Histórias de Amor Moderno: “Abandonei duas coisas: o psicólogo e as plataformas digitais de encontros”

“Expliquei-lhe o que considerava serem red-flags, (...) argumentei que hoje em dia é possível filtrar à partida tudo aquilo que não nos interessa.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Scenes of a Marriage / HBO
21 de setembro de 2024 às 11:31 Maria Olívia Sebastião

O meu problema com a solidão surgiu quando me apercebi de que a transformei num mal menor. Estar sozinha tornou-se a segunda melhor melhor coisa da minha vida amorosa, a seguir a encontrar o homem perfeito. E isso passou a dispensar todas as outras possibilidades, fazendo com que qualquer homem que não fosse perfeito ficasse imediatamente eliminado do meu horizonte e das minhas considerações. Podia iludir-me, achar que se tratava somente de uma exigência legítima. Porém, a intransigência, a repetição das recusas, a supremacia do olho clínico e cínico sobre todas as possibilidades do amor e as cedências a que ele obriga revelaram-se patológicas. Procurei ajuda.

-E o João, qual era o problema dele?

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-O João só tinha um metro e setenta e dois, doutor. Estabeleci para mim que um homem tem de ter mais de um metro e oitenta.

-Fale-me um pouco mais desse Guilherme.

-Nunca cheguei a encontrar-me com ele. Percebi, pelas informações de perfil, que tinha tirado Sociologia. As pessoas de ciências humanas tendem a ser mais problemáticas em assuntos simples, o que me assusta.

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-Não voltei a encontrar-me com o Joaquim.

-Hum… E há algum motivo para terem deixado de se encontrar?

-Preferi não aprofundar o nosso relacionamento. Das duas vezes que jantámos juntos, houve pequenas coisas que me deixaram alerta.

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-Que pequenas coisas?

-Pediu sempre carnes vermelhas.

-E isso está errado? A Cláudia, tanto quanto sei, também come carne, não é vegetariana. Ou é?

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-Não, doutor, não sou. Mas é que ele pediu duas vezes em duas possibilidades, não escolheu outra coisa. Era carne, carne, carne.

-Bom, foram só duas vezes, pode ter sido coincidência.

-E o planeta, doutor? 

-O planeta?

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-Acho que o Joaquim não tem noção do dano que o consumo regular de carnes vermelhas inflige ao ambiente. 

-Ah, certo…

-É nas pequenas coisas que se vê a estrutura moral de uma pessoa.

A ajuda do meu psicólogo foi preciosa, mas só funcionou até certo ponto. Conseguiu fazer-me ver que a minha exigência era exagerada, que os defeitos que apontava eram excessivos, que exacerbava características perfeitamente legítimas e as transformava em impeditivos a que me aproximasse mais e conhecesse melhor pessoas que, na realidade, podiam ser muito interessantes. "As pessoas comuns têm particularidades, cada uma terá as suas, faz parte", dizia-me o doutor. "Não deve ter expectativas demasiado elevadas acerca de uma pessoa, como se a pudesse fazer por encomenda, principalmente quando, na maior parte destes casos, estas características se revelam superficialmente, ou logo nas primeiras vagas de impressões que uma pessoa causa na outra."

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Expliquei-lhe o que considerava serem red-flags, falei-lhe de como formular a combinação ideal de qualidades de maneira a aumentar as probabilidades de compatibilidade, argumentei que hoje em dia é possível filtrar à partida tudo aquilo que não nos interessa. Poupamos tempo, não andamos às apalpadelas, a investir emocionalmente - e não só - em pessoas com quem nunca teremos futuro, muito menos sucesso.

-Mas como é que a Cláudia sabe que não terá sucesso nem futuro?

-Sei porque, ao configurar um padrão de preferências, excluo aqueles que sei que, num determinado ponto, me vão desapontar.

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-Por exemplo?

-Por exemplo… sei que não gosto de certas coisas.

-Por exemplo, não gosta de homens que estudaram ciências humanas?

-Sim, à partida, acho que sim.

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-De nenhum deles?

-Acredito que sim. Mais cedo ou mais tarde, tornar-se-ão complexos, problemáticos em assuntos simples.

-E a Cláudia deduziu tudo isso a partir de…?

-Não gosto de pessoas complicadas.

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-E é, portanto, a experiência empírica que a leva a concluir que todos os homens, sem exceção, que estudaram Sociologia serão complexos e problemáticos?

