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“A identidade cabo-verdiana sempre esteve em mim.” Denise Fernandes, realizadora

No belo filme "Hanami" seguimos a vida de Nana que foi deixada pela mãe na Ilha do Fogo em Cabo Verde. São imagens de uma poesia única que nos apresentam ao universo de uma realizadora singular. É obrigatório mergulhar neste filme.

Foto: Getty Images
26 de maio de 2025 às 14:40 Tiago Manaia

O sorriso de Denise Fernandes é contagiante quando nos explica que cresceu na Suíça, mas na parte italiana. Diz, “o italiano foi um bónus”, e solta uma gargalhada. Há uma musicalidade no seu português, faz-nos viajar para vários lugares. Nasceu em Lisboa, cresceu perto de Locarno, os pais são de Cabo-Verde, estudou cinema em Lugano e em Cuba também. Está sentada no café da Culturgest, onde estreou a sua primeira longa-metragem, Hanami, no Festival Indie Lisboa, parte da equipa estava na sala e aplaudiu comovida o final da sessão. O filme ganhou o prémio de Melhor Longa na competição Nacional do Indie. E, no Festival Locarno, Denise foi considerada melhor cineasta emergente por causa deste magnifico relato – numa ilha vulcânica de areia escura, Denise filma a cor do quotidiano de uma menina que deixada pela mãe acaba por ser cuidada por todos.

É uma ilha repleta de esperança de histórias onde as sereias têm insónias e as tartarugas lembram a passagem do tempo. É também um comovente retrato da diáspora que poucas vezes é tratada no cinema nacional.

O teu filme, Hanami, começa com uma ruptura. Há uma mulher que parte à procura de melhores condições de vida. Esta história foi qualquer coisa que tu encontraste em Cabo Verde quando chegaste lá para escrever o argumento do filme? Ou algo que pertence à diáspora ou é um mito real de mulheres que vivem em sítio isolados e têm de partir?

Há uma ruptura que é mostrada no filme com uma imagem muito metafórica e, na verdade, define muitas existências. Quando nascemos, há já alguma ruptura em nós e quando chegamos à nossa vida ainda apanhámos cacos de rupturas de gerações diferentes. Nós temos uma herança de rupturas e temos também heranças de coisas muito boas e bonitas.

A minha primeira intenção foi ter isto no filme e, depois, tive que encontrar uma maneira de o materializar visualmente. O filme começa com a partida de uma personagem e depois, como consequência, o ato desta personagem reflete-se na identidade cabo-verdeana, ou seja, não só nas pessoas que ficam, mas também nas pessoas da diáspora, que na sua maioria tem uma história dentro da família de alguém que simplesmente se foi embora de uma forma quase prematura.

'Hanami'
"Hanami" Foto:

Eu sei que tu foste várias vezes à ilha. Tiveste várias vezes, ao longo dos anos, a escrever na ilha do Fogo. Era uma história que tu sentiste que estar presente ali, estava latente?

O Hanami nasceu à distância e depois eu comecei a ir à ilha para ver se essa história combinava com ela. Isso foi um ato de tamanho de responsabilidade. Eu também contava às pessoas da Ilha do Fogo a história, porque eu sou Ilha de Santiago, da diáspora, mas não sou uma pessoa do Fogo. Lembro-me de chegar à ilha, falar com algumas pessoas, contar a história de início até fim, ver qual era a reação. Os anos de desenvolvimento e de escrita foram adaptar esta ideia o mais possível ao que é a realidade que vivem no quotidiano as pessoas. Tudo o que as pessoas também me respondiam ou que partilhavam comigo, muitas dessas coisas, elementos, também estão no filme, são vivências.

Alguém diz no filme esta frase poética, “as sereias nunca dormem.” Isto eram lendas da ilha ou era o teu universo?

O filme é uma mistura. O que motiva ao fazer cinema é criar novas possibilidades. Lembro-me, quando era criança, de a minha avó contar-me uma história de uma sereia, mas era uma história muito diferente da história que a avó da Nana, a protagonista do filme, lhe conta. Eu achei que podia ser bonito contribuir para criar novas histórias. Seria lindo se essa história que escrevi acabasse por ficar uma nova história, e fosse agora também contada às crianças. (risos)

O que é que significa esta palavra e título do teu filme, Hanami? São as cerejeiras em flor no japão e é florescer desta miúda, que tu filmas?

Para mim é um título amplo. É uma palavra japonesa que significa contemplar o florescer das flores de cerejeira, mas a língua japonesa tem essas palavras incríveis e acaba por ter possibilidade de ser uma metáfora. A minha primeira intuição, quando dei este título ao filme foi saber que estas flores a certa altura se transformam numa chuva de flores. Um dos temas do filme é a seca, a identidade cabo-verdiana não se separa da seca. Eu diria quase que é o motivo principal de as pessoas se irem embora. As pessoas da diáspora telefonam sempre umas às outras para saber se choveu. Isso molda as existências das pessoas, completamente diferentes. Queria fazer a isso uma homenagem direta, queria uma palavra de um imaginário sonhador. Deixo muita liberdade ao espetador, nunca quero impor totalmente o que sinto, o filme para mim é um ato de partilha, de participação, há muitos temas que não encontram uma resposta definida.

'Hanami'
"Hanami" Foto:

O filme é triste, mas nunca é melodramático. A tua personagem é doce e comove quem acompanha seu percurso, mas nunca é melodramática. Tu és assim?

