Héctor Abad Faciolince, escritor: “Ter estado doente é uma desgraça, mas para o livro é uma vantagem. Ajudou-me a ficar obcecado pelo coração”

É um dos nomes mais consagrados da geração de escritores atual na Colômbia. O escritor de 66 anos esteve em Portugal para apresentar o seu novo livro, "Salvo o Meu Coração, Tudo Está Bem" (Alfaguara Portugal).

Foto: Daniela Abad
20 de novembro de 2024 às 07:00 Rita Silva Avelar

Lisboa recebe Héctor Abad Faciolince num dos seus primeiros dias de inverno, daqueles frios, com sol. Encontramo-nos com o escritor antes do almoço, numa das artérias da Avenida da Liberdade, por onde nos conta que passeou durante as primeiras horas da manhã. O motivo da visita é o novo livro, um romance inédito que parte de um episódio pessoal de saúde, que envolveu o seu internamento para um procedimento ao coração, mas que pega numa história do século passado cujo protagonista é um padre. Além deste, passaram quase 20 anos desde a publicação do livro Somos o esquecimento que seremos, um testemunho poderoso que parte da morte do pai, assassinado na Colômbia em 1987, depois de anos a lutar contra a pobreza e contra desigualdade, e a defender a saúde pública e o sistema social naquele país. Um livro que marcou uma geração, e que já foi reeditado várias vezes, também em Portugal. Apaixonado pela Literatura, Héctor Abad Faciolince fala com saudosismo da sua infância em Medellín (para onde regressou há cerca de 10 anos, depois de uma longa temporada a viver em Itália, para abrir uma editora com a mulher) guiando-nos pelas influências que marcam a sua escrita. Há uma doçura na sua voz que nos embala – vamos perceber, durante a conversa, que a oralidade o encanta acima de todas as coisas - mas também uma paixão genuína pela vida que também se evidencia na sua particular forma de narrar: sempre perto ao coração.

Há um aspeto da sua formação que preciso de mencionar já: a extraordinária capacidade de ter estudado e de se ter formado em Medicina, Filosofia e Jornalismo. Como é que estas três áreas se alinharam?

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Na Colômbia, em particular, essa escolha é feita desde muito cedo, com cerca de 17 anos. Estava claro, para mim, que queria ser escritor, mas digamos que tenho uma personalidade muito sonhadora do lado do meu pai, e uma faceta muito realista do lado da minha mãe. Tal como o meu pai, sonhava ser escritor, mas queria, tal como a minha mãe, ter meios para viver. Sempre tive uma mente dispersa, curiosa, tudo me interessa – até temas tão específicos como a carpintaria – e acho que isso é bom para escrever romances. Interessar-me pela ciência, interessar-me pelas religiões, interessar-me pelo inventado, pelo fictício, pelo real… Digamos que esta dispersão da minha mente me ajuda [na escrita]. Pelo menos, neste último livro, a Medicina está muito presente, a doença está muito presente, a curiosidade pelo funcionamento fisiológico do corpo. Bem, talvez Filosofia também me ajude. Estudei Filosofia porque vinha de uma escola onde toda a gente estudava direito, administração, carreiras muito tradicionais e eu queria ser muito diferente dos meus colegas.

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Como era a Medellín da sua infância e que recordações tem de ter crescido com um pai tão culto e alerta para o mundo, antes da desgraça?

E já lia muito quando era criança. A melhor maneira de uma criança aprender a ler e a gostar de ler é algo que pode parecer paradoxal para alguns: a leitura não começa com os olhos, começa com os ouvidos. A melhor coisa que me aconteceu, e continuo a gostar muito, é terem-me lido livros, adoro que me leiam em voz alta, que me contem histórias de família. Penso que o romance é ciência. E o prazer de transformar palavras em imagens é algo que vem com isso. É algo que entra pelos ouvidos. E depois, quando nos habituamos a que a nossa mente processe as palavras e as transforme em imagens, quando aprendemos a ler, tudo é muito, muito fácil e é maravilhoso. E sim, em minha casa havia uma biblioteca muito grande e a grande felicidade do meu pai eram a música e os livros. Principalmente livros sobre Ciência ou História e Política, não tanto romances. Ele gostava muito de poesia e de aprender poemas de cor e de os recitar de cor, e isso é algo que eu também faço. Não rezo, mas decoro muitos poemas para quando não tenho nada para fazer e estou a andar na rua.

