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Caça às bruxas na Índia

Tal como na Europa medieval, todos os anos milhares de mulheres indianas são acusadas de bruxaria e usadas como bodes expiatórios para justificar acontecimentos aleatórios como uma má colheita, uma morte inesperada ou uma epidemia mortal numa aldeia. Fomos conhecer de perto esta estranha realidade. Por Matteo Fagotto 

Caça às bruxas na Índia
Caça às bruxas na Índia
06 de janeiro de 2014 às 07:00 Máxima

“Sempre que passo junto aos pátios dos meus vizinhos, eles agarram nos filhos e levam-nos para dentro de casa. Ouço-os dizer: ‘Depressa, vamos para dentro, vem aí a bruxa!’ É muito doloroso.” Envergando um sari simples, branco com desenhos verdes, com os braços adornados por algumas braceletes douradas, Nilimoni Kumar, de 56 anos, só aceitou encontrar-se connosco, por razões de segurança, fora de Tola, a aldeia onde mora e que é uma das muitas povoações rurais que juncam o estado de Jharkand, na Índia oriental. “Quando fui acusada de ser bruxa, ninguém na aldeia me ajudou”, acrescenta em tom amargo, com os expressivos olhos escuros postos no chão.

 

Mãe de quatro filhos, Nilimoni tinha uma vida modesta mas feliz até fins de 2011: era dona de casa, como quase todas as mulheres que vivem na cintura tribal de Jharkhand, uma zona pobre composta de florestas esparsas e aldeias de casas de lama onde as pessoas vivem com muito menos de um dólar por dia. O marido trabalhava como pedreiro ou amanhava a terra que ela herdara dos pais. Mas poucos meses depois da morte repentina do marido, a vida de Nilimoni mudou drasticamente numa questão de dias: quando a mulher do primo adoeceu, os familiares desta acusaram-na de praticar bruxaria e de ser responsável pela misteriosa doença. Alguns dias depois, a sua casa foi atacada à meia-noite por três homens armados de machados. Os assaltantes, dois dos quais eram parentes de Nilimoni, só foram repelidos porque um dos seus filhos calhou estar em casa na altura. “Tenho a certeza de que eles queriam matar-me”, diz, com uma calma surpreendente.

 

A história de Nilimoni Kumar está longe de ser única. Segundo dados do gabinete nacional indiano que regista os crimes, 768 mulheres foram assassinadas por “prática de bruxaria” em aldeias de toda a Índia desde 2008. Entre os vários estados que compõem o país, Odisha e Jharkhand, onde vivem diversas comunidades adivasi (ou tribais), foram apontados como zonas onde houve um pico do número destes casos nos últimos anos. De acordo com a FLAC, uma associação que fornece apoio legal às vítimas, só nos últimos dois anos foram relatados 210 casos de caça às bruxas em Jharkhand, que recentemente foi apelidado de “terra das bruxas”. Longe de ser uma mera reminiscência de antigas crenças tradicionais, as acusações de bruxaria comportam pesadas consequências sociais: atacadas por multidões em fúria, decididas a libertar as aldeias dos seus poderes “maléficos”, as alegadas bruxas são selvaticamente agredidas, torturadas e, não raro, assassinadas pelos seus próprios vizinhos. Aquelas que sobrevivem a estes terríveis ataques são forçadas a viver o resto dos seus dias como párias, sem qualquer hipótese de reconstruírem as suas vidas. As mais afortunadas são novamente acolhidas pelos pais. As outras vivem em cabanas isoladas, na orla das florestas, e proibidas de participar em quaisquer reuniões sociais, tal como acontece com Meena Mahato, uma mulher de 60 anos oriunda da aldeia de Bhaluk Pahari e mãe de dois filhos.

 

Há 13 anos, o seu primogénito morreu na sequência de uma doença de pele. Ao mesmo tempo que procurava lidar com o que ela descreve como uma dor dilacerante, Meena foi acusada pelo cunhado de ter matado o rapaz com bruxarias. “Toda a aldeia me acusou. Ninguém tentou defender-me”, conta com os olhos marejados de lágrimas provocadas por emoções ainda bem vivas, apesar dos muitos anos volvidos. Para se libertar da acusação, teve de vender duas vacas, os únicos bens que possuía, para pagar uma viagem a um santuário local – a sua e a de outros quatro aldeões, que tinham de verificar a “purificação” da sua alma pérfida. Não obstante o aparente êxito da viagem, as acusações não ficaram por ali: alguns dias depois, a casa de Meena foi assaltada e destruída por uma multidão enfurecida. Quando o marido tentou protegê-la, foi espancado e igualmente expulso da aldeia. Hoje, as ruínas da sua casa ainda jazem à entrada de Bhaluk Pahari: parte do edifício foi transformado numa escola, enquanto Meena e o marido foram obrigados a mudar-se para os arrabaldes da povoação. Vivem com uma idosa que os abriga num barraco, a troco de alguns trabalhos na sua propriedade. O casal sobrevive apanhando folhas comestíveis num bosque próximo e vendendo-as a um centro de recolha estatal – um trabalho duro que apenas lhes rende alguns dólares por semana.

