Entrevista. Para Branko, seguimos todos juntos

Branko é dos mais completos artistas nacionais, dos primeiros a perceber que Lisboa é uma família diversa e aberta ao mundo, cheia de ritmo e música. Tudo isto cintila no novíssimo Soma, para quem queira entrar e deixar-se levar.

Foto: D.R.
16 de março de 2024 às 17:19 Patrícia Barnabé

A celebrar o lançamento deste seu quinto disco, João Barbosa aka Branko quer estar com os seus. Assim, nestes dias 15, 16 e 17 de Março, Alfama vai estar ao rubro porque ele abre as portas da Soma House, na Antù, para receber quem queira ouvir e conhecer as várias camadas deste seu novo Soma. Em primeira mão, e na primeira pessoa, vão ouvir-se os músicos e as músicas que ficaram de fora, um dj set e até surpresas gastronómicas escolhidas pelo artista. Este é um disco de uma linhagem que começa em Atlas, de 2015, depois Nosso de 2019, CTG de 2021, OBG de 2022 e chama-se Soma, o que significa corpo, talvez porque foi tudo feito em presença e em total imersão, espontaneidade e instinto, o seu grande forte e o da sua música colorida. Esteve em destaque na BBC Radio 1 com o tema Slide feat. Jay Prince, já tocou em Madrid e Barcelona, e lança este novo disco ao vivo no Sónar Lisboa, no dia 24 de Março, depois segue para Londres, para a Casa das Artes de Famalicão, para Pombal e para o Vodafone Paredes de Coura. Coroa-se assim o percurso deste talento maior na música nacional, que é muito mais do que um dos fundadores dos Buraka Som Sistema, é um produtor minucioso, um agregador de vocações, e um animador selvagem de pistas. Quem nunca o viu a lançar chamas sobre uma multidão eufórica, em comunhão e catarse, não sabe o que está a perder. Recebeu a Máxima no seu estúdio, a Enchufada, com os seus olhos azuis vivos que sorriem muito e vêem para lá do óbvio.

Nasceste e cresceste na Amadora, de que forma é que o subúrbio te deu uma maior abrangência?

PUB

Não só acho que sim (risos), como acho que é notório no meu trabalho, é aquela perspetiva de quem cresce rodeado de muita juventude, muita vontade e muita música. Num sítio como a Amadora, teve tanto de bom como de mau. Foi tanto um desafio de, muitas vezes, conseguir chegar à escola sem ser assaltado, como foi incrível irem 40 pessoas da estação da Amadora para o Bairro Alto curtir uma noite, no final dos 90’s. E era interessante perceber que não era exatamente aquela identidade de Lisboa, não era exatamente aquilo que sentia no centro, onde se sentia mais o alternativo. Demorei algum tempo até encontrar em Lisboa o mesmo tipo de pluralidade, de uma perspetiva assim um bocadinho mais abrangente. Sinto que, se calhar, só quando comecei a ir para os sítios no Bairro Alto, mais do que aquilo que eu fazia com os meus amigos da Amadora que era ficar só na rua, e começar a descobrir o Captain Kirk, descobri algum tipo de música onde já havia algum mundo e interesse cultural. E fui embrulhar-me ainda mais nessa ideia. Uma das pessoas que acabou por me mentorar foi o Johnny [DJ e membro formador do Cooltrain crew], que me mostrou música de todos os formatos e feitios, e de todas as coordenadas geográficas do mundo. Crescendo assim, foi claro pra mim que havia um grupo de pessoas que tinham crescido como eu, e outras pessoas que vinham de outros sítios, e que não estavam presentes na música. Obviamente que tinhas os Da Weasel e esses grupos grandes, mas foi isso que quisemos trazer para aquelas noites pequeninas que fazíamos no Clube Mercado [em Santos], que depois deram origem aos Buraka Som Sistema, comunicar com o público que se identificava. Do género: isto faz-me todo sentido, eu também cresci assim. Tinha carros a passar na minha rua a darem kuduro e depois a seguir a dar Bryan Adams, e essa pluralidade cultural que acontecia à nossa frente, acabava por não estar espelhada em nenhum lado. Estava no internacional, mas não cá. Na altura, já se ouvia falar de Croydon como a casa do dubstep, e os screams e os bangers, esses artistas que vinham dos subúrbios londrinos, east London também com o grime, e nós a equacionar: se calhar, não nos encaixamos tão bem no que é a música de Lisboa, se calhar somos música da Amadora, mas via Lisboa, por assim dizer.

