Fomos ver o filme sobre Lee Miller, a fotógrafa que foi da Moda para a frente de batalha
Podia ter feito uma carreira confortável, primeiro como modelo e depois como fotógrafa de moda, mas Lee Miller tinha o espírito irrequieto das pioneiras. A sua história é contada no filme Lee, que estreia a 26 de setembro, com Kate Winslet como protagonista.
Ficou para a História como a mulher loura, que largou as botas da tropa no tapete e tomou banho na banheira do apartamento abandonado horas antes por Hitler e Eva Braunn. A foto foi tirada em abril de 1945 pelo fotógrafo da Life, David Schermann e a loura na banheira é Lee Miller, também ela fotojornalista. Dias antes, os dois repórteres tinham entrado no campo de concentração de Dachau, integrados nas tropas norte-americanas, e o que viram (e fotografaram) mudá-los-ia para sempre. No entanto, se recuássemos uma década, Elizabeth Miller, conhecida por Lee, era uma beldade que fazia furor na moda e na vida boémia de Paris, que, de si mesma, dizia que gostava muito de bebida, fotografia e sexo, coisas a que, aliás, se dedicava com aplicada assiduidade.


É desta transição brutal, de uma vida despreocupada e glamourosa para a frente de batalha mais crua que a História já viu, que trata o filme Lee, realizado por Ellen Kuras, com Kate Winslet no principal papel. A ação começa nos anos que antecedem a Segunda Guerra Mundial, quando meio mundo ainda encarava a ameaça nazi como demasiado ridícula para ser real. Nos campos de França, Lee e os amigos (entre os quais o seu antigo amante e mestre de Fotografia, Man Ray, Paul Éluard, Solange e Jean D’Ayen) fazem alegres e despudorados piqueniques, muito ao estilo do quadro de Le Dejeuner sur l’herbe, de Manet, e entregam-se aos prazeres da vida e do espírito, sem preocupações de maior.
Mas o que parecia longínquo, afinal, não o era e a guerra chegou, em setembro de 1939. Com o seu novo amor, o pintor surrealista inglês, Roland Penrose, Lee mudou-se para Londres e começou a trabalhar com a Vogue britânica, então dirigida por Audrey Withers. À medida que o conflito se agravava, a fotógrafa sentia que já não lhe chegava retratar os sacrifícios das mulheres na Inglaterra bombardeada. Queria ir para a França invadida pelos nazis, intuindo que seriam pouco amáveis as imagens que daria a ver. Mas nada a preparara para a violência demencial que iria encontrar. E fotografou sempre porque, como diz no filme: "Mesmo quando queria olhar para o lado, não podia fazê-lo."


Se mais não fosse, a obra de Ellen Kuras mostra-se bastante inteligente na reconstituição de um tempo único na História da Humanidade, mas também nas lições que este nos dá sobre algumas ameaças que hoje enfrentamos. Lá estão as vanguardas artísticas das décadas de 20 e 30, que Lee frequentava e em que se inseria, mas também a importância que revistas para públicos essencialmente femininos, como a Vogue britânica, tiveram num quotidiano marcado por sacrifícios e perdas de toda a espécie e, sobretudo, os obstáculos que a repórter teve de ultrapassar para que as hierarquias militares lhe permitissem avançar, com eles, e fotografar o indizível.
Mas o que é mais assinalável em Lee é a percepção que o maior feito da fotojornalista não foi conseguir entrar num território até aí vedado a pessoas do seu sexo, mas tê-lo feito, percebendo e dando a ver que, entre vencedores e vencidos, nas cidades como nos campos de concentração, as primeiras vítimas eram sempre as mulheres. Como se os seus corpos fossem, afinal, terrenos de saque e devastação. Tudo isto servido pelo rigor e paixão que Kate Winslet há muito nos habituou.


Embora faça algumas concessões a um sentimentalismo demasiado fácil (e desnecessário) Lee tem ainda o mérito de nos recordar a importância histórica desta norte-americana (nasceu no estado de Nova Iorque, em 1907), a quem a beleza começou por proporcionar uma florescente carreira de modelo fotográfico, iniciada na Vogue americana na década de 1920. Foi fotografada por grandes nomes da época como Edward Steichen, Arnold Genthe, Nickolas Murau e George Hoyningen-Huene. Mas esta carreira terminou com um escândalo, que hoje nos faz sorrir: Quando Lee deu a cara para um anúncio de absorventes menstruais. A sociedade da época ainda não estava preparada para que se abordasse tal assunto nas páginas de uma revista.
Mas, como escrevera Ernest Hemingway, nessa época, Paris era uma festa. Em 1929, Lee viajou para a capital francesa com o objetivo de aprender fotografia e arte surrealista com Man Ray. Em breve, faria parte de um círculo de eleitos composto por Pablo Picasso e Dora Maar, o poeta Paul Éluard e sua mulher Nusch, Max Ernst, Leonora Carrington, o artista plástico, escritor e cineasta Jean Cocteau, entre outros.


Toda este beleza e inteligência se perdeu no longo vendaval que foi a guerra. Quase seis anos e muitos milhões de mortos depois, a arte, e as amizades por ela criadas, estavam irremediavelmente alteradas. Como vemos no filme, Lee viajou por França menos de um mês após o desembarque dos aliados na Normandia e registou os primeiros usos de napalm [associado a um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada] no cerco de Saint-Malo, bem como a libertação de Paris e o horror dos campos de concentração em Buchenwald e Dachau. Lee também foi uma das primeiras fotojornalistas a chegar ao apartamento de Hitler em Munique, cujo endereço guardou no bolso durante anos. Nesta mesma época, documentou crianças enfermas no Hospital de Viena, a vida miserável dos camponeses na Hungria pós-Segunda Guerra e os corpos dos altos dignitários nazis que se tinham suicidado, com as respetivas famílias, após a consumação da derrota. Mas muitas destas fotografias foram consideradas demasiado chocantes para serem publicadas nos jornais e revistas da época.
De regresso a Inglaterra, Lee casou com Roland Penrose e continuou a trabalhar, embora o stress pós-traumático, causado pelas experiências na frente de batalha, tivesse deixado as suas marcas. Morreu aos 70 anos, em 1977, vítima de cancro. A sua fantástica história foi contada pelo filho, Antony, no livro The Lives of Lee Miller.