 

Além disso, Meena e o marido não podem ir a casamentos, frequentar o templo, utilizar o lago perto da aldeia para lavar a roupa ou comprar seja o que for. “Nem sequer nos deixam ir ao mercado da aldeia”, lamenta-se, enquanto o marido, sentado ao lado, permanece silencioso. “O nosso filho traz-nos alguns produtos essenciais da vila”, ainda acrescenta antes de se interromper subitamente. A alguns metros de distância, escondido atrás de uma cerca de junco, um aldeão escuta a nossa conversa. “Eles viram que estou a falar com forasteiros”, sussurra, aflita. “Agora vamos ter mais problemas quando vocês se forem embora.”

 

Apesar de tudo, o marido de Meena, Shyantu Mahato, ficou ao seu lado ao longo de todas estas provações. “Quando o meu irmão me disse para expulsar a minha mulher de casa, eu respondi-lhe que ele me podia pedir tudo menos isso. Conheço-a e amo-a há tanto tempo, como podia eu fazer uma coisa dessas?”, pergunta este homem de 67 anos, tentando disfarçar a timidez olhando para o chão, enquanto a mulher lhe dirige um sorriso de gratidão. Em vez de as defenderem destas acusações, muitos maridos preferem abandonar as esposas e reconstruir a sua vida com outra mulher. Segundo testemunhos recolhidos por ativistas locais, há casos de filhos que mataram as próprias mães para protegerem o resto da família do estigma social.

 

As acusações de bruxaria seguem, em regra, um processo claramente definido: quando uma mulher começa a ter fama de ser bruxa, o caso é discutido numa assembleia local em que os acusadores apresentam as provas ao chefe da aldeia e ao curandeiro. Se este último corroborar as acusações (normalmente utilizando técnicas tão bizarras como colocar alguns bagos de arroz a flutuar numa bacia com água e ver em que direção se deslocam), as mulheres não têm qualquer hipótese de escapar à condenação. Se as crenças sobre bruxaria variam de estado para estado, o seu cerne é sempre igual: a dayine, ou bruxa, é geralmente uma mulher com poderes como fazer adoecer ou matar as pessoas por meio de feitiços e espíritos malignos, arruinar economicamente uma família ou matar o gado com uma epidemia. Para proteger as aldeias destes poderes, que as bruxas reforçam reunindo-se nas florestas em noites de lua cheia, os aldeões atacam em massa as suas vítimas, cortam-lhes o cabelo (que se crê ser uma fonte de força e poder para a dayine) e, não raro, obrigam-nas a submeter-se a rituais macabros como ingerir urina ou excrementos humanos.

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Resultantes de crenças tradicionais ainda muito respeitadas neste remoto recanto da Índia, onde o papel da mulher se limita à lida da casa, as acusações de bruxaria também são utilizadas como pretexto para se espoliar uma mulher dos seus bens e dinheiro. “Em Jharkhand, Chhattisgargh, Bihar, Odisha e Purulia, no estado de Bengala Ocidental, a luta pelas terras adivasi é intensa no interior das comunidades. Trata-se de zonas ricas em minérios e as empresas mineiras estão a avançar sobre elas, o que leva ao desaparecimento dos terrenos adivasi”, explica Soma Chaudhuri, professora assistente no departamento de Sociologia da Universidade do Estado do Michigan e especialista nas questões relacionadas com a caça às bruxas na Índia. “As mulheres adivasi podem herdar terras dos pais ou dos maridos e, muitas vezes, os seus parentes lançam estas acusações sobre elas para as desacreditar, o que as faz perder a herança.”

 