Cresceste, como muitos de nós, a ouvir som no teu quarto ou com amigos, mas foste para o jungle e drum’n’bass, embora tenha sido o rock que tomou conta dos anos 90.

A minha madrinha ainda me ofereceu uma guitarra (risos)... Eu entendia, e ainda hoje uso tudo o que aprendi na guitarra, e obviamente que ia para o liceu da Amadora e tocava guitarra e achava que era espectacular, mas foi mesmo na música eletrónica que percebi que conseguia fazer uma coisa interessante, que me agarrava completamente ao acto de criar e de fazer alguma coisa, foi mesmo no computador. Acima de tudo, o facto de poder fazer com que a vida real entrasse por dentro do computador, eu conseguia criar alguma coisa com isso. Na altura, andava muito com um mini disc, a gravar uma série de coisas da rua, pessoas a cantar, e depois brincava com esses sons, e colocava-os na música, seja uma porta a fechar que fazia um ritmo ou alguém a cantar, uma nota qualquer do meio da rua que eu depois cortava e usava, só a nota, e montava uma coisa qualquer com essa ideia de que a vida real podia fazer parte dessas composições que eu fazia nos programas crackeados de software de música que eu tinha.

PUB

Foste estudar Direito na Universidade Católica, porquê Direito?

Os meus pais têm cursos superiores, os meus avós não, então venho dessa perspetiva de que o curso é importante. E os meus pais tiveram o seu desenvolvimento social e económico todo com base nisso e, como é óbvio, não fazia sentido nenhum eu acabar só a escola e ficar no quarto a fazer beats. Entendi isso e não me fez confusão nenhuma (…). O Direito foi uma exclusão de outras coisas e de chegar a uma que poderia ser prática e útil, e acabou por não ser assim porque o curso era super difícil e tinha de estudar imenso, então demorei algum tempo a acabar, mas acabei.

Então não foste para Direito para salvar o mundo e a humanidade?

PUB

Não (risos), quando entrei, em 98, tudo o que já queria era passar a tarde inteira com a cabeça enfiada no Fruity Loops e não pensar em absolutamente mais nada. Se há coisa que o curso de Direito me ensinou foi a capacidade de síntese, e de perceber o que é o essencial. A minha perspetiva era: eu não quero saber tudo, eram livros de 1500 páginas, eu quero saber quais são as 300 páginas que realmente tenho de saber para ter um 9,5, para conseguir ter o 10 e despachar a coisa. Então estudava formatos sintetizados das coisas (risos), o desafio até foi interessante. Uso essa capacidade de organização e de síntese, de não ter medo de encarar uma tarefa grande e perceber que não necessita de estar 100% completa para estar ok, essa percepção e essa dinâmica foi o mais importante.

Quando pensaste aquelas noites no Clube Mercado, e criaste a Enchufada e os Buraka, como Lil'John, tiveste alguma noção de que estavas à frente do teu tempo, a ver uma coisa maior que ninguém estava a ver, ou foi uma paixão que te apanhou de surpresa?

