Feminismo de A a Ser
Sabe o que significa mansplaining? Está familiarizada com o conceito de gaslighting? Lúcia Vicente esclarece todas as dúvidas, sumarizando ainda de forma clara aquilo que o feminismo é. E o que não é. Está tudo no livro 'Feminismo de A a Ser' (Objectiva), do qual avançamos a pré-publicação de alguns excertos.

O que é o feminismo?
O feminismo nunca foi outra coisa que não a luta pela igualdade de direitos, oportunidades e deveres entre os géneros. Por mais que a palavra possa ter evoluído, por mais que a sociedade possa (ou não) ter evoluído, este movimento social, político, ideológico e filosófico, criado no século XVIII, defende a igualdade entre todas as pessoas — e não, nunca, de modo algum, a supremacia da mulher sobre o homem. Assim, ser feminista numa sociedade patriarcal é a única forma de combater activa e legitimamente um sistema troglodita que impõe a vontade do homem sobre a da mulher.
Ser feminista não é, portanto, exclusivo nem apanágio das mulheres, senão de toda e qualquer pessoa que acredite numa sociedade igualitária e democrática. Um homem que acredite que o sexo feminino deve ter os mesmos direitos e oportunidades, bem como os mesmos deveres, que o sexo masculino, é feminista. Já uma mulher que não acredite em tal forma de estar e coexistir, que creia que o sexo masculino é, com efeito, superior, de alguma forma, ao sexo feminino e que há papéis sociais bem definidos e reservados a cada um dos géneros na sociedade, é machista, um conceito que exploraremos mais à frente e que não é exclusivo dos homens.
Ser feminista é a única forma de agir contra as premissas do Estado patriarcal, ou seja, é a única forma de contribuirmos para uma sociedade verdadeiramente justa. Uma vez que o machismo e o sexismo são estruturais na nossa sociedade, não precisamos de ir muito longe nem de pensar muito para integrar a luta pela igualdade na nossa vida, mesmo nas acções e hábitos aparentemente mais banais ou comezinhos.

Ideias na linha de «os homens não choram», «cuidar de bebés é trabalho das mães», «a lida da casa é coisa de mulheres», «trabalhos manuais, como electricidade ou canalização, são coisas de homem», «um homem não dança», «as mulheres não sabem conduzir», entre tantas outras, devem ser combatidas por todos nós. Porquê? Porque são falsas. Todos sabemos que nenhuma destas actividades é, ou deve ser, exclusiva, de um ou de outro género, seja chorar, cuidar dos filhos ou dançar. A prova disso é que tanto homens quanto mulheres desenvolvem qualquer uma destas actividades com o sucesso que lhes é devido pela vontade e empenho com que se aplicam, não pela quantidade de cromossomas X com que nasceram.
É por isso imperativo lutar para alterar a mentalidade de género dominante, bem como a decorrente descriminação, e o paradigma cultural que a preconiza.
Essa luta, a do feminismo, passa por acções tão simples e importantes como: lutar contra a ideia de que as mulheres devem ser recatadas e fadas do lar, dentro de arquétipos físicos e emocionais que apenas servem as necessidades dos homens, além de serem irrealistas e perigosos para a saúde das mulheres; lutar contra a ideia de que as mulheres devem ser supermães, capazes de cuidar dos seus filhos sozinhas, ter um emprego remunerado a tempo inteiro e ainda manterem uma aparência física irrepreensível, sem o auxílio de ninguém; educar rapazes e raparigas exactamente da mesma forma, e, com os mesmos valores e a mesma convicção, encorajá-los a levarem a cabo as mesmas tarefas e a subirem a árvores, a brincarem com carrinhos e com cozinhas, aos bebés, à bola, com piões; chamar a atenção de amigos ou amigas que pratiquem o assédio verbal, tecendo comentários inapropriados sobre o corpo ou a forma de vestir dos outros, muitas vezes sem se aperceberem de que deixaram incomodado o visado dos comentários. Não é direito de ninguém interferir na vida dos outros com comentários pretensamente abonatórios ou ofensivos; incentivar todos os membros da sociedade a encararem as tarefas domésticas como uma obrigação de todos os membros do agregado familiar, independentemente do seu sexo. Este incentivo deve começar em casa, com os pais ou cuidadores, e ser continuado na escola. Cozinhar, limpar e arrumar são valências de qualquer adulto competente, independente e respeitador dos espaços comuns — não apenas das mulheres.
O que o feminismo não é

