Vale a pena conservar as células do cordão embrionário? Esta será uma das primeiras perguntas que surgem ainda na gravidez e a primeira grande decisão que os pais têm de tomar. A Máxima foi ouvir respostas que ajudam no momento de dizer sim ou não.
22 de setembro de 2015 às 07:00 Máxima
Há doze anos, altura em que surgiu o primeiro banco privado de criopreser - vação em Portugal, esta questão ainda não fazia parte das prioridades da maternidade. Ainda assim, o caso da Inês e do João já tinha ‘abanado’ a sociedade portuguesa. Inês, na altura (1993) com dois anos, sofria de uma leucemia que resistia a todas as terapêuticas, quando os pais ouviram falar pela primeira vez de uma técnica que se encontrava em fase experimental a nível mundial: o transplante de células do cordão umbilical.
Não hesitaram e anteciparam uma nova gravidez. Numa luta contra o tempo, nasceu o João, que acabaria por vir salvar a vida da irmã. Inês foi transplantada com células do cordão umbilical do irmão no dia 28 de setembro de 1994, seis anos depois da realização do primeiro transplante do género, em Paris. A eficácia da terapêutica e a compatibilidade das células colhidas do sangue do irmão eram incertezas no processo, mas a prova de que o especialista Manuel Abecasis tomou a melhor decisão chama-se Inês e João, hoje jovens saudáveis. É uma história bonita. Mas antes que se precipite, a recolha de células estaminais continua a não reunir consenso, mesmo apesar da investigação promissora destas células no tratamento de doenças autoimunes e neurodegenerativas.
"Tomei conhecimento desta solução quando fiz um trabalho na faculdade sobre células estaminais. Tive de pesquisar bastante sobre o tema, pois há dez anos não havia grande informação pública sobre o mesmo e, segundo me recordo, em Portugal, havia apenas duas empresas a fazer a criopreservação de células
PUB
estaminais. Com toda a informação que obtive ao longo destes anos – e consciente das limitações na sua aplicabilidade –, decidi fazer a
criopreservação quando nasceu a minha filha, pois acredito no avanço da ciência e da medicina. Por exemplo, o Prémio Nobel da Medicina em 2012 foi atribuído a dois cientistas por uma descoberta revolucionária na área das células estaminais. Não é uma área estanque, há uma
constante evolução que me leva a acreditar no potencial desta solução de criopreservação. Apesar do elevado valor face às atuais aplicabilidades, considerei esta solução como um
‘seguro de vida’ a longo prazo que espero nunca precisar de utilizar."
PUB
A controvérsia vai da utilidade ao negócio de uma das indústrias privadas que mais tem crescido nos últimos tempos. As células estaminais possuem características únicas: não diferenciadas, podem transformar-se noutros tipos celulares e têm ainda a capacidade de se autorrenovar e dividir indefenidamente. Encontram-se no tecido adiposo, no sangue, na medula óssea e no cordão umbilical, sendo as células estaminais do sangue do cordão umbilical semelhantes às que se encontram na medula óssea.
A polémica acerca destas células foi reforçada em 2012 com o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) que considerou que os bancos privados que conservam estas células fazem campanhas "agressivas" dirigidas a um "público numa fase particularmente vulnerável da sua vida". No parecer, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), entidade que agora coordena a atividade do banco público de células do cordão umbilical, explica que "a probabilidade de uma criança vir a ter uma anemia aplástica grave (…) parece muito baixa (menos de 1 em 50 000) para justificar a conservação de SCU para utilização pelo próprio (utilização autóloga)". Sendo uma opção de caráter familiar e privada, o IPST esclarece que "o potencial benefício, para o próprio ou um irmão ou irmã (utilização alogénica relacionada), é na verdade, no momento atual, quase residual e geralmente inexistente".
