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Família aluga-se!

Comprar afetos como quem compra um electrodoméstico ou um novo vestido? Sim, no Japão. Como se explica o fenómeno das famílias de aluguer, mais popular do que nunca na Ásia Oriental? Fomos investigar.

23 de julho de 2018 às 08:00 Rita Silva Avelar
Quatro de Fevereiro de 2000. Estávamos no início do milénio quando chegava às lojas a primeira edição do videojogo The Sims. Baseado na pirâmide de Maslow – segundo a qual as necessidades fisiológicas devem ser satisfeitas antes das necessidades de relacionamento –, o jogo permite criar personagens com características específicas definidas pelo jogador e, numa fase mais avançada, orientar a relação afetiva das personagens que acabam por interagir entre si em ambientes também criados pelo utilizador. Qualquer semelhança entre o conceito do jogo (que ganhou, ao longo dos anos, novas versões cada vez mais aprimoradas e pormenorizadas) e a indústria das famílias de aluguer, no Japão, não é pura coincidência. É um tema que foi recentemente abordado pela jornalista Elif Batuman no artigo Japan’s Rent-a-Family Industry, publicado na revista The New Yorker. O que leva, então, a população japonesa, a décima maior do mundo (segundo dados dos censos de 2016, ano em que o Japão tinha uma população de 127 milhões de habitantes), a contratar familiares de substituição? Pressão social e solidão, acima de tudo. Mas não só. "Somos, a todo o momento, bombardeados com ideais de perfeição: a nossa própria exposição à perfeição dos outros, quer na vida quotidiana como na publicidade, torna-nos muito permeáveis a essa ideia e, ao mesmo tempo que o fazemos, tornamos as relações mais precárias. Não há famílias perfeitas, não há um emprego perfeito e, portanto, gera-se em nós uma insatisfação cada vez maior com a qual não sabemos lidar", começa por explicar Maria José Núncio, socióloga e especialista nas questões de género e de família. "A sensação de estarmos afetiva e emocionalmente vinculados a alguém é um suporte muito grande para as agressões exteriores, seja num contexto social ou profissional. O próprio conceito do amor romântico e da família-fortaleza é produto de uma sociedade capitalista, de consumo, em que a família pode funcionar como a única instituição protetora relativamente às agressões do exterior. É um pilar de refúgio e de bem-estar, muito protetor. Se isso nos falha (e pode falhar, por várias razões!) a sensação de solidão e de desproteção podem ser maiores. Este fenómeno, que é uma alternativa afetiva, vem daí." Para a também socióloga e investigadora Sofia Aboim, o que se passa "é uma mercantilização dos afetos que facilmente se associaria à prestação de serviços sexuais, mas que, claramente, não se trata disso [não é permitido contacto físico, além de dar as mãos]. No caso, as pessoas estão a procurar compensar a ausência dos afetos com familiares através do pagamento a substitutos. É um fenómeno que aponta para a ilusão de que tudo é comprável. É o consumo levado ao extremo. A ausência da dimensão sexual e a enfâse na afetividade ainda tornam o fenómeno mais peculiar".
 