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Sente-se um observador nato? Essa capacidade ajudou-o neste novo romance, cujo protagonista é um padre, ajuda-o a construir as suas personagens?

Sou um observador, mas um observador raro, muito distraído, não fico concentrado em nada, mas... Por estranho que isso pareça, gosto dessa distração. Digamos que, com toda a imprecisão do mundo, ao escrever, [sinto que] torno tudo mais concreto. Em particular, esta personagem é inspirada numa pessoa, um padre real e gordo, que estava à espera de um transplante de coração. Foi viver para uma casa onde havia uma mulher divorciada com dois filhos e uma empregada com uma rapariga. Será que tudo isto é real? Para mim, esta história, que é do século passado, sempre me pareceu muito estranha e muito bonita. Um padre entra numa família. Nunca viveu com uma família, exceto quando era criança. E ele entra numa família e acha maravilhoso estar lá. Torna-se a coisa mais rara da sua vida, a sua grande renúncia foi renunciar a ser pai, não no sentido de ser padre, mas no sentido de ser pai. Ele encontra lá [na casa] algo surpreendentemente belo. Também sei que ele gosta de música. Também sei que ele é um crítico de cinema, mas a partir daí, o que é que se passava na sua cabeça, o que é que se passava na sua relação com estas mulheres? Temos de inventar isto, digamos que um escritor tem de ter experiência de vida, mas também temos de a inventar. E se uma pessoa passou, sei lá, 30 anos sem ser tocada, posso imaginar como é, porque se alguém nos toca é uma coisa muito agradável. Imaginei que este padre que se dedicou às coisas espirituais, quando redescobre o seu corpo, quando é tocado, há como que uma explosão na sua vida, uma compreensão muito rara dela.

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É um escritor de método, ainda assim? Ou tudo flui sem grande norma?

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Eu uso sempre um bloco de notas. Tenho sempre um caderno, costumo escrever à mão, por isso ando pela rua, ainda agora fui ao Largo das Amoreiras, escrevi lá [mostra-me as suas anotações]. Ali, naquela praça. Não sei se será útil para o livro que estou a escrever. Talvez sim, talvez não, mas eu escrevo em qualquer lado, não me importo com o barulho, não me importo com as ideias que vão e vêm e tenho muitas ideias. Por isso, gosto muito de passear, de ter o meu caderno e de escrever o que me vem à cabeça e talvez isso venha a fazer parte de um livro. Quase tudo o que se começa a pensar [sobre] converge para aquele livro, para aquela história. Mais do que um método, o que se pretende é alcançar uma ideia. É uma obsessão, uma obsessão absoluta, que esta história seja a nossa vida naquele momento, que estejamos realmente dentro da história, dentro destas personagens, que nos tornemos, por um momento, tudo o que lhes acontece. Neste livro era muito claro sobre o que eu estava a escrever: um transplante de coração, um padre com uma doença cardíaca – e eu tenho uma doença cardíaca. O meu coração começou a doer, comecei a ter problemas, cansava-me e doía-me. Diagnosticaram-me uma coisa chamada estenose aórtica. Fui operado ao coração e já tinha terminado o primeiro rascunho do livro, mas depois disse ao meu agente: ‘Bem, se eu morrer, publico este rascunho do livro, tento publicá-lo?’ E se não morrer, vou usar esta experiência para acabar o livro e foi isso que aconteceu. A experiência extrema ajudou-me muito a compreender coisas como o que é entrar numa sala de operações, o que é ter o corpo arrefecido. Têm de parar o coração, têm de impedir que os pulmões entrem em colapso. Depois, tens frio, não palpitas, não respiras. Não pensas, não te lembras de nada. Portanto, estás um pouco morto. Isso é muito forte, é um pouco como aprender a estar morto. Assim, de certa forma, para compreender o que é um transplante e o que é um doente cardíaco, é preciso aprender a estar morto e, bem, ter estado doente é uma desgraça, mas para o livro é uma vantagem. Porque isso ajudou-me a ficar obcecado pelo coração.

