Histórias de Amor Moderno: “Foi então que o Robert estragou tudo: abraçou-me e, num momento de entusiasmo excessivo, tentou beijar-me”

“A princípio, não liguei muito às câmaras de televisão, mas entretanto percebi que elas amiúde se voltavam para a bancada e filmavam o público.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Num bar, Robert causa tensão ao tentar beijar Alexandra, que pensa em Xavier Foto: IMBD/ 'Past Lives'
26 de julho de 2025 às 09:00 Maria Olívia Sebastião

Lembro-me de estar deitada de costas, a boiar nas águas serenas e penumbrosas do Rio Homem, completamente sozinha. Não ouvia mais nada além dos sons da água resvalando devagar no meu corpo. Em poucos segundos, pensamentos sobre a escuridão e a profundidade daquela albufeira apoderaram-se de mim. O que haveria lá em baixo? Estranhos seres aquáticos? Civilizações secretas? Carpas, salmões e cobras de água? Monstros, como o do Loch Ness, enguias gigantes? Civilizações subaquáticas? 

Lembrei-me então de que estava a flutuar sobre as ruínas submersas de Vilarinho das Furnas, uma aldeia cuja existência fora sacrificada para que pudessem construir aquela barragem. Olhei em volta – nem uma pessoa, nem um animal, exceto os raros insetos. Senti um receio que não consigo explicar. A solidão torna-se muito mais assustadora quando flutuamos sobre as águas escuras sob as quais jaz uma antiga povoação. E as águas ficam ainda mais ensombradas quando olhamos em redor e não descortinamos vivalma. Não haverá quem acuda se das profundezas surgir uma barbatana, um tentáculo, quiçá um braço antigo, já só feito de osso. 

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Nadei com pressa, mas disfarçando o pânico, até à margem. Não sei por que procurei disfarçar o meu susto, o meu medo. Não havia ali quem pudesse ver-me. Porém, por qualquer razão misteriosa, sentia que me observavam. E não estava errada: enquanto me enxugava, junto à água, surgiu do meio da vegetação, louro como sempre, Robert. Na verdade, eu não estava sozinha nesta minha aventura. O Robert era o meu companheiro de viagem. Era suposto esta ter sido uma viagem mais ou menos romântica, uma espécie de fuga louca a dois rumo ao desconhecido. Só que um certo evento transtornou a nossa jornada e acabámos cada um para seu lado – juntos, mas sozinhos. 

O Robert era um rapaz alemão que eu conhecera em Lisboa nesse verão. Demo-nos bem. Sentia-me atraída por ele e diria que ele estava a apaixonar-se por mim. Não tínhamos sentimentos recíprocos: o que ele sentia por mim era mais forte e intenso do que aquilo que eu sentia por ele. Contudo, era verão, eu ainda não tinha uma situação amorosa estável, ele era giro, eu era gira, éramos ambos jovens – que mal tinha se nos metêssemos, juntos, rumo à aventura num périplo pelo Norte de Portugal, cujo ponto alto seria um acampamento no Gerês? “Vamos juntos e logo se vê”, disse-me ele numa tarde, enquanto contemplávamos a vista sobre a Baixa lisboeta. E eu achei a ideia boa. No dia seguinte, metemo-nos num comboio e fomos. Não sabíamos bem para onde. 

Na altura, eu era descomprometida, mas não solitária. Havia um rapaz, com quem vim a namorar mais tarde e durante muitos anos, por quem tinha sentimentos sérios. Já tínhamos estado juntos diversas vezes, eu e esse rapaz. Mas não tínhamos uma relação estável, pois ele ainda vivia em Madrid e eu estava em Lisboa. A distância separava-nos, mas os sentimentos aproximavam-nos. Então, tínhamos uma espécie de relação prometida: não éramos namorados, não tínhamos como sê-lo, mas éramos, sem dúvida, um do outro

Quando aceitei fazer aquela viagem ao Gerês com o Robert, não tinha em mente evitar a todo o custo que alguma coisa acontecesse entre nós. Pelo contrário, sabia perfeitamente que iríamos envolver-nos no decorrer da jornada. Aliás, eu queria que isso acontecesse – e não tinha nada no mundo que me impedisse de o fazer, ou que sequer pudesse fazer-me sentir mal a esse respeito. No entanto, no meu íntimo, de alguma forma eu sentia que estar com o Robert era uma forma de traição ao meu futuro namorado. Mesmo que não fosse, mesmo que eu não tivesse motivos para sentir dessa maneira – era assim que eu sentia. 

