhar lá pelo meio tem camufladas essas influências mais experimentais.

Acredita que com este álbum criou uma sonoridade única e só sua?
Isso é sempre um bocado difícil de afirmar, mas sei que criei exatamente aquilo que gostaria de ter criado. Acima de tudo é uma música que gosto muito de fazer. Tento sempre que seja tudo muito orgânico, real e natural, sem ser demasiado pensado e nesse sentido, sim, sinto que encontrei aqui a minha zona de conforto e o meu estilo.
Como é o seu processo de criação, qual é a primeira camada a surgir?
Normalmente é a melodia, que surge através da voz e sempre de uma forma muito aleatória. Nunca vou para estúdio com o objetivo de criar uma melodia, isso para mim não funciona, infelizmente. Essas melodias normalmente surgem-me em momentos de pausa, de espera ou quando não consigo dormir, por exemplo. Depois dessa primeira parte, em que tenho várias melodias gravadas, existe uma parte mais racional vou para o estúdio e faço uma primeira base rímica para as completar. Há uma parte mais de escolha ou de depuração e só no final disto tudo é que surge finalmente a letra. Às vezes estas melodias surgem associadas a palavras, que podem até encaixar bem e acabam por espoletar o resto da canção. Ponho-me a pensar no que é que aquilo quer dizer e começo a fazer uma letra a partir daí, por cima dessa melodia já existente.

Os primeiros concertos de apresentação, como vão ser?
Vou tocar sozinha, como tenho feito desde sempre, mas se antes atuava sempre muito colada à minha mesa, agora vou começar a soltar-me um bocadinho mais. Vou também ter algumas projeções, para criar uma maior relação entre vídeo e música. E vão ainda estar algumas câmaras em palco, para mostrar o que estou a fazer, porque introduzi alguns elementos novos neste espetáculo. Acima de tudo estou muito entusiasmada, porque se trata de uma fase totalmente nova e isso é sempre estimulante.
