Histórias de Amor Moderno: “Todas elas me deixavam desabafos e confissões sobre o que fariam com Santiago, assim a vida lhes permitisse"

“Quando um homem te dedica este tipo de atenção, o teu coração dá um pequeno pulo, como se faltasse à pulsação”. Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Professora reflete sobre atenção de Santiago e o impacto nas relações escolares Foto: IMDB
15 de novembro de 2025 às 08:00 Maria Olívia Sebastião

Pode ser frustrante, para uma professora, convocar reuniões com encarregados de educação para concluir que, na prática, uma grande parte não faz questão de comparecer. Quando eu dava aulas nos arredores de Lisboa, isto já acontecia, mas desde que fui colocada na província deparo-me com um cenário ainda pior. Com uma turma de quase trinta miúdos do 3.º ano, chego a ter dez, doze pais presentes. E, quando digo pais, é pela aplicação da regra do masculino genérico: na verdade, são as mães que assistem às reuniões na esmagadora maioria dos casos.

As exceções são o senhor Rúben, mais velho do que a generalidade dos pais - andará pelos quarenta e muitos -, que assiste às reuniões sempre acompanhado pela mulher, Tânia, substancialmente mais nova do que ele; e Santiago Julião, um homem que o próprio nome anuncia exatamente como deve ser anunciado: com esmero, com pompa, com uma espécie de ribombar de palavras que se prolongam e ressoam.

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Acredito que Santiago Julião seja uma das poucas razões que levam boa parte daquelas oito a dez mulheres a participarem nas reuniões de pais e em certas atividades escolares dos seus filhos. Não diria que se trata de um homem elegante. Faltam-lhe a subtileza e o toque de bom-gosto para o habilitarem a tanto. Mas é bonito, sem dúvida. E é confiante. Num meio onde todos os homens se parecem uns com os outros, com as mesmas cores de roupas, com o mesmo corte de cabelo, curto e rápido, com as mesmas botas de trabalho e camisas sem qualquer característica distintiva, observar alguém com coragem para ter um estilo próprio é, só por si, inspirador. Dentro do estilo, claro.

O Santiago é um homem alto. Não é altíssimo. É alto. Mais alto do que quase todos por aqui. Mas não é só a altura que o eleva, é também a postura. Hirto, seguro, vertical, imponente, nota-se que gosta de encher o peito e endireitar as costas como se montasse a cavalo. Quem me ouvir descrevê-lo há de julgar que tenho um fraco por Santiago Julião, porém não é esse o caso. Limito-me a constatar o que fui observando com espírito crítico e tempo para tomar as minhas notas.

“Ele vai ficar solteiro em breve, porfessora”, disse-me a mãe de uma das miúdas. Chama-se Lídia, é uma senhora pouco mais velha do que eu, deve ter feito os 30 anos há pouco. Foi mãe muito cedo, segundo os padrões contemporâneos. “Porque não aproveita?”, sugeriu Lídia, sabendo que sou solteira, e piscou-me o olho com cumplicidade. “Eu, se pudesse, não perdoava”, disse-me, e levou depois a mão à boca, como quem se arrepende - “ai, que desavergonhada que eu pareço, olhe que eu não sou assim, professora”, desculpou-se. Talvez não seja assim, mas sei bem que, se pudesse, não lhe perdoava, como a própria disse.

Não é a única. Ana Rita, uma mãe um pouco mais velha do que Lídia e, tal como esta, casada mas sem felicidade, é outra que se derrete com os encantos de Santiago Julião. “Já sabe, professora?” Já sei o quê? “Do Santiago?” Já sabia, pois claro. Quem é que na vila não sabia? Era, talvez por isso, que Santiago assistia às reuniões de pais, em vez da mãe do pequeno Raul, filho de ambos.

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Acontece que a mulher de Santiago Julião, a mãe de Raul, tinha decidido separar-se do marido - ou ele dela, as versões divergiam consoante a simpatia por cada um dos elementos do casal. Ainda não estavam oficialmente divorciados, mas já não viviam juntos. “A Vanessa deixou-o”, contavam-me uns. “Ele mandou a Vanessa embora, pôs-lhe as malas à porta”, afirmavam outros. Em qualquer dos casos, Santiago Julião não parecia minimamente abalado pela mudança na sua vida. Pelo contrário, mostrava-se sempre confiante e jovial, afável e tranquilo - não era propriamente pacato; parecia antes um homem bem resolvido, e isso é uma extraordinária ferramenta de produzir charme.

Matilde, Beatriz, as duas Carolinas, Joana e Maria José, só para citar as mais assíduas nas reuniões: todas elas me deixavam desabafos e confissões sobre o que fariam com Santiago, assim a vida lhes permitisse concretizar desejos e fantasias. Já o próprio, sempre que entrava na sala, precedido pelo perfume farto que lhe anunciava a presença e que, por sua vez, fazia pronunciar mentalmente o seu nome comprido e opulento - “olha, chegou o Santiago Julião” -, lidava com a percepção desses desejos contidos com uma habilidosa discrição. Fingia que não notava nada nos olhos de todas aquelas mulheres, mas não lhes negava simpatia, nem se fazia rogado com a atenção que lhe dedicavam. Conversava, sorria, mostrava-se gentil. Enfim, comportava-se como um tradicional quebra-corações, mas sem se pôr em bicos de pés, sem ter necessidade de se afirmar, sem se armar em coisa alguma. Santiago era simplesmente assim e o mundo apreciava-o por isso mesmo.

