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Rosalia Vargas: A agitação daquela manhã de abril

O 25 de Abril marcou o início de um Portugal livre e contemporâneo. Mas do lado feminino a mudança foi ainda mais radical. Convidámos 20 mulheres de diferentes idades, profissões e visões da vida a pronunciarem-se sobre o que a Revolução trouxe de novo e de melhor para a condição feminina, como capítulos de uma história que se começou a escrever há 46 anos e que ainda tanto tem para contar. Ao longo deste mês de abril revisitamos os testemunhos publicados no artigo O Novo Mundo das Mulheres, na edição de maio de 2019.

20 de abril de 2020 às 07:00 Carolina Carvalho

"Podemos dizer que a Liberdade veio dar mais valor à vida das mulheres? Sem dúvida que sim. Ainda lembro a agitação daquela manhã de abril que nos apanhou no intervalo das aulas, em Bragança. Havia no ar uma inquietação e uma mistura de fronteiras que transgrediam em toda a linha. Nós fomos jogar cinco minutos na mesa de pingue-pongue dos rapazes ainda com medo da repreensão e os rapazes passaram a fronteira para o recreio das raparigas. Não era bem uma fronteira física, mas era a pior das linhas imaginárias que nos tolhia a vontade e marcava os lados proibidos.

Depois a escola cresceu em liberdade e o conhecimento tomou conta de todos (ainda faltam alguns, muitos, a mostrar-nos que é preciso continuar e melhorar), mas a democratização do ensino permitiu o acesso das mulheres ao conhecimento e a escolhas antes impossíveis. Mulheres na Ciência é um projeto da Ciência Viva que homenageia as mulheres portuguesas que hoje fazem ciência a par com os melhores em todo o mundo. Portugal é um dos países da Europa onde é maior a percentagem de mulheres que se dedicam à investigação e isso mostra os excelentes resultados que a ciência e a tecnologia portuguesas têm alcançado nas últimas duas décadas.

Foi longo o caminho percorrido por homens e mulheres que inspiram quem deseja dedicar a sua vida ao conhecimento, ao desenvolvimento e à inovação. Porque a ciência, no nosso Portugal de Abril, feita por mulheres e por homens, é para todos."

Rosalia Vargas, diretora do Pavilhão do Conhecimento e Presidente da Ciência Viva

Trazer a mulher para a vida na sociedade

"Para a minha geração, o 25 de Abril foi a coincidência óptima entre momento histórico e momento biográfico. Vivi a história certa na idade certa. Cresci com os projectos de mudança dessa época do ponto de vista político, cívico, social e comunicacional. E, claro, com essa grande mudança efectiva que foi trazer as mulheres para a vida na sociedade. Tirá-las do tanque de lavar roupa e da bisbilhotice de fontanário ou de patamar de escada.

No 25 de Abril, Portugal actualizou-se. As mulheres portuguesas conquistaram finalmente aquilo que as mulheres na Europa moderna haviam conseguido há muitos anos. E nisso as mulheres emigrantes tiveram um papel decisivo ao transportarem para Portugal uma experiência de actualização para as que viviam cá. Algumas personagens das novelas brasileiras também foram importantes nessa mudança.

Tal como os homens, no 25 de Abril, as mulheres conquistaram também a liberdade de expressão, de pensamento e de associação, bem como o direito à saúde, segurança social e sobretudo à educação, que assumiu particular importância. Veja-se o papel da escola pública na criação de um espaço de equidade. Como mulher, estou agradecida às mulheres e homens que contribuíram para estas conquistas com desassombro e coragem, duas qualidades que muito admiro."

Luísa Schmidt, investigadora no Instituto de Ciências Sociais, ICS-ULisboa

Viver liberdade!

"Acredito que a liberdade vem de mãos dadas com o progresso científico. Para formular novas ideias e arriscar novas perspetivas, não é suficiente conhecer o que já foi descoberto. É preciso dar liberdade à mente. Liberdade para explorar novas direções, liberdade para questionar dogmas e liberdade para expor ideias controversas sem censura, desde que fundamentadas racionalmente. É esta capacidade de complementar o raciocínio lógico com liberdade criativa que permite avançar nas fronteiras do desconhecido. Eu não sei se seria cientista se tivesse crescido com menos liberdade, mas tenho a certeza que a luta teria sido bem mais difícil."

