I
Às vezes, fico a olhar desde a porta da cozinha, como se espreitasse - prefiro que ela não dê pela minha presença, quero observá-la como se eu fosse um daqueles documentalistas da vida selvagem e ela um animal no seu habitat natural, um ser livre, a fazer pela vida. Pega no tupperware e, com uma colher ou uma escumadeira, consoante o cozinhado, armazena a sua porção de comida. Depois, limpa o recipiente, para que das bordas não pinguem molhos. Arruma-o na lancheira. Junta-lhe uma peça de fruta embrulhada num guardanapo ou em papel de alumínio, exceto quando é uma banana. A banana não precisa de película protetora, a casca faz a função. Noutro guardanapo de papel, enrola um conjunto de talheres, garfo e faca, ou, com certos cozinhados, adicionando também uma colher.
Contemplo o ritual da Liliana com atenção e chego a deixar-me emocionar com ele. Dificilmente haverá alguma coisa mais romântica do que a arrumação do dia seguinte. Por tudo o que representa. Significa que estamos organizados, claro, mas acima de tudo quer dizer que prevalecemos tal como estamos, que temos esperança e expectativa quanto ao que virá a seguir, que não nos jogamos à vida deixando-a nas mãos do acaso nem do improviso.
De cada vez que ela arruma os talheres na lancheira, eu penso "amanhã cá estaremos de novo". E essa é uma sensação impagável, dificilmente comparável. É o conforto máximo, possivelmente a definição mais perfeita do amor - o amor mesmo amor, aquilo que fica depois da euforia da novidade e da paixão. Há quem veja nestes gestos e rituais apenas a rotina, a repetição, a previsibilidade. Mas esse é um olhar superficial. Quando olhamos e prestamos atenção, percebemos que se trata, na verdade, de uma repetição de ciclos: metódica, precisa, necessária. Como os batimentos cardíacos, os meses lunares, o dia sideral ou a rotação da Terra.
Desde que, há mais de oito anos, eu e a Liliana começámos a namorar, o tema "casamento" nunca veio à conversa. Não o nosso casamento. Nunca foi um projeto, nem um plano, nem um esboço. Nunca foi sequer uma ideia. Desde que nos conhecemos, o casamento foi sempre visto, pelos dois, como uma manifestação incontornável de um certo modo de estar, um resultado de uma praxis social coordenada por - ou sintonizada com - um status quo no qual nunca nos revimos. Crescemos a ouvir os Stooges, os Dead Kennedys e os Clash, os Ramones, os Misfits e os Buzzcocks. Nunca acreditámos em alianças douradas, véus, grinaldas e a bênção das instituições para que pudéssemos deitar-nos juntos e satisfazer desejos. Qualquer assento de um carro, qualquer beco escuro, qualquer tenda de campismo serviu, durante anos, para que nos amássemos como sempre nos amámos.
Com o tempo, amadurecemos, decidimos viver juntos, partilhar casa. Ainda ouvimos os mesmos punks, ainda acreditamos que o mundo precisa de mais consciência e menos egoísmo, ainda fumamos coisas que não devíamos - embora com cada vez menos frequência, em menores quantidades e de melhor qualidade, que aquilo que a idade tira em resistência física acaba por compensar em capacidade financeira, se tudo correr bem (e tem corrido bem). E nunca falámos sobre casar.
O ritual da Liliana de preparação do almoço seguinte tem sobre mim um poder hipnotizante. Deixa-me fixado no que ela faz, nos gestos, nas pequenas tarefas que executa, e é nessa dimensão física e concreta que me deixo estar enquanto a observo. Mas, dentro da minha cabeça, eu estou noutro patamar, num onde me deixo emocionar e embevecer, e onde estranhamente sinto vontade de lhe dizer que quero que ela seja minha mulher. Ela já é minha mulher, eu sei, ela sabe, todos sabem. Mas falo de ser minha mulher mesmo, desposada, de certo modo certificada - certamente pelas instituições que sempre deplorámos, mas, ainda assim, seria uma garantia geral, um documento oficial a dizer que somos um do outro. Não como um título de propriedade, mas antes como uma proclamação pública e impossível de contrariar. "Como podem verificar, esta é a Liliana, que é a minha mulher e eu sou o seu marido, como os documentos atestam."
II
Ganhei coragem. Não, não pedi a Liliana em casamento, isso seria uma loucura. Ela iria achar hilariante, rir-se-ia muito, acharia que era piada. Depois, eu seria obrigado a explicar-lhe que não, que não era piada, que era a sério. E ela ficaria muito séria e parada diante de mim, com um olho ligeiramente semicerrado, como quem pesa a situação e avalia se pode ou não corresponder à realidade. E, após alguns momentos de hesitação e suspense, desataria novamente a rir e repetiria que eu tenho muita graça e que quase a apanhava. E restar-me-ia uma de duas opções: rir-me e dizer que sim, que estava a tentar apanhá-la; ou reafirmar a seriedade do pedido, o que seria arriscar-me a criar um conflito grave, provavelmente ouvindo uma frase seca, "ó Fábio, não sejas ridículo".