Não sei, acho que na vida real, afinal, há muito menos melodrama do que nos melodramas. Acho que muitas das coisas que vivemos são emoções contidas. O filme carrega isso. Eu preferia contar uma história de emoções contidas. E há uma condição do ser humano que é uma condição de solidão, isso ficou. Acho que uma abordagem mais melodramática não ia servir a história.

Há uma cena incrível no filme. É o momento em que precisamente as pessoas que emigraram voltam à ilha, e há uma criança que vai jogar para debaixo da mesa onde se almoça e tu filmas uma menina que tem uns ténis modernos e todos os outros calçam umas sandálias mais típicas, mais modestas. Há essa diferença, o que pessoas trazem, de repente, é o progresso. E trazem línguas novas, já não estão a falar crioulo. Isso é uma coisa que tu viveste entre os países onde cresceste (Suíça e Portugal, onde nasceu)?

Eu acho que, como muitas pessoas da diáspora caboveriana, especialmente talvez até fora de Portugal, a nossa maneira de conhecer Cabo Verde vem de momentos como esse. É como na poesia, quando fazem o sinédoque. Então nós, da diáspora, quando ainda não estivemos em Cabo Verde ou quando não tivemos a oportunidade de lá estar durante um período muito longo, Cabo Verde são cacos (na memória) que nós temos de construir. Então, quando chega a família de fora, nós ficamos muitas vezes observadores a tentar perceber o que é que eles trazem. E construímos Cabo Verde com esses momentos. Com esses cacos. Exatamente.

A dinâmica de visita, acho que é determinante para as pessoas que ficam na ilha e que recebem visitas, mas também nós da diáspora, quando recebemos visitas de pessoas da ilha, são visitas muito determinantes na nossa vida. Pode-se conhecer um primo uma vez, depois a segunda vez que volta a estar com ele já passaram mais 10 anos. Às vezes realmente passam décadas antes de os reencontros acontecerem.

'Hanami'
"Hanami" Foto:

O que é que se quebra nisso? Há coisas que se quebram e há coisas que se idealizam muito também, não é?

Sim, ou pessoas que se transformam também.

Achas que o teu filme idealiza Cabo Verde, de certa forma? Achas que o teu cinema é um cinema que idealiza o mundo?

Espero que não, mesmo. Porque a minha intenção não é de mostrar um paraíso de uma ilha remota, então diria absolutamente não à tua pergunta. Ao mesmo tempo eu quis oferecer uma boa vida à minha personagem principal e também quis fazer uma narrativa diferente. Quis sair de uma narrativa de escassez, de apresentar um lugar como um lugar remoto, sem possibilidades em que todos querem sair.

Não queria fazer isto. Não queria nem simplificar e entrar num cliché de que a vida é boa lá porque é simples. Com a equipa de rodagem, ficámos muito tempo na ilha, vimos problemas... é muito complexo. Mas eu acho que, mais uma vez, eu não posso resolver tudo como realizadora. Cada espectador tem a possibilidade de fazer a sua própria reflexão sobre esse território e imaginar também o difícil e duro que pode ser e, ao mesmo tempo, ser bonito. Eu não quero escolher nenhuma das duas possibilidades.

Diz-me, o teu primeiro choque de cinema, consegues lembrar-te?

O cinema não chegou a mim de forma direta, o cinema chegou a mim através da literatura ou através dos livros. Porque eu não quero associar a minha experiência com algo de intelectual, eu não venho... (pausa) Eu acho que o meu chegar ao cinema foi muito simples e eu, como criança, lia muitos livros, mas estou a falar de livros de infância.

'Hanami'
"Hanami" Foto:

Encontravas os livros numa biblioteca?

Sim (risos). Mas eram livro muito bons de literatura italiana. A Itália tem escritores incríveis, como o Italo Calvino, ou Bianca Pitzorno. Tem uma literatura muito bonita, também muito ilimitada na própria imaginação. Eu achava que queria ser escritora e depois, um dia comecei a querer escrever o meu livro e... Depois de poucas frases pensei, “ah, isto não me está a entusiasmar”, achava que ia ser muito mais divertido... Mais tarde, dei por mim a ver na televisão trailers de livros que eu tinha lido e pensei... “Ah, mas porquê? Porque estão a transformar isto num filme desta forma?” E senti que queria ter feito aquele filme... Aquela adaptação. E foi aí que fiz o clique.

Eu cresci numa cidade da Suíça muito pequenina (perto de Locarno) e, de repente, sem saber ainda o que era realmente cinema, percebi que se tratava de uma aventura. Era quase um ato de magia. Tu escreves algo e depois tens que encontrar uma maneira de concretizar o que está escrito.

Cabo-verde, Lisboa, Suíça. Sentes que pertences a estes sítios todos? Ou sentes que estás sempre no país dos outros?

Estou a tentar fazer um exercício ativo de sentir que posso pertencer a onde eu quero. Como algo que eu própria posso escolher e definir. Depois de ter vivido toda esta aventura do Hanami, acho que já consigo apresentar-me como cabo-verdiana. Não era óbvio, porque ser da diáspora, às vezes, não te deixa saber legitimamente o que és. Não sabes se és suíça, não sabes se és portuguesa. E agora digo, não. Eu sou uma cabo-verdiana porque cabo-verdiano não é quem fica na ilha, cabo-verdiano é quem convive com a identidade cabo-verdiana. E a identidade cabo-verdiana sempre esteve em mim, mesmo quando eu não era capaz de a ver ou reconhecer.

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"Hanami" Foto:
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