O tema da religião esteve sempre muito presente na sua literatura e na sua vida, de uma forma muito particular. Chegou a ser expulso da Universidade Pontifícia Boliviana devido a um artigo irreverente contra o papa. Com esta vivência, voltou de algum modo a ela?

O meu pai era agnóstico e a minha mãe era muito, muito católica. E, em geral, as crianças ou todas as pessoas acabam por ser aquilo que aprendem em casa. Se crescerem num lar judeu, então são judeus. Se crescerem num lar muçulmano, são muçulmanos. Se crescerem num lar ateu, serão ateus. Por isso, não sei como estou. Eu sou como aquelas crianças bilingues que falam inglês e português ao mesmo tempo. Isto não significa que eu seja por vezes ateu e por vezes católico, pois não? Digamos que, no meu caso, o não crente ganha. Mas tenho sempre em mente tentar não perder a mentalidade da minha mãe: é por isso que este livro lhe é dedicado. Penso que nós, seres humanos, vivemos num mundo algo fantástico. Acreditamos em coisas estranhas, dizemos uma coisa horrível e depois afirmamos: "bate na madeira para que nada aconteça ao meu filho". Acreditamos, acreditamos em coisas.

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Como vê a atuação de Gustavo Preto na Colômbia? Foi uma vitória da democracia? Diz-se que a Colômbia está a atravessar um período de prosperidade. Sente esperança numa verdadeira mudança?

Digamos que na minha infância, nos anos 60, Medellín era muito melhor do que a cidade que é agora, e muito melhor do que a cidade dos anos 70 e 80, que era um inferno. Estamos melhor agora do que nos anos 70 e 80, quando Medellín era uma carnificina, quando era a cidade mais violenta do mundo. Mas isso não se deve a este Presidente, que tem a reputação de ser um Presidente de esquerda virado para o futuro. Penso que é um homem com muitos problemas psicológicos, muito perturbado psicologicamente, é um homem que desaparece de repente. Ele dá grandes festas, aparentemente, com drogas, com álcool, com prostitutas, tem um lado manipulador, uma dupla personalidade. Foi um bom senador, foi um bom homem da oposição, muito crítico, mas pensa que ainda está a viver na oposição. Não se apercebeu de que é Presidente da República. Ele é contra o sistema e ele é o sistema. Quando foi assinado o acordo de paz com a guerrilha, durante o governo de Santos, quando tudo parecia estar a melhorar, nessa altura eu também apostava na Colômbia. Com a minha mulher, abri uma pequena editora que ainda existe graças à esperança, e depositei lá todas as minhas poupanças há 8 anos, sim, mas não o faria agora. Eu não confiaria no futuro próximo da Colômbia ou do mundo neste momento. Parece-me que o mundo está numa situação horrível devido a muitas circunstâncias, a invasão da Ucrânia. E agora o que se passa com Netanyahu, de Israel contra os palestinianos, a provável eleição de Trump [Trump foi, entretanto, eleito, como o escritor acreditava], que é realmente um fascista.

Ia perguntar-lhe sobre Trump, que critica abertamente os latino-americanos.