Neste relatório, explica-se que, ao contrário da informação veiculada, o sangue do cordão não é um "seguro de vida", uma vez que nem sempre é recomendado ao próprio. Muitas das doenças são genéticas e a criança iria receber as suas próprias células ("contaminadas"): "Há bancos privados que incluem na sua publicidade a potencial aplicação no tratamento de leucemias. Atualmente, o autotransplante não é considerado como a melhor opção nestas situações, dada a ausência do efeito graft versus leukemia e o risco da existência de células leucémicas clonais no enxerto." O banco público é, segundo especialistas, a melhor opção. Recentemente reativado, o banco público efetua uma recolha de amostras gratuita, criteriosa (não se colhem todas as amostras, os bebés dadores são escolhidos de forma a assegurar a diversidade genética e assim responder à população portuguesa) e que, além de poderem tratar irmãos em risco de vida, revertem para um universo público, estando disponível para recetores em Portugal e, brevemente, também no estrangeiro.
O cientista e Prémio Pessoa 2002, Manuel Sobrinho Simões, desaconselha a conservação de células estaminais do sangue do cordão umbilical. A Máxima foi saber porque mantém esta opinião o Diretor do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular.
PUB
Acerca da utilidade das células estaminais do sangue do cordão umbilical, recordo-me de o Professor ter dito, numa entrevista, que se tratava de uma ‘aldrabice’. Mantém a opinião? Continuo a pensar que é indecente (e uma "aldrabice") procurar fazer negócio com as células estaminais de sangue do cordão através de uma chantagem afetiva sobre jovens pais deficientemente informados. Aliás, se assim não fosse, teria aconselhado os meus filhos a fazerem-no. E não aconselhei…
Na verdade, o que é que os pais devem saber antes de tomar a decisão? Os pais devem saber que a probabilidade daquele
procedimento – pelo qual vão pagar um dinheirão – vir a ser útil para o seu filho é praticamente nula e para um irmão do "seu" filho é infinitesimal. Se por acaso o tal irmão viesse a precisar poderia recorrer a um banco público que, também neste aspeto (tempo), é a solução que oferece mais garantias.
Há novidades terapêuticas no uso de células estaminais de sangue de cordão? Sei demasiado pouco deste assunto para dar
PUB
palpites sobre o que é novidade ou não. Entretanto, é unanimemente reconhecido que as células estaminais de sangue do cordão têm características que as tornam interessantes em termos terapêuticos. Para já, a sua utilização só não é mais frequente porque essas células são quase sempre em número demasiado limitado
para fins terapêuticos em adultos.
O país e a comunidade beneficiavam mais com um banco público? O banco público é a solução que devemos perseguir enquanto sociedade civilizada e organizada. Felizmente já o fazemos para o sangue. É por isso que aconselho todos os familiares e amigos a doarem ao banco público as "suas" células estaminais de sangue do cordão.
Pioneiro da transplantação em Portugal, Manuel Abecasis é o Diretor do Serviço de Transplantação de Progenitores Hematopoiéticos. A Máxima foi ouvir a opinião do prestiagiado hematologista.
PUB
O que é que a medicina e a hematologia pensam sobre a utilidade das células estaminas de sangue do cordão umbilical (SCU) para uso autólogo ou de um irmão em caso de doença no futuro? Afinal, em que circunstâncias podem mesmo vir a ser utilizadas? Há que distinguir as situações em que podem ser utilizadas daquelas em que podendo ser utilizadas são-no com benefício demonstrado. Neste último caso, e se nos cingirmos ao que está publicado na literatura da especialidade, vemos que há um número muito pequeno de casos de aplasia medular grave (situações em que a medula óssea deixa de funcionar) em que foi feito com sucesso um transplante de células do cordão umbilical do próprio. A aplasia medular grave é uma situação muito rara, cerca de um caso em cada 100 mil pessoas por ano. Portanto, a probabilidade de uma criança que congelou o seu SCU vir a precisar dessas células por esse motivo é ínfima.
