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Antonella Lattanzi disse à Máxima que veio a Lisboa ver "o ambiente em que está a nascer o livro", porque para a autora italiana quando um livro é traduzido renasce numa nova língua. Uma História Negra (da editora Suma de Letras) é o seu terceiro romance, mas o primeiro traduzido em português (as outras duas obras são Devozione e Prima Che tu mi Tradisca), tem uma família italiana como protagonista e um enredo contaminado por uma história de violência. A forma de escrever de Antonella prende o leitor com um método de perguntas e respostas em busca de um desfecho que a própria autora explica.

Tem uma forma de escrever muito própria. Quem são as suas influências?

Não tenho autores preferidos, mas sim livros preferidos como Debaixo do Vulcão (de Malcolm Lowry), Pastoral Americana (de Philip Roth), Madame Bovary (de Gustave Flaubert), Anna Karenina (de Lev Tolstoi) e em especial O Quarto Azul de Simenon. Este livro ajudou-me a encontrar o ritmo. Os livros são muitos e o que faço é ler todos os dias, quase como uma prática, como faz um músico, um bailarino, que todos os dias tem de fazer exercícios, mesmo estando no topo, porque aquilo é o exercício. O escritor escreve, mas tem que ler.

Como é a sua rotina diária para escrever?

Uma rotina ideal era acordar de manhã, ler logo durante o pequeno-almoço e ter duas a três horas de manhã para escrever. Entretanto como também me dedico a artigos, ao ensino em escolas de escrita, a argumentação para cinema e televisão, isso também tira tempo para a dedicação aos romances, portanto às vezes é mesmo necessário encontrar um espaço fechado para poder dedicar-se exclusivamente a uma coisa.

Em relação aos artigos, aos argumentos e ao ensino, onde podemos encontrar o seu trabalho?

Neste momento estou a trabalhar na série de televisão a partir deste romance (Uma História Negra), mas ainda não tenho a certeza se isto vai mesmo acontecer porque implica uma série de outras coisas. Uma coisa é a escrita e outra é a encenação. Mas estou a trabalhar nisto. Escrevo artigos para a Vanity Fair Itália, para jornais italianos, como o La Republica, que à sexta-feira tem uma revista sobre cultura. Também trabalho numa escola em Turim, a Holden, onde se formaram e continuam a formar-se escritores italianos como por exemplo Paolo Giordano, que foi traduzido para português. É uma escola importante não só para escritores, mas também para argumentistas, encenadores e é bastante abrangente e conceituada em Itália.

Estudou nessa escola?

Não. Sou de Bari, no Sul de Itália, e fui para Roma para estudar numa escola com o Domenico Starnone, que é um escritor que adoro e que foi um verdadeiro mestre. Nessa escola, ele não impôs um estilo de escrita, mas ajudou-me a encontrar a própria escrita, partindo também de alguns conselhos de leitura. Porque sempre li muito, mas era a primeira vez que tinha contacto com um escritor e os conselhos de leitura dele eram, obviamente, diferentes dos conselhos de amigos e familiares. Foi um verdadeiro mestre que ajudou a encontrar um caminho e continua a ser uma referência.

Este é o seu primeiro livro editado em português, é muito intenso e também aborda um tema muito próximo das pessoas. Como é que este livro a apresenta enquanto autora?

Há aqui uma parte de mim que é a ideia de nunca nos darmos por perdidos, lutar sempre até ao fim. Esta é a mensagem que passa, nunca deixarmos de lutar, podemos ficar com uma grande ferida, mas não podemos ficar danificados para a vida. Não acredito que o destino, o fado, seja uma coisa fechada. Nós podemos sempre lutar para este destino e o livro desenvolve-se desta forma. Há uma primeira parte em que a personagem é negativa, depois positiva e depois quem decide é o leitor, porque eu gosto que os romances interajam com o leitor e que este faça a sua leitura a partir das perguntas que a autora lhe faz. Não gosto muito de um romance que seja uma imposição de uma história, mas sim de um romance que faça perguntas e depois o leitor responde à sua própria maneira. Não é algo estanque, mas é algo que deixa esse diálogo entre o romance e o leitor.

Os outros dois livros são também muito trágicos.

Não são cómicos!

A violência doméstica é um problema muito enraizado na cultura portuguesa. Sente que acontece o mesmo em Itália?