Aluguer de afetos: um negócio "de família"
Fundada por Yuichi Ishii, em 2009, a empresa Family Romance tem 20 elementos fixos e 12 mil atores associados. Ele próprio um ator, Yuichi decidiu fundar a empresa de aluguer de "familiares" porque, certo dia, uma amiga e mãe solteira precisou de um marido para a acompanhar à escola da filha – caso fosse sozinha, isso não seria bem aceite pela escola. Yuichi fez esse papel, mas não correu bem porque ele não estava preparado. Porém, a ideia daquele que haveria de ser o negócio da sua vida – e que o levaria a fazer o papel de marido em mais de 100 casamentos ou, num determinado período, a acompanhar, em simultâneo, a vida de dez famílias – estava formada. Propositadamente ou não, o nome da empresa acaba por ser uma alusão a The Family Romance of Neurotics, de Sigmund Freud, ensaio publicado em 1909, onde o pai da Psicanálise explica o caso das crianças que acreditam na ideia de os pais serem impostores, sendo que "os verdadeiros" seriam nobres ou membros da realeza. Segundo Freud, esta fantasia explica-se com a não-aceitação, por parte das crianças, da ideia de que os pais não são perfeitos. Antes de fundar a Family Romance, porém, Ishii pesquisou sobre este serviço e descobriu a existência de Hagemashi-tai, a agência de aluguer de "família" que o japonês Ryuichi Ichinokawa oficializou, em 2006. A história de um homem de 44 anos, casado e com dois filhos, que mantinha secreto este part-time (até da própria família) é, aliás, retratada no documentário do realizador dinamarquês Kaspar Astrup Schröder:Rent A Family Inc., de 2012. Mas a verdade é que, mesmo antes de Ishii ou de Ichinokawa, o fenómeno já habitava na sociedade japonesa. O rastilho do aluguer de famílias surge em 1989 quando uma mulher, Satsuki Oiwa na altura, presidente de uma empresa especializada em treino de funcionários corporativos –, começou a alugar "filhos e netos" para visitar idosos em lares porque os verdadeiros parentes estavam demasiado ocupados. Em poucos anos, disponibilizou familiares para mais de cem clientes. Uma cliente, por exemplo, encomendou uma "família" igual à que tinha visto na televisão, de forma a sentir-se parte de uma família exemplar. "Há poucas instituições que sejam tão ritualizadas como a família que é assente em rotinas. E nós assimilamos essas rotinas à nossa construção de família, assente também naquilo em que as nossas memórias da família são. As pessoas que vêm de ambientes familiares complicados, por exemplo, têm tendência para procurar na sua própria construção de família algo que remete para o ideal, quase como uma família de filme. É justamente uma maneira de tentarem encontrar uma compensação para aquilo que não esteve lá, mas que têm noção de que pertence às características positivas inerentes a uma família", esclarece Maria José Núncio quando lhe falamos neste exemplo.
 
Perfeição, pressão social e solidão
Tal como no jogo The Sims, a empresa de Yuichi permite que quem contrata os seus serviços escolha as características do familiar ou dos familiares ao pormenor, sendo que tudo pode ser encenado ao limite. Os casamentos simulados, por exemplo, representam cerca de 70 por cento do volume de trabalho da empresa e há casos em que as únicas "pessoas verdadeiras" na cerimónia são a noiva (ou o noivo) e os seus pais. Nestes casos, o padrinho de casamento encena um discurso e é frequente que os convidados alugados chorem. Esta encenação, explica Yuichi no artigo, custa à volta de 5 milhões de yenes (cerca de 40 mil euros), o que nos leva a questionar: qual é a vantagem de encenar um casamento? Pressão social. "É evidenciada a pressão social para correspondermos a ideais. Curiosamente, numa altura em que devíamos sentir-nos livres, a pressão dos padrões sociais e a vontade de correspondermos ao padrão considerado ideal faz-nos querer encaixar à força. (…) Nunca se falou tanto de aceitação e de respeito pelo outro, mas depois, em questões que têm a ver com a nossa comunidade, a pressão é enorme", explica aquela socióloga. Além disso, "a sociedade japonesa é muito resistente à questão das psicoterapias e da terapia familiar".

Voltando ao casamento, para Sofia Aboim é evidente que a procura de felicidade, mesmo que forjada, é uma forma de pressão social: "É a história do ‘felizes para sempre’." Esta socióloga acredita que outra das causas da procura deste serviço seja a solidão e a anulação do "outro". "O que é que leva as pessoas, nas nossas sociedades, a não procurarem relações humanas? Porque é que é mais fácil e prático comprar uma relação com tudo o que isso poderá ter de benéfico e de negativo? Isto demonstra um nível muito acentuado de solidão, mas também de uma aceitação dessa solidão e da noção de quase impossibilidade de relação com outros. As pessoas [alugadas] correspondem à fantasia que a pessoa tem. A pessoa contratada não está a ‘pôr em cima da mesa’ os seus gostos, as suas necessidades afetivas – está simplesmente a teatralizar aquilo que o outro comprou e a corresponder a essa fantasia. Há aqui uma anulação absoluta do outro que deixa de ter personalidade", clarifica. E por referir a anulação da personalidade, veja-se a questão das tão faladas bonecas em silicone, em vinil ou em látex que chegaram ao mercado em 1981 e que hoje são vistas por alguns japoneses como as verdadeiras "substitutas do amor". O diário The Washington Post menciona o caso de Senji Nakajima, um homem de 61 anos que se diz apaixonado pela boneca Saori, uma aquisição que diz ter feito desaparecer o sentimento de solidão em que vivia. No filme Lars e o Verdadeiro Amor (2007), Ryan Gosling dá vida a um homem tímido e com dificuldades em socializar que tem por missão mostrar à família e aos amigos quão importante e real é Bianca, a boneca sexual que comprou. E sim, continuaríamos com mais exemplos. Ainda sobre a solidão, Maria José Núncio conclui: "Há quem goste de viver só, mas a maioria das pessoas não foi feita para estar sozinha. Há todo um ritual de ter companhia quando se chega a casa, alguém que, com o seu afeto, nos proteja e nos ajude a retemperar forças para o dia seguinte."

