Dating em Lisboa: "O único apetrecho que possuo a pilhas não tem utilidade prática num apagão"

Constatei com alguma ironia que o único apetrecho a pilhas que possuo não tem qualquer utilidade prática durante um apagão: não dá luz, nem transmite notícias, embora possa ajudar-me ao nível do entretenimento. Contudo, nem cheguei a socorrer-me dele – sim, refiro-me a um vibrador, para os que não perceberam. Como a grande maioria dos lisboetas e portugueses, fui obrigada a ir para casa com meia dúzia de moedas no bolso, a bateria do telemóvel a meio e sem saber quando a vida voltaria ao normal. Arrisquei, não comprei absolutamente nada. Meti-me no primeiro autocarro que consegui e entrei a casa já com a sensação de reinar um silêncio ensurdecedor. As últimas notícias que me tinham chegado alertavam para o facto de que a reposição de eletricidade poderia demorar 72 horas. Como assim? Três dias sem luz?
Comi umas sobras que tinha no frigorífico, frias, retirei-as e deixei-as ao sol para tentar em vão amorná-las. Não resultou. Depois, peguei num livro, mas acabei por adormecer. Acordei passava das cinco da tarde, fazia um calor tórrido lá fora e foi com alguma aflição que percebi que tinha perdido completamente a rede telefónica, o único acesso que me restava ao mundo exterior. Não tinha como saber o que se passava lá fora. Abri a porta de casa e fui espreitar a rua, não se via vivalma. Sem rádio, numa casa onde o fogão e o termoacumulador são elétricos, o frigorífico cheio de comida prestes a estragar-se, eu dispunha apenas de duas velas para passar a noite. Não me senti ansiosa, mas alerta. Voltei a pegar no livro. Terminava "Crónicas do Mal de Amor", de Elena Ferrante, acho sempre que a minha vida tem uma certa ironia, e tentei embrenhar-me novamente na estória. Assim me mantive durante mais de duas horas, até ouvir os meus vizinhos a conversar pelos pátios. Corri para a janela e meti-me à escuta. A vizinha do terceiro andar dizia à do segundo que, na rádio, anunciavam que algumas zonas do país já tinham eletricidade, deveria ser uma questão de horas até a luz chegar à capital. Dei-me por feliz, voltei ao livro, mas quando chegou a hora de jantar peguei em tudo o que tinha de frescos no frigorífico e fui bater à porta do 1º esquerdo, o apartamento do Sr. Joaquim, responsável pelo condomínio.

Abriu-me a porta já começava a escurecer. Estava ainda com as roupas de trabalho. As calças castanhas com vinco e a camisa branca, um colete verde por cima, apesar do calor. Felizmente, não se tinha mudado e não estava de pijama. Eu ouvi-o chegar pouco antes de tomar a decisão de lhe ir bater à porta. "Desculpe, mas o Sr. Joaquim por acaso não tem fogão a gás? É que eu tenho tudo elétrico e isto vai-se estragar". Ele riu-se, no alto dos seus 60 e muitos anos, com aquela sabedoria de quem já nasceu com um kit de sobrevivência instalado na mente. Não só tinha fogão a gás, como tinha rádio a pilhas e um antigo candeeiro a petróleo que herdara dos avôs e sim, tinha petróleo. "Calha bem, que tinha aqui umas gambas que me sobraram do fim-de-semana", respondeu-me. "Entre, entre". Fizemos as gambas salteadas na frigideira, com alho, salsa e manteiga. Eu tinha uns cogumelos que salteei também. Fiz uma salada com uma burrata que já não estava fresca, espinafres e tomates cherry. Rezei para aquilo não nos caíssem mal. E quando meti tudo sobre a mesa, como se fosse um grande banquete, o Sr. Joaquim disse que tinha uma garrafa de vinho guardada para uma ocasião especial - como não sabíamos se se tratava de um ataque dos russos e bem podíamos estar todos mortos no dia seguinte, palavras dele, não minhas, mais valia bebê-la. E bebemos.
Inevitavelmente, perguntou-me se não tinha namorado. Parece que uma rapariga em apuros tem sempre de ter um homem para a socorrer. Por alguma razão terei batido à porta do Sr. Joaquim e não à das vizinhas. Respondi que não. "Pois, já me tinha apercebido que tinha comprado a casa sozinha" - prometo voltar a este ponto numa outra crónica, o blackout desorientou-me a narrativa. Confirmei que sim, mudara-me sozinha e começava uma nova vida, numa zona completamente diferente de Lisboa, mais perto do rio e, felizmente, da praia. Falei-lhe sobre os sítios que já tinha visitado nas redondezas, ele falou-me de uns tascos que tinha de visitar. Falei-lhe sobre as dificuldades da minha geração: a habitação, os ordenados baixos, os amores não correspondidos. "Sofreu um desgosto, não sofreu? Terminou com o namorado recentemente, não foi?". Acenei que sim enquanto dava um gole no vinho e senti-me a afundar a cabeça pelo copo. Não queria falar sobre o assunto. Depois, contou-me que era divorciado, tinha uma filha, "quase da sua idade, acho", foi pai tarde. Quando lhe disse que tinha mais de 30 anos surpreendeu-se, "nunca diria", confessou. "Há pessoas que estão bem sozinhas", disse-me. Achei curioso, não me tentou dar nenhuma lição sobre o amor ou sobre as relações; não me disse que ainda haveria de encontrar alguém; não disse que o meu ex-namorado deveria ser um grande otário porque eu era demasiado bonita para estar sozinha. "Há pessoas que estão bem sozinhas", disse, assim, com esta simplicidade. "Pois há", respondi e sorri. Por qualquer razão meio inexplicável senti-me leve. E não, não foi do vinho. Achei que devíamos ser desse tipo de pessoas, das pessoas que estão bem sozinhas, pois parecíamos estar os dois sozinhos, de facto.
Quando acabámos de comer, perguntou-me se queria café, aceitei. Não queria ir já dormir, talvez a luz pudesse voltar, entretanto. Lembrei-me que tinha uma garrafa de vinho e perguntei ao Sr. Joaquim se sabia jogar Catan. Ele não sabia. Desci para ir buscar o vinho e o jogo. Ensinei-lhe as regras todas e lá começámos a jogar. O Sr. Joaquim percebeu rápido a estratégia e escolheu os números com maior probabilidade de saírem nos dados, não foi parvo. Fartou-se de angariar madeira, eu tinha minério, mas faltava-me sempre a madeira para fazer mais estradas. E nem o meu número da sorte, o 11, me safou. Ele tinha o 6 e o 8. Enfim… Quando a luz voltou estávamos no começo de um novo jogo e, sorte de principiante ou não, o Sr. Joaquim tinha-me ganho o anterior. Não batemos palmas, mas festejámos de alegria, como as pessoas nas outras casas. O Sr. Joaquim foi buscar a garrafa de Porto e dois cálices, fizemos um brinde. Senti-me feliz. Foi a primeira vez que me senti realmente feliz no prédio novo. Arrumei o jogo, despedimo-nos, desci as escadas e voltei a casa. Pensei que o Sr. Joaquim me tinha dado uma grande lição: de facto, há pessoas que estão bem sozinhas e também podem estar bem junto da companhia certa. Não há necessariamente uma opção melhor do que a outra. Fechei a porta de casa, acendi a luz. Depois voltei a apagá-la. Vi as notificações a começaram a surgir no telemóvel. Coloquei-o de lado. Quis estar bem sozinha durante mais um bocado.
