As enfermeiras amorosas

Os brasileiros chamam-lhes ficantes. São aquelas pessoas que nunca passam de caso a namoro. A maioria aceita mas não gosta.

As enfermeiras amorosas
14 de janeiro de 2015 às 08:00 Máxima

“Nenhuma razão para ficar é uma boa razão para partir.” Uma frase bonita escrita num muro. De um grande pensador, talvez, mas de teorias está o mundo cheio. Ficar pode ser apenas uma questão de preguiça ou de medo de arriscar e ir embora. Os brasileiros acham que sim. Por isso chamam “ficante” a quem permanece numa relação sem saber como nem até quando. O ficante só pode viver bem se aceitar uma série de regras. E a primeira é a noção da fragilidade da relação. É preciso aceitar que hoje ele – ou ela – está in, amanhã pode estar out

Há mais ficantes homens ou mulheres?

PUB

 É difícil dizê-lo. Por um lado, as mulheres têm uma tendência para usar mais o reportório emocional, o que implica que deveriam aguentar menos tempo uma situação meramente física. Por outro, dada a sua faceta de salvadoras do mundo, por vezes perdem anos de vida a lutar contra uma evidência: nunca vão ser a mulher amada. Já os homens parecem mais disponíveis para aceitar uma situação descomprometida, regida pela atração física e não pelos sentimentos. Mas não existem dois indivíduos iguais…

É possível passar de ficante a namorado?

É, mas não é comum. Pior: muitos casamentos fracassam porque o casal (ou pelo menos um dos membros) encarara o namoro como um longo ficar e o casamento como o namoro. Quando se esgota a fase do idílio, sentem que foram empurrados para um compromisso ou que não escolheram efetivamente o parceiro, deixando-o simplesmente ficar na sua vida e construindo com ele um prédio oco por dentro.

É bom que aceite também a sua condição sem a misturar com outras classificações possíveis, sendo as duas mais comuns namorado/a e amigo/a. Nós, portugueses, usamos o termo “amigo colorido”, mas não é bem a mesma coisa. O ficante não tem de ser amigo do ficado. Podem desenvolver uma relação baseada na mera atração e no sexo.

PUB

Numa sociedade marcada por acentuadas mudanças no agregado familiar clássico, em que as pessoas se separam e reagrupam formando novas células e reinterpretando a vivência amorosa, a relação com o outro, o vínculo estabelecido, acompanham essa volatilidade. O aumento do número de divórcios, o adiamento da vida em comum fora da casa dos pais, por falta de recursos económicos ou imaturidade, tudo isso permite que se viva o romance de uma forma menos adulta e comprometida. E sem compromisso não há namoro. Muitas vezes nem sequer existe espaço para o enamoramento, tema tão bem explorado por Francesco Alberoni no livro Sexo e Amor. Alberoni defende que “o enamoramento aparece sempre de uma forma inesperada”. “Nós apaixonamo-nos quando estamos cansados do presente, quando estamos preparados para acabar com uma experiência já feita e gasta, quando estamos preparados para mudar e temos o ímpeto vital para empreender uma nova exploração do mundo, para mudar de vida.”

Pode residir aqui o problema do desprezo atual pelo enamoramento: a falta de desejo de mudança, a apatia reconhecida noutros comportamentos sociais de uma geração habituada a dar como adquiridos uma série de pressupostos pelos quais outros lutaram. Nesse caso, muitos ficam-se pelas atrações e pelo sexo. Quando muito por algumas paixões sem continuidade.

O problema é que muita gente aceita representar um certo papel quando, no fundo, ambiciona outro. E isso reflete-se numa imensa insatisfação. R., de 36 anos, coleciona relações efémeras nas quais nunca chega a protagonista. É daquelas ficantes que parecem talhadas para ocupar o lugar vazio na vida de homens temporariamente sós – só existe enquanto ser desejado no intervalo entre amores, é uma espécie de enfermeira amorosa. Apesar de ter já alguma consciência dessa situação, continua a envolver-se com homens que claramente começam a relação à defesa e assim se mantêm até ao fim. Como normalmente estão magoados por experiências anteriores recentes, não têm espaço para ela, que nunca sai do plantão da traumatologia.

PUB

MAIS >

 

A ficante crónica

 É aquela que continua a perguntar-se porque não acerta uma; porque tem tanto azar no amor, etc., etc., etc. Coleciona casos que começam com um fascínio por um homem ou mulher recém-saídos de uma guerra emocional, vulgo separação. A ficante crónica acredita que dessa vez será diferente e empenha na relação a mesma dose de fé e energia que investiu nas sete anteriores. Com uma agravante relativamente a um caso passageiro ou a uma one night stand: como vai ficando, vai sofrendo mais porque a hora de se tornar a mulher da vida dele nunca chega. 