 
A dependência das relações
Quem viu alguns episódios do reality show da ABC, Wife Swap (Troca de Esposas), transmitido entre 2004 e 2010, recordar-se-á da consternação e tristeza de algumas mães ao voltar às suas famílias verdadeiras, após duas semanas de vida em comum com uma família alheia. De facto, conviver diariamente com estranhos – ainda que durante um período limitado – pode facilmente levar alguém a vincular-se de forma afetiva ao novo núcleo familiar. A maior dificuldade da indústria das famílias de aluguer é lidar com isso: a dependência dos clientes face aos membros fictícios. Cerca de 30 a 40 por cento das mulheres que alugam maridos acabam por propô-los em casamento. O contrário não é tão frequente, já que é raro que as esposas alugadas convivam com os maridos em privado por razões de segurança. O único contacto físico permitido é o de dar as mãos. "A pessoa que contrata o serviço está numa situação de vulnerabilidade emocional. É sempre uma relação pouco equilibrada. As pessoas acabam por se envolver em algo que é ilusório, ainda que possa ser satisfatório. Quando a pessoa se sente ouvida, acaba por tornar-se fácil uma afetividade. Gerir isso é que é complicado", desmistifica Maria José Núncio. E sublinha: "Não estamos a falar de pessoas alucinadas ou sem noção do real: elas sabem que estão a contratar um serviço, mas durante o tempo de vigência desse serviço sentem-se preenchidas do ponto de vista afetivo. Logo, a relação é satisfatória." Ishii é o "pai" de uma menina há nove anos, numa das famílias que acompanha. Há certamente um perigo iminente nesta relação, esclarece Sofia Aboim: "Ainda não há estudos ao nível psíquico que nos permitam tirar conclusões, mas esta transferência psicológica pode causar danos no (eventual) final desse contrato."

O lado feliz do negócio

Apesar de não estarmos a mencionar relações que nascem de forma natural – e que podem, de facto, ter um fim trágico – há um lado feliz nesta indústria. "O lado bom acontece quando se consegue criar naquelas pessoas a noção de que são capazes de se vincular ou de se voltar a vincular a alguém do ponto de vista afetivo. Uma das componentes essenciais em todos os estudos sobre realização pessoal, auto-estima e felicidade é a capacidade de se estar vinculado. Esta indústria vai suprir essa necessidade e criar a noção de que é possível ter uma vida dentro dos padrões considerados normais. Dá uma dimensão de inclusão gigante", esclarece a socióloga, que também deixa um aviso: "Devemos questionar se queremos viver em sociedades tão padronizadas. Quanto mais estruturada e rígida é uma sociedade, como a japonesa, mais difícil é ser-se ‘fora da caixa’." Consciente dessa rigidez e da necessidade de se viver sem afetos "comprados", Yuichi Ishii revelou à jornalista Elif Batuman que o derradeiro objetivo da sua empresa é "chegar a uma sociedade em que ninguém precise destes serviços". Voltar a recordar, portanto, a sensação sublime que é conhecer alguém de forma espontânea, como ao virar de uma esquina ou num café do nosso bairro. E que isso, quem sabe, pode levar a uma partilha de afetos nesse contrato bonito que é o Amor.
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