Gregório Duvivier: “Tenho a impressão que a riqueza é mal vista em Portugal (...) é um país com um ethos socialista, um certo anticapitalismo no ar”
Falámos com o ator e escritor brasileiro sobre fama, política, as mudanças na comédia nas últimas décadas e as diferenças e semelhanças entre o Brasil e Portugal.
Foto: Ana Alexandrino19 de agosto de 2024 às 14:44 Clara Drummond
Gregório Duvivier tem uma relação de certa intimidade com Portugal. Há dez anos que o comediante vem ao País por curtas temporadas, pelo menos duas vezes ao ano. No início, era para apresentar seu monólogo, "Uma Noite na Lua"; mais tarde, surgiu "Sísifo", outro monólogo, "Um português e um brasileiro entram num bar...", que é uma apresentação / conversa com Ricardo Araújo Pereira, e "Portátil", espetáculo de improviso junto dos seus colegas do Porta dos Fundos (e razão da sua última vinda cá, no final de julho). "Em 2014, havia uma crise enorme, os jovens estavam indo embora – muito para o Brasil, que vivia momento ótimo. Mais tarde, a situação se inverteu. Brasil e Portugal vivem essa relação de gangorra faz séculos, o que é bom, porque nos completamos e acolhemos uns aos outros", diz. "O interessante é que nesse espaço de tempo pude conhecer vários Portugais".
Nos últimos anos, a sociedade começou a reavaliar o humor feito nas décadas passadas, como Seinfeld e Friends. Como você enxerga isso?
O humor feito em Nova Iorque na década de 1990 responde ao zeitgeist da época que era muito neoliberal. O Seinfeld ajudou a cristalizar um tipo de stand-up cínico e conservador, como se fosse feito por uma pessoa que não entende as mudanças do mundo. É uma arrogância típica do homem branco e heterossexual daquela época. Eu moldei a minha personalidade nesse arquétipo que estou criticando. É o que fazemos durante a adolescência: não temos personalidade definida então escolhemos uma personalidade pré-fabricada que já existe na televisão ou no cinema. Os adolescentes falam: eu sou igual ao Ross de Friends! E, na adolescência, eu achava o máximo esse tipo de personagem neurótico e engraçadinho que fabrica um sofrimento que hoje sabemos que é white people problem. É um personagem hipocondríaco focado no próprio umbigo. Hoje, eu olho esse tipo e penso: acorda para o mundo, eu não me importo que você está com rinite!
Mas não somos todos preocupados com o próprio umbigo?
Eu acredito num tipo de humor que não seja apenas calcado nesse individualismo neurótico e cínico. O Charles Chaplin, por exemplo, ri de uma fragilidade que não é inerente ao homem branco, intelectual, talentoso e rico. Ele interpreta o mendigo, e você se identifica com o mendigo. Ele não é neurótico até porque ele [nem] sequer fala. É o humor da empatia. O Chaplin ajudou as pessoas a olharem de forma diferente para o mendigo. É o oposto dessa coisa nova-iorquina cínica.
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Foto: Ana Alexandrino
O humor de Nova Iorque colonizou o mundo?
Com certeza. Inclusive, o humor de Nova Iorque me colonizou. O humor forma subjetividade. Ele não influencia apenas outras formas de humor, ele influencia como você vai moldar a sua personalidade. Eu conheço pessoas que são da forma que são porque assistiram muito Woody Allen ou O Sexo e a Cidade.
Como você vê o humor dos dias atuais em comparação ao que foi feito no século XX?
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Eu não gosto quando um autor faz um personagem que é escritor, e esse escritor é talentosíssimo. O Woody Allen e o Seinfeld têm alter-egos que não entram em crise com o próprio talento. Hoje, há mais personagens cuja graça é a própria mediocridade. O Nathan Fielder em The Curse e The Rehearsal fala sobre o ridículo do homem branco que tenta agradar, faz piada, e ninguém ri. Succession é outro bom exemplo. Esse tipo de humor toca num nervo central que dói.
Então o problema era talvez a falta de autoconsciência?