A América também tem uma alma dividida, no tempo de Hitler e dos nazis havia uma grande proporção de americanos que eram favoráveis, que eram pró-nazis, por exemplo, o famoso aviador Glan Linberg, que foi o primeiro a atravessar o Atlântico, era um grande admirador dos nazis. E Philip Roth, um grande escritor judeu, escreveu um romance chamado The Plot Against The America, em que imagina que um pró-nazi se torna Presidente dos Estados Unidos. Eu penso que estamos a viver algo semelhante. Este é um homem que despreza os judeus, mesmo que os convide, por exemplo, para o Madison Square Garden. Há também um rabino, no romance de Philip Roth, favorável aos neo-nazis, as suas afirmações são racistas. Supremacistas brancos contra os latinos, contra aqueles que ele considera não americanos, para ele – negros, imigrantes e aqueles que vêm de imigrantes não são americanos. Portanto, esta ideia ganhou força. Um país que tinha sido um exemplo de democracia para muitas partes do mundo vai cair nas mãos de uma pessoa que admira Putin, que admira Maduro, que diz que os seus generais se devem comportar como os generais de Hitler. Em suma, um homem, um agressor de mulheres, que diz ser religioso, mas que não tem qualquer espiritualidade. Penso que não poderíamos cair em piores mãos e estamos muito perto disso.

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Foto: Daniela Abad

Há um lado da literatura, na arte, que nos salva um pouco?

É um ato de resistência contra a barbárie do mundo, contra a guerra e a violência. Acho que sim, acho que a arte, a literatura, a música, a pintura, o urbanismo, a defesa da beleza, são bastiões contra a barbárie. Temos de continuar a lutar para defender a arte e a beleza como um modo de vida. Um lugar onde uma ideia diferente da vida, uma ideia mais amorosa da vida, ainda resiste contra os bárbaros.

Tem em mãos uma nova obsessão, um novo livro?

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Tenho uma obsessão que é fácil de explicar. Em junho do ano passado estive na Ucrânia, na Feira do Livro, a apresentar a tradução ucraniana deste livro. E também a apresentar um movimento a que pertenço de latino-americanos com a Ucrânia, que se chama Hold on Ukraine, e depois desta apresentação na Feira do Livro de Kiev estive com dois amigos colombianos, Sergio Jaramillo Caro, que foi o grande arquiteto do processo de paz na Colômbia, e uma jornalista de guerra, Catalina Gómez. A jornalista de guerra, que trabalhou em Gaza, no Médio Oriente, no Irão e agora na Ucrânia, acompanhou-nos e, no último momento, juntou-se a nós uma escritora ucraniana, Victoria Amelina, e fomos para leste, para a frente de batalha. Estivemos lá três dias porque Victoria estava a documentar os crimes de guerra russos. Foi uma viagem horrível, mas agradável ao mesmo tempo, muito interessante, e no último dia fomos a uma pizzaria, a um restaurante que era o favorito de Victoria para lhe agradecer a sua companhia. Estávamos a pedir a nossa comida, nesse preciso momento o restaurante foi atingido por míssil russo. Mais de 90 pessoas ficaram feridas, morreram 13 pessoas, muitas crianças. E Victoria, que estava sentada à minha frente. Tivemos a sorte de estar no terraço e ninguém morreu no terraço, só morreu uma pessoa e foi a Victoria. Eu estava lá, vi tudo, a primeira coisa que pensei foi: "Eles mataram-nos, sim, eles mataram-nos". E depois, não sei, estava cheio de coisas que pareciam sangue, mas eu estava ileso, eu não tinha nada.

Isto deixou-lhe uma espécie de responsabilidade nas mãos, uma continuidade?

Sinto-me na obrigação de dar continuidade. Sim, de ser a voz que a Victoria já não tem, já não pode denunciar os crimes, e acho que devo ser eu a fazê-lo.

Teve oportunidade de aceder aos documentos que já tinha ou partiu daí para o trabalho?

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Quando lá estivemos, eu ainda não a tinha lido, mas depois li um romance dela traduzido para espanhol. Li os seus ensaios, a sua poesia e o seu trabalho documental. Tenho acesso a esses documentos e digamos que não consigo fazer um trabalho tão minucioso como ela estava a fazer, porque ela o fez diretamente nos sítios, e eu já não posso voltar à Ucrânia. Não quero, tenho filhos, tenho mulher, tenho uma família, não sou capaz.

E também porque deve ter sido muito traumático.

Sim, por isso não posso documentar novos crimes russos porque não, não sou capaz. Não é esse o meu papel. Mas, pelo menos, posso escrever. 

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