Quando nos sentámos, tudo estava bem, tudo correto, adequado, ajustado. Ele, muito bem vestido, com simplicidade e bom-gosto. Um blazer tailor-made aberto sobre uma camisa impecável, tudo em tons de azul - a camisa clara, o casaco um pouco mais escuro. Lembro-me de ter pensado "um branco imaculado ficaria melhor sob o casaco", mas depois de reconsiderar achei a escolha inteligente. Íamos ter um jantar para nos conhecermos, não uma reunião de negócios.
Martim. O nome podia ser um mau indicador. Tradicionalmente, Martim indicia boas origens, um meio educado, possivelmente conforto financeiro. Contudo, as últimas décadas banalizaram os martins e agora qualquer suburbano a ganhar mil euros num armazém de revenda em Sacavém pode facilmente chamar-se Martim. Tenho uma amiga que diz que a culpa é das telenovelas, que criam ícones pop descartáveis a quem dão nomes nobres ou da burguesia que acabam por ser replicados pela audiência sem qualquer espécie de cuidado ou pudor. "São os pobres", diz ela. E eu não estou a dizer que concordo, limito-me a repetir o que ela diz. Porém, não era o caso. Este era um Martim legítimo.
O jantar começou bem. Já tínhamos conversado um pouco na app depois de fazermos match, pelo que tínhamos uma base comum, um ponto de partida para o entendimento e para a partilha. A conversa fluía bem. Quando chegaram os menus, perguntou-me se eu queria escolher o vinho. Disse-lhe que não, mas desafiei-o a adivinhar o que eu queria. Ele olhou para mim, sorriu e, em silêncio, deu uma vista de olhos pela lista. Depois apontou para mim e disse um nome qualquer, que eu desconhecia por completo. Eu fiz aquela cara de quem não sabe do que se trata e ele explicou "é um Bairrada, 100% Baga". Informei-o de que preferia outra coisa, "eu gosto dos vinhos do Douro", disse-lhe. E ele franziu o rosto com um certo espanto e depois sorriu como quem acha ridículo o que eu acabara de dizer.
Fiquei a pensar no assunto enquanto ele procurava um vinho do Douro que combinasse o gosto dele com a minha preferência. "Porque é que fizeste aquela expressão quando eu disse que preferia o Douro?" O Martim suspendeu toda a ação e olhou-me, pausando o tempo. E depois disse, e passo a citar com o maior dos rigores, "o que disseste não está correto derivado ao facto de haver vinhos muito diferentes numa região tão vasta como o Douro". E eu só conseguia pensar naquilo, no facto de ele ter realmente dito "derivado ao facto". Ele falava, falava, falava, perguntava coisas, olhava-me, insinuava-se, sorria e na minha cabeça rodava em loop "derivado ao facto, derivado ao facto, derivado ao facto".
Não voltei a ver o Martim depois daquele nosso encontro. Aliás, quando terminámos o jantar, ele pediu a conta - felizmente, fez questão de pagar sozinho, o que só lhe ficou bem -, despedimo-nos com um beijinho na face - o que mostra que o Martim não é pessoa de dois beijinhos - e fomos cada um para o seu destino. Ele ainda voltou a mandar-me mensagens, mas nunca lhe dei resposta. Há coisas que, para mim, são inegociáveis. Há red flags que levo muito a sério. No caso do Martim, melindrou-me que, num primeiro encontro, não tivesse tido a sensibilidade suficiente para não me contrariar, para não me corrigir. Em cima disso, ainda usou uma expressão errada, ridícula. Não tolero mau português.
Dizem que os gostos não se discutem. Não sei se será mesmo assim. Não sei se podemos determiná-lo com tamanha assertividade. Mas sei que os meus gostos têm os seus requintes e contornos, e sei que não gosto de ser desafiada ou confrontada no que toca àquilo de que gosto. E prefiro acabar com as ilusões logo quando surgem os primeiros sinais de que alguma coisa, no futuro, pode vir a desiludir-me, ou de que haverá, entre mim e a outra pessoa, incompatibilidades. O caso do Martim é uma boa amostra. Eu nunca conseguiria superar aquela expressão estúpida, "derivado ao facto". Nunca.
