Crónica Isabel Stilwell. Como saber se o nosso marido nos merece
O mundo está louco. Quer dizer, se calhar não está mais louco do que sempre esteve, a diferença é que agora nos chegam, e em simultâneo, as notícias das loucuras cometidas nos quatro cantos do planeta. As guerras, os tufões, os crimes passaram a estar na nossa palma da mão vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, inundando-nos o cérebro com um excesso de informação que, a certa altura, nos tolhe os sentidos e nos deixa com uma sensação de impotência que rapidamente redunda em indiferença.
Mas no meio de tudo isto, felizmente, aquilo que a maior parte das pessoas continua a considerar mais importante, a valorizar mais, são as suas relações pessoais, basicamente o amor, com todo o leque de sentimentos adjacentes, a paixão e o ciúme, o medo de perder o outro, do seu amor deixar de ser correspondido. De ser traído. Só que o “recreio” já não é o pátio da escola ou o jardim adjacente, mas o grande terreiro das redes sociais e como, para o bem e para o mal, a criatividade humana é infinita, vão surgindo novas modas que, no entanto, quando vistas à lupa, não parecem muito diferentes das antigas, apesar de pintadas com artifícios de IA e quejandos.
Desta vez foi no The New York Times que descobri que se multiplicam no TikTok vídeos em que sobretudo mulheres testam (ou armadilham) os namorados/maridos para ficarem a saber (e o resto do mundo também) se eles as merecem, baseados numa tal “Teoria dos Pássaros”. Teoria que defende não só que são os pequenos momentos de conexão (ou de falta dela) que determinam quanto tempo vai durar uma relação, como que é possível tirar a prova dos nove com perguntas simples. Sobre avistamentos de pássaros.
Ora, pelos vistos, a coisa já andava a marinar há algum tempo no TikTok, mas tornou-se viral no dia em que uma terapeuta ocupacional de 30 anos, chamada Layrne Berthoud, publicou um post que recebeu cinco milhões de visualizações em cinco dias. E o que se via no vídeo? Exatamente a dita Laura a anunciar ao marido: “Hoje vi um pássaro!”, ao que o infeliz, após um instante de perplexidade, respondia com um “Ah sim?”, num tom vagamente interessado.
Não foi preciso mais para que os casais começassem a replicar a cena: um dos membros do casal aponta um pássaro, ou limita-se a inventar que viu por exemplo um pombo naquela manhã, e filma a reação do outro. Se o parceiro mostra interesse e quer saber mais, passa o teste. Senão, chumba!
Não está mal visto, porque sabemos todos por experiência própria como magoa a indiferença da nossa cara metade, aquele “han-han” de quem não ouviu nem uma única palavra do que dissemos, mesmo em coisas tão pequenas como estas, e do impacto que temos quando somos nós a reagir assim, visivelmente a pensar noutra coisa enquanto vamos acenando que sim. Na verdade, ninguém duvida de que o tédio é fatal para uma relação, muito menos John Gottman, que com a colaboração da mulher se dedica há anos a estudar o casamento. Entrevistado pelo NYT confirma que as relações que duram são aquelas em que ambos continuam a “virar-se para o outro” quando este solicita a sua atenção, por muitas vezes que este pedido se repita ao longo de um dia. Até chegou a um número da sorte — os casais que se mantém casados são aqueles que respondem às solicitações do outro em 86% das vezes, enquanto os que acabam por separar só o fazem em 33% das ocasiões.
Daí a valorizar o “Olha o passarinho” vai, no entanto, um bocadinho, e mais do que um bocadinho quando se leva a brincadeira demasiado a sério e se tenta fazer de um teste o barómetro de uma relação. E tirar dai consequências. Qualquer pessoa de bom senso diria que o “exame” serve apenas como pretexto para tornar claro o que a pessoa já sente de antemão, mas se for uma desculpa para abrir o jogo e conversarem sobre o que lhes vai na alma, tanto melhor. O pior é que segundo percebi de tudo quanto, entretanto, já li sobre o assunto, há mesmo quem acredita que este teste revela um destino pré-determinado, com o mesmo fervor com que obedecem às recomendações de um horóscopo.
Apesar de tudo o “Teste do Pássaro”, parece bem mais inocente do que outras variações, como o muito popular “Tratamento de Princesa”, que tem um sabor de regresso ao passado e de estereótipos de género, ao estilo de um Andrew Tate: só é digno do investimento feminino o namorado/marido que abre a porta do restaurante para ela passar, ajoelha-se para lhe atar os atacadores, paga a sessão de manicure e por aí adiante, favores pelos quais elas estão dispostas a trocar a sua liberdade, numa atitude de submissão que parece ignorar completamente as conquistas tão duramente conseguidas pelas mulheres nas últimas décadas. Será que desejam mesmo voltar a ter de pedir ao marido para sair do país, para acederem a determinadas profissões, para terem uma vida para lá da casa e dos filhos? Aparentemente sim, provavelmente porque, na realidade, sabem que quando se fartarem de brincar às princesas (que, coitadas, tinham uma vida tudo menos invejável), podem recorrer aos direitos que agora parecem desprezar?
Voltando à Laura, e aos pássaros — o marido, que não tem TikTok, confessa que foi apanhado de surpresa pela forma como milhares de pessoas se sentiram legitimadas a dar palpites sobre a sua relação com a sua mulher, apenas com base num take de 30 segundos. Felizmente é um otimista e confessa ao NYT que encarou a experiência como uma forma de “estudar” a cabeça das pessoas. Pois, lá está, é exatamente esse exercício que pode deprimir uma pessoa sã para todo o sempre.