O eterno ficado 

É o supercharmoso que passa a vida a convidá-la para sair e para fazer programas, que provavelmente já se enrolou consigo, mas que continua a falar em amizade a propósito de tudo o que vos diga respeito. Pode acontecer que, a certa altura, confesse ter conhecido “uma mulher fantástica”, levando-a a crer que é normal passarem o fim de semana a dar cambalhotas no Colunex e a falarem da próxima conquista dele. Um conselho: se está apaixonada por um tipo assim, fuja dele o mais rápido possível. Quanto mais tempo conviver com este cavalheiro mais vai delapidar a sua contra a autoestima dele.

PUB

Isto revela, por outro lado, a sua incapacidade para estabelecer ela própria uma relação mais duradoura. Era suposto que ao fim de três experiências deste género, soubesse reconhecer os sinais de perigo, ao invés de continuar a acreditar que vai mudar esses indivíduos, levando-os a apaixonarem-se por ela. O que, bem vistas as coisas, poderia ter um efeito curioso. Se fosse efetivamente amada na relação, seria R. capaz de fazer alguma coisa com isso, de trabalhar para um namoro? 

Certas pessoas permanecem ficantes crónicas sem terem consciência disso. Se analisarem as suas sucessivas relações passageiras, dirão apenas que têm tido “azar” ou que hoje “ninguém quer comprometer-se”. Já ouviram por aí variações destas duas frases, verdade?

Para começar, talvez fosse bom clarificar os conceitos mais comuns de uma relação de cariz erótico, amoroso ou afetivo entre pessoas de sexos diferentes (ou iguais, porque não?).

Por exemplo: o amigo é aquele com quem se desenvolve uma relação de cumplicidade e afeto que, na maior parte do tempo, não inspira qualquer atração física. Regra geral, convive bem com ficantes e com os namorados, dado que não concorre com eles em vários campeonatos.

PUB

O ficante é a pessoa que se encontra na praia, que se descobre na cama ao fim de uma noite mais etílica ou que trabalha na secretária ao lado e sabe tudo sobre as nossas fragilidades. Um dia, como por golpe mágico, surge uma oportunidade para ele colmatar um vazio, coisa que aproveita para fazer com jeitinho. Num instante, essa pessoa começa a aparecer na nossa rotina e a fazer falta. Não é alguém com quem se partilhe confissões, mas faz companhia e dá prazer. Não possui defeitos suficientes para se tornar um peso nem faz as cobranças necessárias para ser posto a milhas.  Assim sendo, vai ficando. 

O namorado é aquele que vai revolucionar a vida de todos os outros. Alberoni tem razão quando diz que o enamoramento implica uma revolução, e ela começa na relação com todos os que integram o mundo do apaixonado. “O enamoramento, do ponto de vista sociológico, é o estado nascente de um movimento coletivo composto apenas por duas pessoas. Cada pessoa está inserida num tecido de relações sociais e afetos consolidados. No enamoramento, duas pessoas estabelecem entre elas uma relação privilegiada que as separa do seu próprio conjunto social e produz em seu lugar uma entidade social e cultural nova: o casal que volta a estruturar todas as relações que cada um tinha com a família, os amigos, o emprego, a religião, a política.”

Finalmente, existe o amante, aquele que ama mas de forma não oficial. O amante pode ser um ficante. Mas dificilmente poderá manter-se amigo (se alguma vez o foi). Alguns chegam a namorados ou maridos ­– embora não seja comum. Vejamos agora outras interrogações sobre essa estranha entidade chamada “ficante”.

PUB

Quanto tempo é razoável ir ficando?

A vida inteira se você quiser e não tiver outras expectativas. Mas se alimenta o desejo de se tornar mais do que ficante, bastam três meses para perceber se tem alguma hipótese de passar de companheira de orgasmo a amante de fim de semana romântico. Se reparar bem, desde o início da relação que os códigos entre ficantes e possíveis namorados são distintos. Como se num segundo ou terceiro encontro o ficado percebesse e assumisse que não quer mais dali do que sexo e companhia, deixando a envolvente emocional para outro campeonato.

Há alguma vantagem em ser ficante?

PUB

Claro que sim. Imagine que saiu de uma relação complexa e que não está disponível para se envolver com ninguém nos próximos tempos. Apesar disso, há um momento em que a sua libido lhe envia um SOS porque está farta do jejum. Não há nada de mal em ter alguém com quem jantar fora e fazer sexo. Desde que deixe claro perante o outro que a relação se baseia nisso.

Os ficantes podem não querer sexo?

No início deve haver sexo porque senão o ficante seria um amigo e, na verdade, ele não entrou com esse estatuto na relação. Mais: o ficante não tem de ter grande afinidade com o ficado, sendo o elo mais comum a atração física que se consuma em sexo para manutenção da relação. Pode, no entanto, ocorrer um desinteresse do ficante pela vertente sexual, bastando-lhe o jogo da sedução. Resta saber se para o ficado isso é suficiente ou se vai procurar outra companhia.

PUB
PUB