-Pois, eu a certeza, mesmo absoluta, não tenho.

-E o mesmo sucede com os homens com menos de um metro e oitenta, é isso?

-Ó doutor, aí é diferente, não é? Então, um homem alto é um homem alto. E eu prefiro os que são altos.

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-E então elimina todos os que não são altos.

-Sim.

-E não põe a hipótese de ser feliz com um homem, digamos, de um metro e setenta e dois, por exemplo?

-Não me faça rir, doutor. Isso é menos três centímetros do que eu meço. Nem saltos altos eu podia usar.

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-Nem saltos altos podia usar…

O doutor ouvia-me e tomava notas. Às vezes, acho que só fazia desenhos, talvez rabiscos, a mexer a caneta para cima e para baixo no seu bloco de notas. "A Cláudia devia deixar de usar as plataformas digitais de encontros, parece-me." O meu psicólogo considerou que o meu problema residia no seguinte: a habituação ao controlo do que procurava criara-me barreiras e defesas excessivas em relação àquilo a que ele chamava "particularidades e contornos da pessoa comum".

-Assim, nunca vai conhecer verdadeiramente ninguém, Cláudia. Está a desperdiçar a sua vida. Já pensou nisso?

-Eu vejo de outra maneira, doutor. Penso que, deste modo, invisto melhor o meu tempo e a minha energia. No fundo, entrego-me só a quem tem potencial para estar comigo e ser aquilo que espero de alguém.

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-E isso não será uma visão demasiado superficial do que é um ser humano?

-Como assim, doutor?

-Bom, Cláudia, eu não lhe posso dar respostas - nem, tão pouco, é essa a minha função. Eu estou aqui para a ouvir e para fazer com que se questione e se encaminhe numa direção mais saudável para si mesma, sempre de acordo com os seus pressupostos e desejos. Não sou um sábio. Mas já pensou em si e naquilo que é? Na sua maneira de estar e de ser, com todos os contornos e características?

-Como assim, doutor?

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-Bom… hrum hrum… onde eu quero chegar é aqui: somos todas pessoas, o que implica necessariamente que tenhamos características de que nem toda a gente vai gostar. Todos nós as temos, não é só a Cláudia, não me interprete mal. O que acontece é que temos algumas características de que umas quantas pessoas vão gostar, e vão gostar muito. E será aí, nesse conjunto, nessa combinação, digamos, que vai residir o princípio da atração.

-Como assim, doutor?

-No fundo, o amor nasce do que gostamos no outro, não naquilo que sobra quando excluímos o que não gostamos. Nós não nos apaixonamos por sobras, pois não?

-Pois… se calhar, não. Acho eu. Estou confusa.

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-O amor é positivo, não pode ser uma exclusão de partes.

-Sim.

-Não deixe de parte todas as pessoas que poderia conhecer só porque, à partida, elas apresentam uma característica que não lhe agrada. Pode ser?

-Mas um homem com um metro e sessenta é baixinho.

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-Pronto, ok. Vamos deixar de lado os homens demasiado baixinhos. Mas entende o que lhe digo?

-E um tipo que se tenha formado em Filosofia? Não acho que existam filósofos simples, sabe? E eu não quero complicações na minha vida, doutor. Eu só quero ser feliz.

-Sim…

Abandonei duas coisas: o psicólogo e as plataformas digitais de encontros. Na verdade, não abandonei o psicólogo. O doutor disse-me "a Cláudia precisa de contemplar, de refletir, precisa de introspeção, muito mais do que precisa de terapia ou de análise". E eu disse-lhe "sim, senhor". Perguntei-lhe qual achava ser a melhor forma de fazer o que me aconselhava, de contemplar, de introspetar, de refletir, dessas tarefas todas. "Escreva", respondeu-me. "Conte histórias a si mesma, escreva sobre as suas experiências de vida, sem barreiras, sem entraves - olhe, sem vergonha e sem padrões. Divirta-se a imaginar." Segundo o doutor, estes exercícios far-me-iam libertar dos padrões rígidos com que venho orientando a minha seleção de parceiros. Só que, desde que comecei a escrever, encontro mais satisfações nas histórias que recordo ou que crio do que nas possibilidades que imagino lá fora, na realidade concreta e para mim mesma. E então fico em casa, sossegada. Estar sozinha tornou-se a melhor coisa da minha vida amorosa.

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*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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