O Orson Welles tem uma citação incrível a respeito do Woody Allen. Ele diz que o Woody Allen finge que se odeia, mas na verdade se ama, e que é uma timidez falsa que existe para disfarçar uma arrogância imensa. O Woody Allen criou toda uma obra pensando questões relacionadas à ética, mas ele tem vários pontos cegos relacionados com o género – e aqui eu me refiro à própria obra, e não à sua vida pessoal. Em Manhattan, ele não se pergunta como um cara horroroso conseguiu uma gatinha menor de idade. Em Annie Hall, ele interpreta um comediante, coloca esse comediante no palco junto com uma plateia que ri de todas as suas piadas. É como se ele fizesse filmes para se enaltecer e conquistar mulheres. Esse tipo de humor envelheceu mal porque a fragilidade é falsa e fácil, não vai no ridículo. É igual a uma pessoa que vai na entrevista de emprego e diz que seu maior defeito é o perfeccionismo.
Você acha que o humor é universal ou a cultura e linguagem são barreiras?
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Toda obra de arte é fruto da cultura, mas tem coisas que navegam melhor, como a música. O humor de palhaços não depende da linguagem, daí a universalidade do Chaplin. O Ricardo Araújo Pereira é muito melhor, mais inteligente e mais culto que o Jon Stewart e que o John Oliver. Mas nem no Brasil ele é tão conhecido, ao menos não tanto quanto deveria. As barreiras linguísticas e culturais impedem até mesmo uma viagem Brasil-Portugal.
Foto: Ana Alexandrino
O que você acha da pressão para que uma pessoa pública se posicione politicamente?
Não se deve tirar ninguém do armário nem em relação a sexualidade nem em relação a política. Não gosto da obrigação de tirar uma selfie com um cartaz dizendo isto ou aquilo. É uma industrialização do posicionamento político que acredito ser ineficaz. Tem gente que o trabalho já é tão político que nem precisa se manifestar de forma explícita. O Chico Buarque não precisa declarar voto porque o trabalho dele já é muito político. Para mim, é mais interessante que as pessoas façam um tipo de arte que fale sobre o Brasil. Há artistas que fazem uma arte completamente deslocada do país que vivem. O Brasil é um país tão desigual, como é possível não se contaminar com isso? Não respeito o artista que não se manifesta politicamente de alguma forma, nem que seja somente através do trabalho.
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É possível um artista realmente ser apolítico?
Tem artistas que dizem que não entendem de política, mas fazem propaganda de champô. Ora, ele também não entende de champô. Porque você fala de champô e não fala de política? Ora, porque falar de champô dá dinheiro. E, realmente, do ponto de vista financeiro, é muito ruim se posicionar politicamente. As marcas preferem um artista despolitizado. A publicidade foge da politização como o diabo foge da cruz. Há artistas brilhantes que não fazem publicidade, como o Wagner Moura e o Chico Buarque. Não fazem porque não querem e porque não precisam. Mas também porque se eles falarem algo que o público não goste, reverbera na marca. Há artistas que não se posicionam politicamente por cálculo, porque têm sede de dinheiro.
Como conciliar a arte com a fama?
É mesmo um paradoxo. É muito difícil que um ator que não seja famoso tenha o teatro lotado. Por muitos anos, eu fiz teatro para uma plateia vazia, e é horrível. É normal querer que o máximo de pessoas vejam o seu trabalho. Mas quem tem público no teatro também tem público na rua. É inevitável perder a privacidade e o anonimato. É uma profissão cujo sucesso depende disso. Mas é possível perder a privacidade sem perder a humanidade. O grande perigo é acreditar no que as pessoas pensam. E acreditar que esse alcance gigantesco que a celebridade tem é merecido. A internet deixou tudo mais intenso. Antes, era só a televisão, mas a televisão tem mil filtros, não pode entrar no ar e fazer o que quiser. O celular torna o alcance instantâneo e gigantesco, e é tentador acreditar que tudo que você tem a dizer é fascinante. E, quando começa o hate [ódio], você também acredita, porque quem acredita no lover também acredita no hater.
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E o trabalho artístico pode sofrer nesse processo?
A comédia, especificamente, se alimenta muito do dia-a-dia. É importante ir à padaria, ficar na fila, resolver burocracia, passar sufoco. Como você vai escrever se você não tem conflitos humanos? É importante viver a vida na escala humana e artesanal. No meu caso, eu consigo viver o quotidiano normalmente: eu ando na rua, uso o metro, viajo de avião apertado na classe económica (quer dizer, nem tão apertado porque sou baixinho). Tem artista que tem segurança particular, que anda de avião privado, que fecha restaurante… e, com isso, perde o contato com as pessoas [com] que ele quer comunicar. A fama é um canto da sereia que realmente pode enlouquecer as pessoas.