Joana Cabral, investigadora no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho

Uma revolução para as mulheres

"Nasci nos anos 40 do século XX, vivi a adolescência nos anos 50 do mesmo século e fui médica nos anos 60 e 70. Há toda uma história para contar, não só pessoal, como a do universo das mulheres que habitavam este país, Portugal. Os portugueses sofreram duramente a I Guerra Mundial, não sofreram a II Guerra Mundial e vieram a sofrer a guerra colonial. A evolução dos hábitos e da vida das mulheres portuguesas foi condicionada a estas situações. Sem terem sofrido o tempo de guerra dos anos 40, sofreram os reflexos da ditadura que durou 48 anos. Em consequência, toda a evolução que se seguiu à guerra, com mais direitos das mulheres e mais liberdade na sociedade em geral, nas democracias, não teve consequências para as portuguesas. Durante 48 anos as mulheres portuguesas, nas zonas pobres das cidades e no campo, não chegaram sequer à modernidade. As trabalhadoras rurais a trabalharem de sol a sol, a engravidarem e a parirem como ‘Deus dava’, com alta mortalidade materna e infantil que persistiu já muito depois dos antibióticos serem comuns nas democracias europeias. Muitas mulheres, nas suas gravidezes e partos, nas doenças dos seus filhos, só viram pela primeira vez um médico no Serviço Médico à periferia depois do 25 de Abril. A honra das mulheres estava ligada à virgindade e a desonra ao adultério. Os crimes de honra eram admitidos no Código Penal. O divórcio não era permitido no casamento religioso, o qual estava generalizado. A separação não era oficial e a união de facto era considerada concubinato.

O espaço público era limitado para as mulheres que eram objecto de assédio agressivo da parte de homens, numa masculinidade muito primária, mas muito bem aceite. Dar o aspecto de ‘mulher séria’, ‘com pudor’, ‘a disfarçar as formas’ era a regra nas cidades. O acesso a profissões consideradas masculinas, como a engenharia, era limitado. Em Medicina, havia especialidades mais ‘femininas’ do que outras. Nas poucas assembleias que eram permitidas, mesmo nas associações de estudantes, poucas eram as raparigas que tomavam a palavra."

Isabel do Carmo, médica especialista em endocrinologia, diabetes e nutrição

Encontrei um país em mudança

“Estou agora em funções de gestão de topo da investigação científica e tecnológica, em Portugal, na Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Tenho assim o privilégio de contribuir para estruturar, enquadrar e dinamizar o sistema científico nacional. É um desafio entusiasmante para quem, com uma vida intensa como cientista e professora universitária, assistiu aos avanços da ciência portuguesa desde o 25 de Abril e aos fantásticos resultados do país nos vários indicadores, do número de doutores às publicações internacionais.

Encontrei um país em mudança

Não era assim em 1974. Os poucos doutores eram formados no estrangeiro. Tal como eu. No 25 de Abril eu estava, muito jovem, a iniciar o doutoramento na Alemanha, em Hamburgo. Lembro-me bem de estar no corredor da residência de estudantes, no único telefone, a tentar marcar voo para Portugal, que não consegui... Quando regressei, encontrei um país em mudança, ávido de conhecimento e de novas experiências… Um terreno fértil para a investigação!

No meu doutoramento, investiguei temas que continuaram a acompanhar-me: melhorar a conversão química da madeira, valorizar os produtos residuais nos efluentes, procurar fontes renováveis para energia e materiais. Hoje falamos da valorização da biomassa, das biorrefinarias, de economia circular, mas os princípios mantêm-se.

Uma das minhas realizações como cientista foi a de aplicar as competências adquiridas para fazer avançar as fronteiras do conhecimento para um material de grande relevância para Portugal ? a cortiça. As linhas de trabalho que desenvolvi no Centro de Estudos Florestais tiveram reconhecimento internacional e a cortiça e o sobreiro são temas hoje investigados por vários outros grupos.”

Helena Pereira, presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)

Rosalia Vargas, diretora do Pavilhão do Conhecimento e Presidente da Ciência Viva.
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Luísa Schmidt, investigadora no Instituto de Ciências Sociais, ICS-ULisboa.
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Joana Cabral, investigadora no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho.
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Isabel do Carmo, médica especialista em endocrinologia, diabetes e nutrição.
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Helena Pereira, presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
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