Não tinha muita noção. E houve uma relação muito importante, o Kalaf, que criou todas estas coisas comigo, até hoje somos sócios da Enchufada. Tivemos essa perspectiva de estarmos extremamente aborrecidos na cidade e tivemos de nos entreter e fazer alguma coisa porque Lisboa era um bocado seca, na altura. Não há outra forma de o dizer (risos). Quisemos acender algumas faíscas e perceber, sabes, atirar os búzios e ver que fortuna é que saía (risos), e para que lado é que nos havíamos de virar. E foi sempre um bocadinho assim. O primeiro projeto que lançámos, antes dos Buraka, foi o 1- UIK Project, que saiu exatamente desse aborrecimento, em agosto, do género: não há ninguém e não há nada para fazer, "'Bora fechar-nos e escrever letras e músicas e fazer um disco'. E foi quando pensámos. "Uau, dá para fazer coisas!" Depois foi necessário criarmos a editora, precisávamos de uma forma de lançar aquilo, acabámos por fazer um acordo com a Movieplay, então, na realidade, a Enchufada foi o primeiro passo de todos. Não a criámos para o 1-UIK Project, já tínhamos o logo e a ideia, mas não conseguimos criar uma empresa oficial, ainda não estávamos nesse nível, só em 2006, para lançar o [EP) From Buraka to the World, aí sim. Mas foi, mais ou menos, sempre: o comboio saiu da estação em direção a um destino, nós nunca sabemos bem qual é o destino, nunca houve qualquer tipo de business plan, nada, e foi só ir encarando o dia-a-dia e as necessidades que surgiam e tínhamos de resolver. Depois, obviamente, com o interesse internacional, começámos a perceber outras coisas e a ir um bocadinho aqui e ali, a tentar conectar, e através do booking acabas por cruzar mundo, pessoas, outros artistas, etc. E fomos fazendo sempre isso com o coração muito preso aqui à Enchufada, com uma série de ligações que tínhamos que estabelecer com agências de management e outras labels, mas aqui com um centro de decisão, desde 2004. Hoje é meio casa, já ninguém tem paciência para ir para o escritório.

PUB

Já a solo, e mais recentemente, criaste o Nosso, em 2019, o CTG em 2021 e o OBG em 2022, e agora este Soma (que significa corpo)....

Tive ainda o Atlas, em 2015, que foi mesmo um exercício de desvendar, andar a viajar. A Red Bull tinha estúdios por todo o lado e fiz um acordo com eles: e se eu ocupar estes sítios todos durante uma semana e gravar com uma série de gente e fazer um disco disso, vocês gostavam? "Sim, 'bora!", e avançou-se também de olhos fechados.

Aí percebeste: espera lá, eu gosto desta coisa de fazer a minha música sozinho e chamar pessoas...

(Risos) Acho que sim, e também foi a reação ao disco, a forma como foi recebido, depois tocar e criar o cenário de palco para o tocar, foi super interessante.

PUB

Tens gravado discos torrencialmente, eles chegam-nos uns atrás dos outros...

Acho que o Nosso, de 2019, talvez tenha sido o primeiro momento em que fiz um álbum mesmo, com aquela ambição de ser um álbum meu. Porque apesar de o Atlas ter das músicas mais importantes da minha vida, o Reserva para Dois, e tudo isso, que eu fiz muito nesse sentido de exercício, o Nosso, não, foi um disco construído. Na altura, também estávamos numa residência chamada Surra, ali no B'leza, que durou dois anos. Quando tenho essas noites a acontecer, sinto que é sempre muito produtivo para mim, porque quando tenho de estar, todos os meses, pelo menos uma vez, com um público que sei que conhece, há um auto-desafio para ter sempre alguma coisa diferente. Então, foi um disco muito construído nesse desafio, a perceber se as pessoas estavam a dançar ou não estavam a dançar (risos), andar ali um bocadinho para traz e para frente, numa dança. É um primeiro projeto mais ambicioso em que eu: ok, sou oficialmente um artista e tenho aqui o meu projeto a solo. E já não deu para voltar para trás.

Depois veio a pandemia, todos enfiados em casa, e nasce o OBG e andas por Portugal.

Isso, é um disco muito in house de criar e de pensar nas paisagens para onde ia tocar e criar música a partir daí. Quando tive de fazer o disco, a música já estava praticamente toda criada, foi interessante. Foi uma compilação desses momentos todos, de quase um ano e meio desses sets por Portugal fora. "OBG" porque foi uma espécie de gratidão por terem acompanhado esses momentos e me terem passado tanto carinho. Vivi muito isso com as pessoas, dava para perceber a emoção. Da mesma maneira que eu tocava para me salvar, as pessoas acabavam por assistir com o mesmo pensamento, sinto que foi um momento de abraçar o público, de comunhão, no fundo é um disco de agradecimento.

PUB

Associo-te muito a essa comunhão, um músico bicho do mato, que vive na caverna do estúdio, e logo a seguir rodeia-se de gente. Lembro-me de assistir a um set teu no Primavera Sound, e o público dançava quase em cima de ti, era uma massa de pessoas... Chamas a este disco Soma, corpo...