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O meu então futuro namorado chamava-se Xavier. Falávamos todos os dias, pelo menos uma vez. E ao longo do dia íamos trocando mensagens, como se já estivéssemos juntos, como se tivéssemos uma relação estável, séria. Sabíamos que ainda não tínhamos essa relação, mas, apesar de não o verbalizarmos, sabíamos que era isso que não só queríamos, mas também esperávamos num futuro próximo. Eu queria ficar com ele e ele queria ficar comigo. 

Nesse verão em que conheci o Robert, pressentindo que havia entre mim e o rapaz alemão uma certa química, nunca falei dele ao Xavier. Ou, se falei, tê-lo-ei feito de forma discreta, subtil, fugaz, como se não tivesse importância. Depois, quando decidimos, eu e o Robert, cometer a pequena loucura de escapar da realidade por uns dias rumo às serras do Norte, disse ao Xavier que ia fazer uma espécie de retiro – que precisava de estar sozinha, que queria pensar, contemplar, sentir a terra, o sol e a solidão, apreciar o tempo, reiniciar o espírito. Enfim, no fundo, preparar-me para uma nova temporada – uma temporada que incluiria uma mais que provável relação séria com ele. O Xavier achou boa ideia. Recomendou-me apenas cuidado e fez-me um único pedido: que todos os dias lhe mandasse uma mensagem com novidades, para que não ficasse preocupado. 

O Robert não sabia que o Xavier existia na minha vida. Não achei que fosse pertinente contar-lhe acerca desta minha relação-por-acontecer com uma pessoa que nem estava por perto, até porque o Robert – e eu tinha-o muito claro para mim – era uma escapadela, uma aventura, uma diversão. Com mais ou menos intensidade, com maior ou menor prazer, seria sempre uma aventura com os dias contados: quando a viagem chegasse ao fim, a nossa história acabava para que as nossas vidas pudessem continuar. 

A nossa viagem começou bem. Fizemos uma paragem no Porto, passámos lá uma noite. Jantámos, fomos a alguns bares, bebemos, rimo-nos e dançámos. Beijámo-nos. Envolvemo-nos. O que era para acontecer, aconteceu. Sem surpresas nem sobressaltos, fizemos amor no quarto da pensão – uma das mais antigas e baratas do centro da cidade, o sítio perfeito para uma ilusão de paixão clandestina. 

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Na manhã seguinte, havia uma tensão estranha. O Robert estava muito entusiasmado, mas eu não partilhava do seu entusiasmo. Para mim, tudo estava exatamente igual. Sim, tínhamos dormido, juntos, mas e então? Os americanos têm uma expressão magnífica para estas situações, "friends with benefits" – continuávamos a ser apenas amigos, companheiros de jornada. Colmatámos a solidão com o aconchego um do outro porque, enfim, porque não? Mas não tínhamos de dar beijinhos ligeiros nos lábios um do outro, “bom dia, amor”, nem de andar de mãos dadas na rua. 

Ao pequeno-almoço, o Robert, já mais conformado com a situação da amizade com benefícios, mudou o rumo das conversas – e ainda bem, pois começava a sentir-me pressionada. "E se fôssemos primeiro a Guimarães?", perguntou. Em vez de irmos diretos do Porto para o Gerês, o Robert sugeria que passássemos essa noite em Guimarães. "Boa ideia, podemos conhecer a cidade, eu também nunca lá estive", respondi-lhe. "Sim", disse ele, e depois sorriu, com uma malandrice que me pareceu sexy. "E também podíamos ir ver o futebol", acrescentou por fim. Fiquei confusa, surpreendida pela sugestão, mas também empolgada. 

Não é que eu goste de futebol. Nem sequer ligo. Mas achei o desplante do Robert deveras atraente. Pensou como um homem confiante. Foi charmoso. Desafiou-me para um programa inusitado, inesperado, fora do plano, e tudo em nome do seu interesse pessoal. Sim, porque o Robert era um alemão fanático por futebol. Adepto do Bayer Leverkusen – não sei se é bom, se é mau –, tinha na ideia ver, pelo menos, um jogo do Benfica ao vivo enquanto estivesse em Portugal. "Porquê o Benfica?" "Porque é um rival antigo", respondia. 

Nessa noite, o Benfica jogaria em Guimarães. Era um jogo qualquer daqueles de pré-época que ainda não contam para nada, mas que servem para entreter. Era o que havia. Acedi, e lá fomos nós: primeiro, para Guimarães, onde nos instalámos bem no centro da cidade, numa pousada da juventude, e, à hora do jogo, para o estádio. 

