Check-in Livros: Sobreviventes
Ecos de mundos distantes provam que a resistência é, tantas vezes, a mais subtil forma de coragem.

DISCURSO DIRETO O Lago Avesso
Passaram-se três anos desde os Diálogos para o Fim do Mundo. Foram esses mesmos três anos de que precisou para alcançar este Lago Avesso?
Para ser precisa, foram precisos mais de três anos: este foi mesmo um processo lento e complexo, para mim. Aprendi muito com este livro. Os Diálogos para o Fim do Mundo saíram em 2009, mas já estavam escritos desde 2007, creio. O Lago Avesso aparece em 2008, com uma história de amor entre duas sombras, uma ideia que persegui enquanto vivia na Argentina. Era a história de um casal que estava junto e não sentia o porquê. Não entendiam que estavam a ser manipulados pelas suas sombras, essas, sim, enamoradas. Hoje, o livro já não reflete esta história a não ser num espelho muito, mas mesmo muito, ao fundo da sala.
Como é que a ideia do livro e o perfil da Ella se desenharam dentro de si?
Havia por um lado a fascinação pelo universo temático das sombras, tanto na sua aceção visual quanto psicológica, isto é, a sombra como Jung a concebeu. Por outro lado, era o universo da dança e do movimento o que me chamava. Imaginava histórias todas passadas em palco. Ainda pensei que quisesse escrever teatro, mas não, era já a história desta mulher, a Ella Bouhart. Muito inicialmente, inspirou-me um encontro com um coreógrafo alemão, que conheci em Berlim, um homem estranhamente carismático que me magnetizou bastante. Mas depois a personagem ganhou vida própria e tornou-se outra coisa. O mais bonito foi perceber que de início antipatizava bastante com ela (é frequente antipatizar com os meus próprios personagens, não sei porquê) e, com os anos passados, tendo-a diariamente como companhia, fui empatizando mais e mais com os seus despropósitos, fui entendendo as origens mais profundas do seu estranho comportamento e terminei o processo simpatizando com ela.
Dirão as nossas sombras quase tudo sobre nós?
A sombra, segundo Jung, é o lado da nossa personalidade que não assumimos, tudo aquilo que não queremos ser. No entanto, ela aparece refletida no nosso entorno, nas nossas relações, tolda a nossa perceção do mundo. Quanto mais estudava e lia sobre a sombra e essa dimensão da projeção psicológica mais percebia o quanto ela está ligada à natureza dual da vida, ou seja, aos binómios sombra-luz, amor-ódio, vida-morte, confiança-traição, entre tantos outros, que no fundo são os conflitos ou as tensões que animam todas as histórias. Do ponto de vista narrativo, do que é construir um personagem, foi empolgante construir uma teia em que os diferentes personagens são todos projeções de si, entre si, e nesse sentido estão todos intimamente ligados e não é possível definir quem é o vilão ou a vítima. É como na vida, afinal.
O livro apresenta-se, também, pela diferença, a nível visual. De que forma esteve envolvida no seu design?
Eu trazia uma ideia já muito elaborada do que queria, do que seria a proposta visual do livro, mas o mérito tem de ser atribuído ao ateliê Flatland, pela mão de Paulo Freitas e Sofia Gonçalves, que conseguiram traduzir as minhas intenções iniciais e largamente elevá-las ao que o livro é agora. Estou muito satisfeita com essa faceta do livro porque enquanto escrevo essa parte acompanha-me sempre, essa presença do livro enquanto objeto. De igual forma ele não seria o que é se não fosse a generosidade de alguns criadores que contactei – nomeadamente do teatro Praga – e que me concederam este uso abusivo de imagens do seu trabalho. Há que ter em conta que me aproprio das suas peças e as atribuo a esta criadora fictícia. Dou-lhes outros títulos, outros contextos, é perfeitamente um roubo – se não tivesse sido consentido. Foi um roubo elegante e creio que, neste caso, os fins justificam os meios.
Nesta edição da Máxima estamos a trabalhar uma ideia em particular: coragem. É precisa coragem para partir para um novo livro?
A coragem, para mim, é função do nível de risco, de medo ou de antagonismo envolvido. Não há coragem se não houver medo ou vulnerabilidade. Se é certo que certos aspetos do processo criativo assustam, não posso dizer que, para mim, escrever um livro seja corajoso, na medida em que é aquilo que mais quero fazer com o meu tempo. É uma pulsão, quase uma coisa inegociável. É assim em relação ao escrever, a parte toda do publicar já é outra história. Mas sim, também concordo com a ideia de que é precisa coragem para partir para um novo livro, por ser tanto de desconhecido e imprevisível aquilo que se convida a entrar. Escrever tem um lado tão fascinante quanto misterioso e oferece tantos momentos luminosos e gratificantes quanto muros aparentemente insuperáveis. O processo d’O Lago Avesso não foi nada fácil, mas se penso nos momentos mais difíceis não creio que foi coragem a característica que melhor me serviu, mas sim perseverança, disciplina, humildade e confiança. Confiança é essencial.
