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Elza Soares, a história de vida dramática da cantora

Em 2019, a cantora brasileira sentou-se com a ‘Máxima’ para falar sobre o lançamento da sua biografia e explicar por que Deus só pode ser mulher. No dia da notícia da sua morte, recordamos esta poderosa entrevista a uma mulher que marcou pela audácia, talento e elegância.

Foto: Editora Leya
20 de janeiro de 2022 às 21:24 Aline Fernandez

O pai obrigou-a a casar-se com apenas 13 anos por achar que a filha tinha sido violada – foi desse marido que herdou o apelido Soares. Ficou viúva aos 21 anos. Teve sete filhos, dos quais já velou três. Passou fome, muita fome. Sofreu violência doméstica. Viu a sua filha Dilma ser raptada por um casal a quem confiava a criança quando saía para trabalhar (as duas reencontraram-se anos mais tarde, quando a filha já era adulta). Foi amante e não escondeu o caso – fez dele uma música. Teve a casa perfurada por balas de revólver durante a ditadura militar no Brasil. Exilou-se em Itália. O marido alcoólico causou a morte da mãe. Elza teve uma depressão. Apaixonou-se por um rapaz 47 anos mais novo. Depois por outro, este 52 anos mais novo.

A vida da cantora brasileira Elza Soares, do alto dos seus 89 anos, podia ter dado vários argumentos de filme, mas nem os mais criativos imaginariam o quão real é a sua história. Mulher de armas e perita em abanar ideias feitas, Elza nunca se esquiva aos episódios difíceis, e impressiona sempre com as reviravoltas que dá aos problemas. O seu trabalho mais recente, Deus é Mulher, é o 33º álbum da cantora, lançado em maio de 2018. E foi com ele que regressou a Portugal, aproveitando para apresentar a recém-lançada biografia Elza (Editora Leya), escrita pelo jornalista brasileiro Zeca Camargo. A Máxima encontrou-se com os dois na Livraria da Travessa, no Príncipe Real, em Lisboa.

Elza estava numa cadeira de rodas. Nos últimos anos move-se apenas assim – e também apresenta os seus espetáculos sentada –, já que, em 2014, foi operada à coluna para reparar os danos de uma queda em palco. Mas se pensa que isso pode tirar alguma da sua energia ou alegria, engana-se. Ela mesma diz que não tem idade, tem tempo. Falou com todos os fãs que apareceram para o lançamento do livro, tirou fotografias com vários e deu beijinhos na boca a outros tantos – entre cumprimentos chamava por Wesley Pachú, o seu maquilhador e assistente pessoal, para lhe retocar o gloss.

Antes de debruçarmo-nos sobre as memórias da artista, intrigou-nos a razão do nome do seu novo disco. "Eu acho que Deus é mãe. Ele me ouviu desde criança, que eu venho pedindo socorro e misericórdia para uma menina negra, pobre, sem possibilidade nenhuma de vencer na vida. E acabei vencendo, com tudo para não dar certo e deu certo. Então Deus é minha mãe, Deus é mulher", explicou-nos Elza Soares com os olhos fixos em nós e a voz firme e serena.

Eleita, em 2000, pela BBC como a cantora brasileira do milénio, Elza venceu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, em 2016, como A Mulher do Fim do Mundo, primeiro disco só com músicas inéditas lançado após mais de seis décadas de carreira, e que também acabou por se tornar o seu trabalho mais premiado, considerado o disco do ano pelo The New York Times.

Já muito se escreveu sobre a cantora, histórias e artigos, mas também musicais, peças de teatro, filmes e livros, mas a nova biografia é a primeira obra na qual Elza dá a sua versão dos factos. "É a minha história verdadeira. Não há necessidade de inventar, porque não teria mais o que criar em cima da minha história", a própria confessa. O escolhido para tamanha missão foi Zeca Camargo. "Além do Zeca ser um grande jornalista, ele é uma figura humana sensacional", elogia.

Os encontros aconteceram na casa de Elza. "Ele tomando mate [bebida feita a partir da erva, tradicional da América do Sul] – que a Vanessa, minha neta, comprava para ele, porque sabe que ele gosta –, e a gente conversava. Um dia da semana eu tinha o Zeca comigo", contou à Máxima. A ideia inicial de Camargo era fazer apenas uma única e grande entrevista, mas ao fim de mais de seis meses de convivência intensa os planos mudaram. "Eu entrei com uma responsabilidade grande e eu fui ouvindo a história e só fui ficando mais preocupado", riu-se e completou: "Aí depois ainda se criou uma expectativa nos fãs, que a conhecem e que iriam cobrar isso de mim. No final, a própria história era tão rica que foi um trabalho relativamente fácil na fluência", afirmou Camargo sobre as quase 50 horas de entrevistas. "Ela tem uma memória impressionante. Lembra de tudo, de detalhes, de nomes e apelidos, lembra da música que ela cantou… Nesse sentido ela facilitou muito. O meu desafio era editar aquilo, deixar isso num fluxo interessante e que as pessoas gostassem de ler."

O resultado são 400 páginas do livro que tem como narrativa predominante a perspetiva da cantora. Há um episódio curioso que envolve Portugal no qual se recorda o momento em que Elza esteve num programa de televisão com a fadista Amália Rodrigues, no Rio de Janeiro. "A Amália me fez cantar um fado e eu pu-la a cantar um samba, foi lindo", lembrou a cantora. A brasileira cantou Nem às Paredes Confesso e a portuguesa interpretou o samba Rosa Morena, composto por Dorival Caymmi e cantado no icónico álbum de estreia do cantor e compositor brasileiro João Gilberto Chega de Saudade. Outra lembrança que Elza Soares tem com um carinho muito forte é a apresentação que fez no Estoril na década de 1970.

"Eu não conhecia várias coisas dela, acho que as partes mais íntimas, o sentimento. Você sabe da biografia, mas toda vez que entra a emoção, ela foi muito honesta e aberta, muito generosa… Ela se emocionou, lembrou de alguns episódios com uma certa raiva, depois ela até reavaliava. Ela se entregou muito", contou-nos Camargo, ao descrever que a surpresa foi, de facto, nas emoções que presenciou. "Uma mulher que já passou por tanta coisa, ao lembrar de um trecho da própria história e ainda se emocionar e ainda chorar é bonito."

Zeca Camargo conta à Máxima que Elza Soares quis que o jornalista e escritor brasileiro Ruy Castro – que assinou publicações biográficas como Estrela Solitária, sobre a vida do futebolista Garrincha, e Carmen, que conta a história da cantora Carmen Miranda – fosse o responsável pela sua biografia. Chegou a entrar em contacto com ele, mas este disse-lhe que não escrevia sobre pessoas ainda vivas. Foi aí que não teve dúvida sobre Zeca. O convite foi feito no final de 2017, e começaram a conversar em dezembro do mesmo ano. "A gente começou por fazer entrevistas longas, de 4 a 5 horas. Aí ela ficava cansada e eu também. Eu queria poupá-la e falávamos a cada três semanas, mas aí passamos a fazer um encontro mais regular. Tornou-se um ritual", explicou sobre a rotina que se repetia todas as quintas-feiras – às sete da tarde ia ter com Elza à Avenida Atlântica, o coração de Copacabana, Rio de Janeiro, onde a cantora vive. Falavam durante uma hora a uma hora e meia todas as semanas. "Está aí uma coisa de que eu tenho saudade", confessou o jornalista e escritor.

Elza está à venda por €25 na Livraria da Travessa.

Elza Soares, a história de vida dramática da cantora
Elza Soares, a história de vida dramática da cantora Foto:
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