O benefício da utilização para tratamento de uma leucemia que se manifesta anos mais tarde não está minimamente avaliado, embora haja igualmente um número muito reduzido de doentes em que tal foi feito, mas na ausência de follow-up adequado não é possível avaliar da real eficácia do procedimento. As empresas que vendem os serviços de armazenamento estão hoje muito mais viradas para uma hipotética utilização na área da medicina regenerativa (Alzheimer, Parkinson, diabetes, etc.). De facto, nesta área a especulação é muita. A Dr.ª Joan Kurtzberg (Durham, Carolina do Norte, EUA) tem utilizado células do SCU para tratar crianças com situações neurológicas como a paralisia cerebral e o autismo em vários ensaios clínicos que decorrem há anos e incluem centenas de doentes tratados (entre eles três portugueses). Os resultados disponíveis até à data não permitem concluir que há qualquer benefício do tratamento. No V Congresso de Transplante de SCU realizado no Mónaco, em março de 2015, a Dr.ª Kurtzberg apresentou os seus estudos mas não mostrou qualquer evidência significativa de melhoria nos doentes tratados, resultados mais detalhados serão finalmente publicados ainda este ano e a comunidade científica aguarda com interesse essa publicação. Eu participei igualmente nessa reunião e tive oportunidade de apresentar a nossa experiência no IPO com a utilização de SCU que congelamos na circunstância de haver uma criança que está a ser tratada no IPO, que pode vir a ter indicação para transplante – a mãe está grávida e dá à luz uma criança saudável cujo SCU poderá vir a ser utilizado para transplantar o irmão. Em 20 anos desta atividade congelámos 100 SCU, dos quais sete foram utilizados, estando cinco doentes vivos e bem.
"Há dois anos, estava grávida, vi uma publicidade à criopreservação de células estaminais protagonizada por uma figura pública e fiquei
convencida. O meu pai morreu aos 45 anos com linfoma. Antes, tinha perdido o meu primo de 30 anos, também de cancro. O anúncio às células estaminais não me colocava dúvidas. No workshop sobre mamãs e bebés voltei a receber mais informação sobre o assunto, mas a verdade é que, quanto mais aprofundava esta solução, maiores eram as incertezas. Falavam da
quantidade necessária de células estaminais que seria preciso recolher, mas até que ponto é a quantidade suficiente para tratar uma doença em
PUB
adulto? Também explicaram o caso dos irmãos, mas a compatibilidade total não é garantida: veja-se o caso do meu tio e do meu pai que não eram compatíveis. Estes dados deixaram-me desconfiada. Não porque não acredite na utilidade das células estaminais. Mas não acredito que sejam úteis daquela forma como me passaram a mensagem. Preferia doar para um banco público. Por isso, optei por não fazer."
Há patologias em que o uso autólogo de células estaminais de sangue de cordão têm melhores resultados do que as células da medula óssea? Não há qualquer estudo feito nesta situação pelo que não é possível responder. Não creio sequer que a questão se venha alguma vez a colocar nesses termos.
Há novidades terapêuticas no uso de células estaminais de sangue de cordão? Verdadeiramente não, embora no plano da investigação haja constantemente novidades.
O IPO já alguma vez tratou um paciente com células de bancos privados? Não.
PUB
Há avanços que justifiquem o gasto/investimento dos casais? Não há dados novos que justifiquem uma mudança de atitude. A possibilidade do SCU poder ser utilizado no futuro para tratamento de doenças baseadas na regeneração celular é especulativa ou hipotética. É certo que os avanços da medicina podem ser imprevisíveis, portanto ninguém pode garantir que futuramente não seja possível utilizar essas células para variadas aplicações.
O que é que os pais devem perguntar/saber antes de decidir? Os pais devem ser informados: no estado atual da ciência médica, a utilidade da criopreservação do SCU é ínfima, ou seja, a probabilidade de vir a ser utilizado é muito reduzida. Os números são variáveis consoante os estudos consultados, mas penso que deverá andar pelos 1/20 mil; devem assegurar-se que a empresa proponente está devidamente autorizada a exercer essa atividade pela autoridade competente, que em Portugal é o Instituto Português do Sangue e da Transplantação; devem ser
informados de uma forma transparente das implicações financeiras do contrato, tempo de armazenamento da unidade de SCU (número de anos que o contrato prevê que fique guardado), custo de manutenção anual, o que acontecerá se a unidade de SCU não cumprir os requisitos de qualidade e segurança (número de células, contaminação microbiológica do produto) adequados, o que acontecerá caso a empresa seja extinta.
Não é uma pergunta mas uma constatação. No site de uma empresa privada são apontados casos de crianças tratadas, curiosamente todas no estrangeiro. O que lhe oferece dizer dizer sobre isto? Os casos são tão poucos que no universo português