Numa tentativa de resolver o problema, o governo da Índia aprovou, no ano passado, a Lei de Prevenção e Proteção das Mulheres do Rajastão contra Atrocidades, que estabelece penas severas para quem persiga ou ataque mulheres acusando-as de serem bruxas. De acordo com esta lei, quem difame ou acuse uma mulher da prática de bruxaria será punido com pena de prisão até três anos, além de uma multa que pode chegar às cinco mil rupias (cerca de 60 euros). Embora vários outros estados indianos, incluindo o de Jharkhand, tenham aprovado leis específicas para acabar com a caça às bruxas e as acusações de bruxaria, as autoridades são geralmente indulgentes para com os acusadores, relegando muitas vezes o problema à categoria de quezília familiar e contribuindo assim para o crescimento do fenómeno. Embora basicamente confinada às comunidades adivasi da cintura tribal, a caça às bruxas está a tornar-se comum também nas grandes cidades, devido à permanente migração de pessoas das zonas rurais para os centros urbanos, fomentada pela expansão económica indiana. Em maio de 2012, Sushila Purty, uma jovem de 30 anos que vive no bairro de Shankosai, em Jamshedpur, foi estrangulada quase até à morte pelos vizinhos, que a acusavam de ter feito com que o seu filho caísse doente por meio de magia negra. “Alguns dias antes do ataque, o meu senhorio disse-me que eles me tinham acusado da prática de bruxaria”, conta Sushila, sentada debaixo de uma árvore solitária, no pátio de sua casa. “Fiquei tão preocupada que deixei de comer e de me lavar... Sabia que me podia acontecer alguma coisa.” Sushila acabou por ser salva pela presença de espírito do senhorio, que repeliu os atacantes e a trancou dentro de um quarto. “Mas eles juraram matar-me se alguém morrer na vizinhança”, diz baixinho.

 

Segundo G. S. Jaswal, um advogado que ajudou a redigir a Lei de Prevenção de Práticas de Bruxaria atualmente em vigor em Jharkhand, a solução do problema está em legalizar e formar os curandeiros, a quem cabe a responsabilidade de declarar que uma pessoa é bruxa. “Os curandeiros vivem dos donativos dos aldeões. Quando não conseguem curar uma doença, precisam de alguém a quem passar as culpas. É aqui que começam as acusações de bruxaria”, explica. Embora se tenha falado em fazer uma lei antibruxaria válida em toda a Índia, ainda não há notícia de que algo tenha sido feito nesse sentido, o que deixa as mulheres acusadas de tal prática numa espécie de limbo. Se algumas delas conseguem ter a coragem de denunciar os seus agressores, as autoridades são frequentemente influenciadas pelas mesmas crenças tradicionais que deviam erradicar. “De acordo com a lei, as bruxas não existem mas, pessoalmente, eu acho que sim”, confessa Pobita Sardar, de 31 anos, eleito chefe de 13 aldeias, entre as quais Birbans. Curiosamente, a maior parte das mulheres acusadas também acreditam em bruxaria e defendem-se dizendo que não são dayine, em vez de denunciar estas crenças como uma superstição.

 

Dado o pouco empenho demonstrado pelas autoridades, algumas mulheres decidiram tomar o assunto em mãos. Chhutney Mahato, de 52 anos, é certamente a “bruxa” mais famosa de Birbans. Acusada da prática de bruxaria e expulsa da sua aldeia em 1994, teve de viver debaixo de uma árvore durante nove meses, sobrevivendo da caridade alheia e de alguns restos de comida dados pela família. O seu sorriso desdentado é testemunho da tortura a que foi submetida. “Prenderam-me os braços e esmagaram-me a cabeça contra o chão, partindo-me os dentes todos”, relembra, chorando. Depois de um longo calvário, acabou por ir viver para Birbans, com os três filhos. Desde então, Chhutney tem dedicado a sua vida a ajudar mulheres acusadas de bruxaria, tentando reconciliar as famílias, informando a polícia e os advogados sempre que está em curso uma caça às bruxas e intentando processos judiciais em nome das vítimas. O seu ativismo foi fundamental para lançar luz sobre este fenómeno e granjeou-lhe o respeito e a admiração de muitos ativistas dos direitos humanos, tanto na Índia como no estrangeiro. “Desde 2000, salvei a vida de, pelo menos, 38 mulheres”, diz, orgulhosa. Apesar do seu êxito, Chhutney continua a ter de enfrentar a desconfiança dos aldeãos, que não gostam que estranhos – e muito menos mulheres – venham imiscuir-se no que eles consideram ser assuntos da comunidade. Alguns encontros foram tão tensos que Chhutney prefere agora chamar a polícia sempre que tem de ir a uma aldeia pela primeira vez. “Mas não tenho medo”, assegura. “Não descansarei enquanto a palavra dayine não for erradicada do meu país. Vou lutar contra a caça às bruxas até ao fim da minha vida.”

 

Nilimoni Kumar, a mulher que quase foi morta por dois familiares, é uma das alegadas bruxas que Chhutney tentou ajudar. Embora tenha conseguido manter as suas terras no seguimento de um processo judicial contra os seus acusadores, foi pressionada pelo chefe da aldeia e pela polícia a desistir da ação a troco de uma pequena compensação, a fim de preservar a paz social. Longe de limpar o seu nome, o acordo não melhorou também as suas relações com esses parentes. “As autoridades abafaram o assunto”, diz Nilimoni Kumar com um sorriso irónico no rosto enrugado. “Doravante, vai ser muito fácil a qualquer pessoa voltar a acusar outra de bruxar

 

Fotografia: Matilde Gattoni

Tradução de Maria Eugénia Colaço

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