Recentemente, o Santiago começou a conversar mais comigo, de um modo mais próximo, menos formal. Sempre com educação, sem dúvida, mas a sugerir algo mais do que uma simples relação professora-encarregado de educação. Nunca nada no seu discurso foi direto, explícito ou, sequer, demasiado sugestivo. Era a maneira de me abordar, de se dirigir a mim, de me olhar fixamente ao ponto de me fazer hesitar. Não me passava pela cabeça deixar-me levar por sentimentos, a minha situação é, espero eu, temporária e, para o ano, hei de ser colocada noutra escola qualquer, possivelmente noutra região do País. Mas não vou negar que aquela atenção que subitamente passou a dedicar-me mexeu comigo: mexeu, claro.  

Sou uma pessoa sozinha, solteira e livre há já algum tempo. Quando um homem, ainda que seja um de presença exuberante e gosto duvidoso, te dedica este tipo de atenção, o teu coração dá um pequeno pulo, como se faltasse à pulsação. Este caso era agravado pelo facto de se tratar de alguém constantemente rodeado de mulheres que, mesmo que o neguem, o desejam. Senti-me escolhida. Senti-me especial.

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É quando nos sentimos assim que, por norma, surgem os problemas. No meu caso, aplicou-se a norma. Notei que Lídia e uma das Carolinas não se falavam e não falavam com Santiago. Nem o cumprimentavam. E comigo falavam a custo. Carolina deixou mesmo de vir às reuniões e de responder às solicitações para todo o tipo de atividades. Insisti, perguntei o que se passava. Respondeu-me de maneira muito seca na caderneta do seu Bruno, a dizer apenas: “Não gosto de promiscuidades.” Assim mesmo, no plural: “promiscuidades”. Embora fosse relativamente fácil ficar com uma ideia vaga do que poderia ter-se passado, não consegui interpretar o completo alcance daquele desabafo. O que andaria a fazer Santiago Julião com o coração - e sabe-se lá mais o quê - daquelas pobres mulheres mal casadas e infelizes?

Prometi a mim mesma que não o deixaria aproximar-se mais. Decidi usar o senhor Ruben e a esposa Tânia como escudo: passei a aproximar-me deles, dedicar-lhes mais tempo e atenção. Esperei, desse modo, repelir Santiago e fazê-lo abrandar o ímpeto de se chegar demasiado perto de mim. E, a princípio, pareceu-me que a estratégia estava a resultar. Ele, educado e gentil, soube manter uma certa distância, percebendo que eu tinha inscrito num chão abstrato uma linha que não era para transpor - e que ele não transpôs.

A minha nova postura rendeu-me alguns dividendos, a começar pela paz de espírito. Não queria, de modo algum, que pela escola começassem a circular boatos e mexericos. Já me bastava as constantes sugestões para que me aproximasse de Santiago - sugestões que eram uma espécie de conselhos venenosos, pois não acredito que, de verdade, aquelas que me sugeriam tal coisa me desejassem grandes felicidades junto do homem com que fantasiavam. Mas também me rendeu uma consciência mais clarividente - e essa permitiu-me concluir que a minha decisão fora a ideal.

Afastando-me e divergindo a minha atenção de um ponto para outro, fui capaz de compreender aquilo que ainda não tinha visto: a forma como Tânia, a esposa do senhor Ruben, e Santiago se galanteavam mutuamente com grande requinte, quase finesse. Ninguém em redor parecia dar-se conta do que se passava. O senhor Ruben certamente não se apercebera de nada. De início, comecei a achar que talvez fosse impressão minha, mas as dúvidas foram-se dissipando até que, na festa de final de ano, tudo se tornou claro.

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Lídia e Carolina voltaram a falar-se e decidiram conversar comigo. A primeira, meses atrás, tinha-se apaixonado por Santiago e quase haviam chegado a vias de facto. “Felizmente, não fizemos nada de sério.” Beijaram-se uma vez, já não sei onde. Com Carolina foi diferente. Envolveram-se a sério. Não percebi por que decidiram contar-me tudo aquilo, precisamente num momento que se queria festivo. “Queremos acertar contas com a Tânia, queremos que tudo se saiba.” Na cabeça delas, Tânia tinha-lhes roubado o homem que desejavam. “O que é que vocês ganham com isso?”, perguntei-lhes. Não sabiam responder. Queriam simplesmente vingar-se. “Pensem no senhor Ruben. Vão destruí-lo.” Não me deram ouvidos. No dia seguinte, metade da escola já sabia de tudo. E eu formalizei o meu pedido para sair no final do ano letivo.

* Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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