Por fim, não faz mal a ninguém relembrar o que o feminismo não é: todo o tipo de atitudes, movimentos ou políticas que não tenham como objectivo a igualdade de direitos entre os géneros. Uma mulher que aponte o sexo masculino como o inimigo da mulher não é feminista. O principal «inimigo» da igualdade de direitos e deveres entre os géneros é o patriarcado, e este não é constituído apenas por homens. Dizer-se feminista e criticar as outras mulheres que decidem ter um caminho distinto do seu — ainda que seja uma mulher feminista — não é feminismo, mas sim intransigência e desrespeito pela liberdade individual. Quando uma feminista critica outra feminista por esta ter decidido dedicar-se exclusivamente à família, isso não é feminismo. Feminismo é quando ambas lutam para que mulheres que trabalham dentro e fora de casa tenham mais direitos, nomeadamente infra-estruturas sociais de apoio à maternidade e um rendimento garantido por serem cuidadoras de outrem. Contar piadas sexistas ou utilizar linguagem depreciativa e perpetuadora de estereótipos patriarcais instituídos para descrever uma pessoa, como chamar «maria-rapaz» a uma rapariga ou «mariquinhas» ou efeminado a um rapaz, presta um mau serviço à luta. Perpetuar, consciente ou inconscientemente, o estereótipo de que uma mulher tem menos capacidades físicas e intelectuais, pelo que deve, sim, ter menos direitos, não é feminismo. Assumir-se feminista, mas não lutar pelos mesmos direitos para todas as pessoas, não é feminismo.
Não ser feminista, porque as mulheres já conquistaram os mesmos direitos que os homens, não é feminismo. Não ser feminista, porque se é pela igualdade, na convicção de que o feminismo reclama mais direitos para as mulheres do que para os homens, não é feminismo.
Assumir-se como feminista, mas acreditar que a luta feminista já está ganha e que não há mais direitos pelos quais lutar, não é feminismo.
Dicionário rápido do feminismo
Mansplaining — o homem explica
Termo pejorativo utilizado para descrever uma situação em que um homem explica um assunto a uma mulher de forma condescendente, ultraconfiante e partindo do pressuposto de que sabe mais sobre o assunto, seja ele qual for, do que a sua interlocutora.
Manspreading — sentar-se à homem
Já todos fomos confrontados com este comportamento masculino nos transportes públicos ou numa sala de espera. Quando um homem se senta com as pernas bem abertas, ocupando o espaço público de outras pessoas e sem despender a menor atenção a quem o rodeia.
Manterrupting — interrupção masculina
Quando, numa conversa, debate ou discussão, uma mulher está a falar sobre um assunto e um homem a interrompe, terminando a frase que esta dizia, ou concluindo a sua explicação, ou contrapondo imediatamente o argumento da mulher sem que esta tenha concluído a sua ideia.
Bropriating — apropriação masculina
Esta situação acontece sobretudo em ambiente laboral e pode explicar a razão para haver uma disparidade tão grande entre géneros nos quadros das empresas. Bropriating é quando uma mulher tem uma ideia que é imediatamente usurpada por um homem, ficando, por sua vez, com os louros dessa ideia. Por exemplo, numa reunião, uma mulher apresenta uma sugestão a que ninguém reage, quase como se não importasse o que diz. Um colega do sexo masculino repete exactamente a mesma ideia (umas vezes, formulada de outra maneira, outras vezes, mudando apenas a entoação) e os presentes acham uma ideia fantástica, reconhecendo-a nele e não em quem a teve originalmente. Nem os colegas nem o apropriador se preocupam com o crédito da ideia.
Gaslighting: manipulação
Esta é uma táctica que pode ser aplicada a qualquer ser humano, independentemente do seu género, mas acontece acima de tudo com mulheres, no nosso dia-a-dia e sem nos darmos conta. Gaslighting é um comportamento de manipulação psicológica, cuja finalidade é fazer a vítima duvidar do seu valor, enfraquecendo-a. Este tipo de manipulação, que aparenta ser inofensivo, tem lugar cativo em relações abusivas, sejam elas de amizade, amorosas, familiares ou até profissionais. Esta é uma das ferramentas mais utilizadas pelo patriarcado para semear a dúvida relativamente às competências de uma mulher, em casa ou no local de trabalho, e dela são exemplo expressões como as seguintes:
- Não achas que estás a exagerar?
- Onde é que está o teu sentido de humor?
- És mesmo sensível. Não se te pode dizer nada!
- Estás louca, só pode!
- Porque é que tens de ser sempre assim?
Perante estas expressões, frequentemente relacionadas com sentimentos gerados por determinada situação, o visado começa a duvidar de si mesmo, a sentir-se menorizado e a pôr em causa os próprios sentimentos. A longo prazo, o gaslighting provoca baixa auto-estima, submissão sentimental e sentimentos depressivos, podendo conduzir à depressão clínica e ao suicídio.
Feminazi
Termo pejorativo utilizado para descrever uma feminista que tenha uma postura mais radical ou inflexível. Este termo remete para o nazismo, ideologia do governo alemão no período entre 1934 e 1945, responsável pelo extermínio de mais de seis milhões de pessoas com base na sua etnia, religião ou orientação sexual. O objectivo desta comparação é aproximar uma ideologia que liberta as mulheres do escopo masculino e lhes confere a autonomia a que têm direito, algo inaceitável para uma sociedade patriarcal, com uma máquina de guerra e morte sem precedentes, como o foi, reconhecidamente, o nazismo.
Momsplaining — a mãe explica
Termo pejorativo usado para descrever a situação de uma mãe que acha que tem mais competência do que um pai para cuidar dos filhos apenas por ser mãe, criticando negativamente tudo o que ele faz ou tenta fazer em relação aos filhos. Seja nas decisões que toma em relação à educação dos filhos, seja nas actividades do quotidiano, como mudar fraldas, escolher as roupas que vão vestir ou mesmo planear refeições.
Empoderamento feminino
É o termo utilizado para descrever a promoção activa da equidade de género através da criação de ferramentas que ajudem a fortalecer a participação feminina na vida social, política, cultural e económica. Ou seja, dar ferramentas de conhecimento às mulheres para que estas conheçam melhor os seus direitos, adquiram mais conhecimentos sobre o trabalho a que se dedicam, tenham mais oportunidades de alcançar maior sucesso profissional e um maior controlo sobre a sua vida pessoal, familiar e amorosa. Este empoderamento pode ser feito de várias formas: implementando leis que garantam alterações nas mentalidades patriarcais das empresas e da academia; promovendo iniciativas governamentais que incentivem a criação de emprego autónomo feminino; criando grupos e associações que ajudem a esclarecer todos os direitos e deveres das mulheres; colocando em prática os princípios da sororidade.

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