Este disco vem na sequência do OBG, dessa vida e desse isolamento, quase parecia que tinha voltado ao sótão de casa dos meus pais, na Amadora, onde fazia os primeiros beats, da mesma maneira que estava aqui sozinho, estava lá. Precisava de voltar a um ambiente de criação mais sociável, estar com pessoas para cirar música. Sou muito aquele músico que gosta de fazer as coisas com as suas ideias, mas adoro mais ainda levar as ideias e confrontar quem tiver que confrontar, seja um vocalista para construirmos alguma coisa juntos, seja outro produtor. O conceito do Soma começou porque eu tive vontade de organizar umas jam sessions com alguns músicos, que era uma coisa que já não fazia há algum tempo, e então alugámos um espaço , o Namouche, ali em Benfica, e liguei ao João Gomes, dos Cool Hipnoise e Fogo Fogo, sei sempre que ele está em cima do acontecimento e dos músicos todos. E disse-lhe: "Tenho aqui uma série de beats". Estava, mais uma vez, aborrecido, naquele período entre o Natal e o fim do ano, são duas semanas, em que não se faz nada, eu tinha uns 16 beats, discutimos uma lista de músicos e fechamo-nos, foram três dias em que montámos uma banda para cada um dos dias: baixo, bateria e percussão, guitarra e teclas, o João acompanhou os três dias. No segundo dia, uma formação diferente e no terceiro dia fomos buscar mais solistas, flauta, trompete, algumas coisas de voz, etc. Participaram o Yuri Oliveira, o Danilo Lopes ou o Mayo, o baixista de Paulo Flores, o Ivo Costa, várias pessoas, foi muito interessante o quão sintonizados nós todos estávamos, mesmo eles não sabendo o que iam tocar, nada.

É essa a graça das jam sessions, é uma espécie de recreio. O disco começa com: "Quando estiverem, bora? Está a gravar?"

Ya, e a minha ideia era mesmo um desafio do género: fala-se muito deste som de Lisboa, temos uma série de músicos que estão a tocá-lo em várias formações, a acompanhar vários artistas, ao tocá-lo, já o estão a moldar. Mas nunca deram uma carta branca para tocarmos todos juntos e reagir, quase que a tocar o que nos vai no subconsciente, sem um objetivo, sem nada, sem saber nada. Eu dava um play e começavam todos a tocar e reagir uns aos outros. É claro que eu já tinha música, inclusivamente já tinha estado no Brasil onde já tinha gravado o tema com a Bia B, o Nuvem, e já tinha gravado também com os Tuyo, o Leve, e foi aí que conceptualizei o disco e percebi que seria super social. Depois, foi passar da improvisação para o formato pop canção, foram muitas horas aqui no copy paste, mas foi super simples, estava tudo ali. Houve muita coisa que ficou de fora, muita música. Imagina, cada beat meu começou como uma ideia de dois minutos e passou a ser uma ideia de 25 minutos, com linhas e coisas, e tenho isso tudo guardado, para um dia.

PUB
Foto: D.R.

Contigo nada se perde, tudo se transforma.

É verdade, (risos), tenho sempre tudo aqui arrumado.

Mas dá a sensação que és quase todo instinto, mais do que essa racionalização.

PUB

Vou ser muito honesto, não gosto nada da ideia de o pessoal estar todo ali sem um objectivo maior. Mas, neste caso, foi uma ideia que me fez completamente sentido e foi incrível. E, sim, o meu trabalho tem muito disso que dizes, de não pensar muito e ir fazendo, fazendo, desde que a coisa vá ficando arrumada. Uma coisa que aprendi até agora foi a confiar no meu gosto musical. O resto, nem por isso, mas o gosto musical está OK (risos).

Tens a qualidade de cheirar o novo talento. Foste rampa de lançamento do EU.CLIDES, da Rita Vian e do Pedro Mafama, por exemplo, antes disso do Dino d'Santiago e da Mayra Andrade. Dá-te prazer ir buscar esses artistas ainda incandescentes, isso também te alimenta?