Sim! A situação é mais ou menos parecida. Continuamos também com os mesmos números em vez de melhorar. O que está a melhorar é o facto de agora se falar disto e isso é muito importante. A palavra será o meio para tentarmos diminuir estes números, se bem que ainda há pouco tempo em Itália houve um julgamento em que o juiz perguntava se a mulher que tinha sido violada estava bêbeda na altura da violação. Ou seja, se continuarmos com este pensamento em que uma mini-saia ou o facto de ter bebido um copo pode ser uma atenuante para o carrasco, se continuarmos a pensar que a mulher é participativa nisto, não podemos ir para a frente. Agora há essa palavra, que é muito importante, é bom que as mulheres falem e que os próprios homens façam parte. Uma coisa que antigamente não se fazia, era tabu.

Falando do meu livro, agora que foi traduzido para todo o mundo, fico surpreendida porque eu pensava que este tipo de mentalidade era típica de Itália e afinal em todos os países me dizem que lá também é assim. É um problema do mundo.

Embora este seja o primeiro livro editado em português, tem mais dois romances (Devozione e Prima che tu mi tradisca). Porquê estas três histórias tão trágicas?

Não é só uma paixão pelo trágico, mas é porque é através destas histórias que conseguimos contar o que nós, seres humanos, somos realmente. Porque quando acontece qualquer coisa de triste ou trágico, é ali que sai toda a parte humana multifacetada. Quando tudo corre bem, ninguém nos pede para enfrentarmos situações e para sermos corajosos para tirarmos tudo para fora. É quando acontece algo, que na escola de escrita se chama o acidente, que desencadeia a história. No primeiro, Devozione, quis falar de pessoas ligadas à heroína, então fingi-me toxicodependente e andei mesmo durante cinco anos a estudar por perto essa situação, para tentar contá-la de uma maneira verdadeira, mesmo sendo depois um romance.

O segundo romance é a história de duas irmãs, uma delas desaparece e a outra, perante a família e a sociedade tenta ser as duas, porque a irmã era o centro das atenções. Isto também é qualquer coisa que, se não há esse facto trágico, este acidente, não se consegue depois tirar esta parte da irmã que, noutra situação faria uma vida normal.

Disse que apresentou o livro em outros países. Onde já esteve e para onde vai?

Já estive na Alemanha e em Espanha. Vou para o Peru, França (em maio) e estou à espera de outras traduções. É muito interessante levar o livro a todo o mundo porque vemos outras realidades e países, mas sente-se que o leitor e o ser humano é um.

Uma vez que o trabalho de um escritor é escolher as palavras, a tradução é um ato de confiança, uma entrega para a escolha de outras palavras noutra língua. Essa é talvez a experiência mais importante até agora porque é assim que se estabelece uma relação com outros leitores, que de outra forma não poderiam ler o romance em italiano.

Tem uma cópia em cada língua em sua casa?

Sim! A parte gráfica das capas também é muito interessante porque em alguns países mantiveram a mesma imagem e noutros mudaram. Uma coisa interessante que aconteceu na versão catalã foi o facto de ter sido criado um marcador que, na parte de trás, tem uma explicação de todas as personagens. Ou a capa da edição alemã com o pescoço de uma mulher que me lembra uma bailarina de tango. Numa estante que tenho em casa tenho as publicações nas línguas todas que saíram até agora.

Que feedback tem tido do público?

Recebi uma carta de uma mulher vítima de violência que através deste livro conseguiu mudar um pouco a atitude dela. O que proponho não são respostas, mas sim perguntas às quais o leitor começa a mexer-se. Obviamente escreveram-me pessoas que gostaram do livro, pessoas que, como eu tinha pensado, entraram no livro e não conseguiram largar até chegar ao fim. Essa era uma das minhas missões: entrar no livro e só sair quando a história acabasse. As pessoas gostaram das personagens porque são pessoas, não são estereótipos de pessoas. Entretanto também houve uma troca, os leitores despertaram-me a refletir outra vez sobre o livro e a pensar em algumas coisas que tinha escrito. E, se calhar, quem não gostou não me escreveu.

Antonella Lattanzi, autora de Uma História Negra (Suma de Letras).
Foto: ValerioAzzali
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Uma História Negra, de Antonella Lattanzi (Suma de Letras).
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