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Foi esta ida ao estádio que fez com que eu e o Robert tenhamos passado o resto da viagem sozinhos, embora dormíssemos na mesma tenda – completámos a viagem tal como a tínhamos planeado: fomos para o Gerês, acampámos, tudo. Só não o fizemos como dois apaixonados, nem sequer como dois "amigos com benefícios". Fizemo-lo como duas pessoas que partilham tenda, viagens e despesas, que se certificam regularmente de que o outro está bem e que pouco diziam uma à outra por estarem fechadas, cada uma no seu próprio mundo. 

Entrámos no estádio e eu, que não tenho a menor experiência de ir ao futebol, não sabia bem ao que ia. Descemos umas escadas e depois chegámos a um recinto que tinha uma bancada, que descemos também. Procurámos o setor, a fila e o lugar de cada um. Ocupámos os lugares. Sentámo-nos. Apercebi-me de que estávamos na segunda fila imediatamente a seguir aos painéis de publicidade que separam o relvado das bancadas, atrás de uma das balizas. Víamos tudo de perto: os jogadores, os árbitros, a bola, as garrafas de água que os guarda-redes conservam junto à rede da baliza. As câmaras de televisão. A princípio, não liguei muito às câmaras de televisão, mas entretanto percebi que elas amiúde se voltavam para a bancada e filmavam o público. E pensei "ai, o Xavier". Benfiquista, certamente estaria pronto para ver o jogo na televisão. Ok, pensei, e tentei não entrar em pânico. "Era preciso um grande, grande azar." 

O Robert, ao meu lado, sem saber do turbilhão que me revolvia a cabeça e os pensamentos, estava entusiasmado, claro. Ainda por cima, o Benfica atacava para aquela baliza na primeira parte. "Vamos ver golos", exclamou, no seu inglês atrapalhado, acrescentando "vamos Benfica!", com uma pronúncia estranhamente boa para um estrangeiro vindo da Alemanha. Eu sorria e só pensava "não, por favor, levem o jogo para longe daqui, apontam as câmaras para outro sítio". O meu coração batia muito acelerado, sentia-me quente, a transpirar. De cada vez que os jogadores se aproximavam, de cada vez que a bola vinha para a zona daquela baliza, eu olhava para baixo, para o lado, para trás – para todo o lado, menos para o campo, não fosse o meu olhar cruzar-se com uma câmara de televisão apontada ao meu rosto.  

Até que, numa dessas perigosas aproximações do jogo ao local onde nos encontrávamos, ouvi da bancada um grande clamor e do árbitro um apito: "It’s a penalty!", exclamou o Robert, exultando. E eu, sem perceber o que se passava, sorri e gritei "boa!" Só que o penalti era ali, diante de nós. Os jogadores parados, o jogo parado, o árbitro parado, o público suspenso – e as câmaras apontadas para a bancada. Não sabia o que fazer. E foi então que o Robert estragou tudo: abraçou-me e, num momento de entusiasmo excessivo, tentou beijar-me. A custo, libertei-me dele e fugi, bancada acima, dando uma desculpa fraca, do tipo "vou à casa de banho". 

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E fui à casa de banho. Fui e não voltei, até o jogo acabar. Fechei-me na casa de banho e lá fiquei, em pânico, sem saber o que fazer a seguir. O Robert tentava ligar para mim, mas eu não atendia. Não sabia o que lhe dizer. Então, desliguei o telefone e fiquei quieta. 

No final do jogo, liguei novamente o telefone e mandei mensagem ao Robert, "onde estás?" "A caminho do hotel", "ok, até já". Não me perguntou o que se tinha passado. Simplesmente, percebeu que alguma coisa se passava e que ele não fazia parte dessa coisa. De então em diante, quase não falámos, embora tenhamos feito toda a viagem juntos e a dormir na mesma tenda. 

Durante o regresso a Lisboa, eu e o Robert continuámos sem falar. Troquei mensagens com o Xavier, disse-lhe que o retiro tinha sido bom, refrescante, que a solidão, me revitalizara. "Não vais imaginar", disse ele. "No outro dia, estava a ver o jogo do Benfica e apareceu, durante um milissegundo, uma rapariga atrás da baliza que era mesmo parecida contigo." O meu coração parou. Respirei fundo, "um, dois, três, quatro, cinco, Alexandra concentra-te, seis, sete, oito, nove, dez, expira Alexandra". E respondi-lhe "LOL um dia, iremos juntos ao futebol"

*Ouça a História de Amor Moderno .

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*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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