Completamente. Tenho um tema neste disco que é um exemplo disso, chamado Fortuna, que é, se calhar, a forma musical mais completa da contemporaneidade, tem a participação do Carlão e de duas irmãs chamadas Yeri e Yeni para quem este é o primeiro som que estão a lançar. Tens o 8 e o 80 na mesma música. Quando estou a ouvir a música estou eu a ver o lugar onde imagino que elas vão estar daqui a quatro ou cinco anos, no meu universo faz-me todo o sentido. Há pessoas que escolhem participações com base em números de Spotify e redes sociais, mas não sou eu.

Constróis paisagens, ambientes, que vão da serenidade à euforia. É isso que te dá gozo, contagiar as pessoas, chamá-las em comunhão para uma pista, ou paisagem, tipo: vamos juntar-nos e curtir. É o que te move?

PUB

Deep down, acho que é isso, se calhar houve sempre uma intenção, já há alguns anos, de tentar fazer algum tipo de afirmação musical da nossa cidade de Lisboa, não no sentido de cidade em si, e nas suas fronteiras específicas, mas no sentido de ser um epicentro cultural, de cultura que fala português no mundo inteiro, passa muita coisa por aqui. Porque eu senti isso na cidade, quando estava a crescer, senti essa energia e criei esse universo na minha cabeça, se calhar até um bocado avançado demais, porque, na realidade, ainda não estávamos assim tão avançados quanto isso. E sim, sempre foi muito essa a ideia do vamo-nos juntar e curtir, mas vamos, acima de tudo, celebrar tudo aquilo que é daqui que é nosso e único e que está a movimentar as pessoas e que só saí daqui porque só podia acontecer aqui.

Foto: D.R.

Falamos muito da música de Lisboa, mas é África que está muito presente. Depois aparece a Rita Vian e agora a Teresa Salgueiro, mas és, aliás, o Branko. Tinhas alguma ligação familiar ou pessoal com África?

Não. Acima de tudo acho que foram os 10 anos em Buraka Som Sistema, onde a matriz era uma versão do kuduro de Angola, em formato amador, e esse crescimento e tudo aquilo que acabamos por fazer e por desenvolver. E eu mudei a minha forma de produzir para o projeto, vem muito dessa ligação e de todos os outros músicos e pessoas que acabámos por juntar. Sinto que é uma perspetiva de Lisboa sobre todos os sítios que falam português no mundo. E também outras cidades onde eu sinto que acontece exatamente a mesma coisa relativamente a outras cenas e outras coordenadas. Acima de tudo, o que eu acho mesmo interessante é quando a música eletrónica e a música de dança vai buscar alguma raiz, alguma identidade, alguma forma mais original de conseguir tirar-se uma cena local com base nisso. Fui uma coisa que acabei por explorar, no programa que fiz para a RTP, o Clube Atlas. Eu fui a Lima, no Peru, ouvir e perceber como é que vamos passar a cumbia, que é super tradicional das montanhas do Peru, para uma cumbia digital e eletrónica que tomou conta das capitais todas da América do Sul, eu revejo-me nesses cruzamentos, nesses diálogos.

PUB

Não significa que, daqui a 10 anos, com tantas nacionalidades a vir para cá, não juntes outras camadas.

Completamente. Mesmo até explorar o lado tradicional da música portuguesa. Foi uma coisa muito presente no 2020 com a Ana Moura [e Conan Osíris], e mesmo o OBG tem umas referências. Passa sempre por ir procurando coordenadas.

Mas o ritmo é Africa.

Pois, na verdade, todo o ritmo vem de África, é quase redundante.

PUB

Convocas os músicos, como um maestro, toda a gente te conhece, mas tens sempre uma atitude de bastidores, sempre atrás, e deixas que a festa aconteça. É muito giro, não queres ser uma estrela num tempo em que toda a gente parece querer aparecer.

(Risos) Sempre lutei por essa ideia. Mesmo estar sozinho num palco foi uma ideia que demorei algum tempo até me habituar. Não, vamos meter uma série de ecrãs por todo lado e tentar tapar o máximo possível (risos). Faço muitos exercícios para me esconder, acaba por ser uma constante. É tão verdade que não consigo acrescentar nada (risos). Não sei até que ponto é timidez, tem que ver com muita autocrítica, tentar fazer com que as coisas estejam sempre a bater certo com uma série de coisas em que acreditas simultaneamente. Mas acaba por ser difícil, justamente hoje em que a comunicação acaba por ser tão imediata. Tentei, em 2023, estar mais presente nas redes sociais e fiz uns vídeos de como criei a música. Mas foi uma das minhas resoluções de 2024: eu não sou esta pessoa. A música, sim, consegue ser intemporal, o resto das fantochadas, não, a música é que resiste ao teste do tempo e essa é a caixinha mais importante para meter o certo e andar para a frente.