É possível desenhar uma linha entre viver uma vida confortável e perder o contacto com a humanidade?
Acho que depende da circunstância, da cidade, do país. Portugal e o Rio de Janeiro são muito parecidos num aspeto: em ambos os lugares a ostentação é considerada de mau gosto. No Rio, quem é rico anda de chinelo, emula o estilo de uma pessoa mais pobre, imita a prosódia do funk da favela. E eu tenho a impressão que a riqueza é mal vista em Portugal. É um país que tem um ethos socialista, um certo anticapitalismo no ar – nisso, alguns portugueses não concordam comigo, mas, olhando de fora, é assim que eu vejo. É como se o foco das pessoas não fosse ficar rico, e sim viver bem. O português não quer ganhar dinheiro a todo o custo. Outro dia, eu entrei numa loja, e o vendedor disse: é melhor comprar esse produto na loja ao lado. Os portugueses gostam mais de dar que de vender. E é isso o que mais me comove aqui.
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Foto: DR
E por que você acha que é assim?
Não sei se tem algo a ver com o catolicismo, a dádiva ser mais importante que a dívida. Eu sinto que Portugal tem a lógica da dádiva. E isso vai além das divergências políticas tradicionais. O Brasil é um país calcado na busca pelo ouro, e acho que por isso tem valores similares aos Estados Unidos: você ser uma pessoa bem-sucedida pelo dinheiro é algo considerado muito importante. Em Portugal, a população ao menos pode contar com o mínimo porque existe o Estado Social. É precarizado, é lógico, mas, mesmo assim, é importante que exista. Os meus amigos aqui levam uma vida confortável mesmo que ganhem salários muito menores que ganhariam no Brasil. Isso acontece porque eles podem gastar tudo que ganham por mês. Estar sem dinheiro na conta bancária não gera tanta ansiedade justamente porque existe o Estado Social. Isso faz muita diferença na maneira de viver e organizar as finanças. No Brasil, é preciso acumular dinheiro para viver bem.
Hoje, você é conhecido por uma comédia muito politizada, mas nem sempre foi assim. Como foi esse processo?
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O Brasil me obrigou a me tornar uma pessoa politizada. A grande virada foi durante as eleições presidenciais de 2014, que foi a Dilma Rousseff contra o Aécio Neves. Eu lembro que costumava ir numa loja de chocolates chamada Bel Trufas. No dia da vitória da Dilma, a loja estava fechada, e havia um cartaz escrito: LUTO. E pensei: a Bel é uma querida, e todos ali são pessoas queridas, mas que loucura fechar a loja porque a candidata que você não apoiava ganhou?! E ali eu vi que havia duas trincheiras, e era um caminho sem volta. A minha sensação é que eu estava em um prédio em chamas, e eu precisava gritar: Fogo!
E o outro lado também começou a te pressionar, então foi uma bola de neve.
A gente se define pelo que a gente não é. O meu inimigo é esse fascismo que sempre esteve à espreita, mas chegou no poder através do Bolsonaro. Eu sempre rejeitei o racismo e a homofobia, mesmo quando não gostava de política. Não gosto quando dizem: é complexa a situação no Brasil. Hoje, está mais complexa, porque há muitas críticas a serem feitas ao governo atual, mas há também admiração pelo legado do Lula. Mas, na época, era uma situação maniqueísta. O fascismo chegou ao poder durante uma época em que o país se tornava mais complexo. Pela primeira vez, as pessoas estavam falando sobre género, sobre feminismo, sobre racismo. E, principalmente, sobre esse mito da democracia racial que na verdade nunca existiu no Brasil. Em 2011, a Comissão da Verdade (que investigava as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura militar de 1964) colocou o Brasil no divã. Era uma espécie de psicanálise porque a comissão não tinha poder de prender ninguém. Mas a psicanálise nos ensina que o ato de falar é muito poderoso, e isso por si só foi suficiente para causar comoção. E o fascismo emergiu resposta a esse movimento a fim de anular essas complexidades.