Ganhei coragem, sim, mas para abordar delicadamente o assunto, conversar um bocadinho acerca do matrimónio, ainda que no horizonte da conversa não estivesse propriamente a possibilidade clara de se tratar do nosso casamento. Era sobre o casamento, assim, no geral. Disse-lhe que havia coisas que, com o tempo, aprendemos a apreciar. Elementos, momentos, gestos que acabam por tornar-se o porto-seguro de uma vida que vai progredindo, mas que nunca sabemos ao certo onde vai dar. Contei-lhe que a observava, por vezes, nos gestos mais mundanos, no meio de um quotidiano aparentemente raso e sem interesse, que isso me deleitava, porque me fazia sentir aconchegado e seguro. Que essas suas rotinas me ajudavam a reconhecer o sítio onde estamos, o momento que vivemos, o lugar a que pertenço. Acrescentei que essa perceção me fazia apreciar a beleza oculta do casamento.
Acredito que a Liliana tenha compreendido a minha ideia. Ela é sensível e é perspicaz. Mas também é dura. E teimosa. Vi que dentro dela algumas barreiras se desfaziam enquanto pensava no que eu acabara de lhe dizer. Só que a Liliana não se deixa amolecer assim tão facilmente. "Isso é tudo muito bonito, mas eu via perfeitamente como era o casamento dos meus pais. E vi como acabou. Não foi bonito."
O divórcio dos pais dela foi um dos ingredientes do caldo que fez da Liliana uma punk quando tinha apenas 13 anos. Mas o casamento que precedeu o divórcio abriu nela feridas muito mais dolorosas e ardentes do que a separação dos pais. A sua descrição do dia-a-dia é uma pequena galeria de horrores - mas daqueles horrores invisíveis, de silêncios pesados, de sussurros ameaçadores e de esgares insanos, de ódios e de segredos, de lágrimas a correr pelas faces da mãe quando estavam à mesa sem que aparentemente houvesse nada que o justificasse. Do pai a pegar nos talheres e a arremessá-los pela sala, destruindo objetos, partindo loiças. Do nada. Sem aviso. Sem justificação.
"Não, meu amor. O casamento não é só uma instituição: é uma instituição mental!" Tentei contrapor. Explicar-lhe e dar-lhe exemplos de matrimónios que correram bem, de casais que viviam felizes, casados, em vidas convencionais simplesmente agradáveis, satisfatórias, fabricando pequenas parcelas de normalidade, um dia de cada vez. "Como os teus pais?", ripostou, agressiva e visivelmente enervada, como se eu a estivesse a acossar. "Os teus pais eram muito felizes no seu casamento, é isso?" Não consegui responder. "Eram ou não? Diz-me. Fala comigo, Fábio." Senti a garganta apertar-se-me, senti que ia chorar. "Não guardes essas coisas para ti, meu amor. Podes contar-me tudo." Ela conhece-me. Sabe os meus pontos fracos. Sabe de mim até aquilo que eu não lhe conto. Até aquilo que eu nem para mim penso e achei que já tinha apagado.
III
Esta manhã, ao pequeno-almoço, enquanto eu tirava um café para cada um, cumprindo a rotina, a Liliana disse: "Sabes quem me disse que se vai casar na próxima primavera?" Fiz aquela expressão silenciosa e interrogativa que significa "quem?" "A Márcia. Imagina: a Márcia!" A Márcia fora a melhor amiga da Liliana durante a adolescência. Profundamente descrente de tudo aquilo a que chamava "convenções do establishment", depois de terminar o liceu decidiu ir viajar sozinha. Andou mais de seis anos sozinha pela Europa, e sabe-se lá mais por onde. Voltou rica em histórias e em experiências, mas distante, demasiado distante do ponto onde nos havíamos encontrado pela última vez, aquele onde se separou da sua amiga de sempre, a Liliana, minha companheira, minha possível mulher.
O afastamento entre elas não implicou uma completa perda de contacto. Ainda trocam mensagens, comentam publicações uma da outra nas redes sociais. Ocasionalmente, falam ao telefone. A Márcia ainda é, para a Liliana, um exemplo de independência e uma referência de modelo alternativo de vida numa "sociedade ocidental apodrecida". "Já imaginste, Fábio? A Márcia. Quem diria." Depois fez uma pausa. Bebeu um gole de café. "Se calhar, eu devia pensar melhor nisso do casamento", e riu-se. Pegou na lancheira, deu-me um beijo de até logo e saiu para trabalhar.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.