A tua música traz muita respiração, parece que dás sempre um salto por cima, há sempre uma evasão qualquer.

Sim, procuro, e até muitas vezes desafio alguns vocalistas (eu não escrevo as letras, mas obviamente estou na sala) e discutimos os tópicos, acho muito interessante fazer música que fale de superação, que fale de questões, problemas, fases da vida, etc. e conseguir seguir um caminho e ter a energia certa. Acho importante haver essa música que nos coloca no mood certo para enfrentarmos um dia, uma reunião, uma noite, tanto coisa que eu sinto. E até um bocadinho pelo contrário, acho super bonito quando me vêm falar: "A Mesa para Dois foi a primeira música que a minha mulher e eu dançámos no casamento." É nessas alturas que a música fica mesmo completa e passa a ser oficial, quando consegue chegar às emoções. O Tudo Certo, com o Dino, foi um tema que muita gente usou como hashtag #tudocerto durante a Covid-19. Gosto muito quando a música consegue ter essa essa ligação com o plano real de existência.

PUB

E tem uma mensagem política ou é só hedonismo?

Acaba por vir de um sítio em que é possível superar situações que, à partida, não são assim tão fáceis, ou óbvias. Não tem um pensamento político por trás, conscientemente, até porque é difícil conseguir ligar as músicas todas porque são pessoas diferentes a escrever as letras. Mas as mais importantes acabam por afirmar identidades, diversidade e celebrar muitas coisas que vemos à nossa volta e que, por vezes, é necessário dar-lhes banda sonora.

Vivemos uma época super complexa: não é só o medo do populismo e da extrema-direita, que já é muito, é um mundo em guerra. Mas as causas também estão todas aí. O que te preocupa e, por outro lado, o que te dá esperança?

Eu entre estar ainda a processar os resultados de domingo passado... Há uma coisa muito estranha mas que, ao mesmo tempo, acaba por ser interessante: a coisa ao menos agora tem uma cara, um número, um valor. Enquanto uma pessoa que vive direitos e valores completamente opostos aos da extrema-direita, é interessante porque até agora estávamos num universo digital, de comentários, quando ganha um contorno real, é mais fácil perceberes que há um inimigo e a sua dimensão, que já é bastante grande. É super complicado. Eu acho que, acima de tudo, aquilo que pensei foi que tenho de fazer ainda mais música e que há ainda há mais histórias de superação para contar e por o dedo na ferida. Nunca me senti minimamente ativista, acho que não sei o suficiente sequer, mas é como tu disseste: a música acaba por tocar as pessoas e dar força à história de alguém. É na música que eu vou sempre tentar fazer as minhas afirmações.

PUB

Só a existência dos Buraka é um statement político, só por si.

E nós falámos nisso bastantes vezes quando nos perguntavam isso: as letras não são, mas o desafio que o grupo tem, só por existir, acaba por ser bastante. Eu vejo o Dino [d'Santiago], por exemplo, que tem muito esse lado, que eu vou sempre aplaudir, mas eu serei sempre o que está aqui a fazer música. Até ao dia em que não consiga mais pagar a renda e tenha de ir para outro lado qualquer. Se calhar, o que sinto mais como desafio, é um pouquinho a evolução da cidade de Lisboa e a sua relação com o turismo. Por um lado, é ter público para essas coisas que são criadas, o público cresceu muito, por outro lado é complicado porque esse público começa a deixar de ter sítios, porque as rendas começam a ser impossíveis de pagar, lugares como a Casa Independente e outras do género, que são expulsas para abrir hotéis. Falamos tanto de Lisboa, e passámos esta entrevista a falar de Lisboa... e começa a surgir alguma dúvida, algum ruído nesta Lisboa que, na verdade, é tão aberta e de forma tão bonita e honesta, que acreditas que continua a existir. 

PUB
PUB