Já tive outras situações em que os avisos, os sinais, as premonições se manifestaram através de pequenos gestos, palavras ou ações. Desde aqueles que logo no primeiro impacto se revelaram - um que nem me abriu a porta do carro, outro que permitiu que dividíssemos a conta, e outro ainda a que os pelos do peito saíam pelo colarinho da t-shirt (nem percebi se alguma vez usava camisas, já que me levou a sair assim mesmo: de t-shirt) - aos outros com quem precisei de conviver um bocadinho mais para lhes perceber os defeitos, as fraquezas - um que tudo o que conhecia do mundo era meia-dúzia de cidades em Espanha, nunca saíra da Península Ibérica, ou o Ricardo, cujo nome infelizmente nunca esquecerei, e que só ao fim de andarmos há mais de um mês me perguntou porque é que eu gostava tanto dos objetos com aquele emblema "LV" - e eu, achando que ele se estava a meter comigo, ri-me, porque achei piada. E ele "não, a sério, LV é do quê? São tipo as iniciais da tua mãe, do teu pai?" Obviamente, não me recompus do choque e deixei-o no próprio dia. Como é que alguém pode ser tão ignorante?
A minha mãe critica-me. Diz-me que pareço perseguir os defeitos dos homens com quem saio, que nem os chego a conhecer o suficiente, que recuso à partida oportunidades que até podiam ser boas. Tento explicar-lhe que não conseguiria ter uma relação com alguém que não corresponda cem por cento àquilo que procuro. "Quanto mais escolhes, menos acertas", diz-me ela. E pode ter a sua razão, mas que me importa isso? Acho que devo ser exigente. Acredito que tenho o direito de encontrar o homem perfeito. Eu sei que o homem perfeito até pode não existir, mas há de haver um algures por aí que seja perfeito para mim.
Nem sempre fui assim pragmática. Já houve tempos em que também eu me apaixonava com ingenuidade e inocência, acreditando que o amor surgia e depois, só porque o coração palpitava mais depressa, tudo iria correr bem. Descobri da maneira mais dura que não é assim que acontece. O meu primeiro amor deu-me o maior desgosto de que me lembro e o segundo mostrou-me o quão devastadora pode ser uma desilusão. O Joaquim, o primeiro de todos, deixou-me porque se apaixonou por outra pessoa. Ele, que me jurava amor eterno e que prometia que envelheceríamos juntos. "Para sempre contigo", dizia-me. Mas não o julgo e até lhe perdoo. Éramos muito jovens. Quem é que sabe o significado de "para sempre" quando tem 18 anos? O Eduardo, meu segundo e último amor, enganou-me. E, na verdade, também se enganou a ele mesmo. Demorou demasiado tempo a conhecer-se e a compreender os seus gostos e instintos. Desejo-lhe uma boa vida, agora que sabe quem é e quem deseja. Mas perdê-lo - "Sílvia, preciso de te contar uma coisa" - doeu-me demais, porque eu nem sequer podia ficar chateada com ele, não o podia odiar - "eu acho que não gosto de mulheres". Foi demasiado duro.
Essas duas cicatrizes acompanham-me há muito e pensei, e ainda penso, muito nas feridas de que resultaram. Acredito que os sinais estavam lá, eu é que não os vi. Às vezes, são pequenas coisas, é fácil que passem despercebidas. Fui ingénua, ou então só distraída. Mas prometi a mim mesma que não volta a acontecer. O amor mais importante da minha vida é o meu amor próprio. E, para o preservar, tenho de exigir o máximo, esperar o melhor, ansiar pela perfeição. Se não for perfeito, não o quero para mim. Prefiro ficar sozinha. Eu sei que gosto de mim e que não me magoo. Eu confio apenas em mim.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.