Ana Moura - Tudo isto é (des)fado

Cantou com Prince e Mick Jagger, namorou o jazz, piscou o olho a Caetano Veloso. Agora, vai deixar meio mundo de boca aberta com um disco em que os músicos de primeira água, de Larry Klein a Herbie Hancock, nadam perto do Fado.

Ana Moura - Tudo isto é (des)fado
18 de janeiro de 2013 às 07:48 Máxima

Não há meias medidas para Ana Moura: Desfado é a descoberta, outra vez.

Pergunto-lhe diretamente, como quem quisesse saber as horas do seu pulso, pelo relógio biológico. Recebo em troca mais um sorriso especial – e foram vários ao longo de uma conversa sem fronteiras – e uma resposta provisoriamente definitiva: “Engraçado… Ainda ontem, quando estava a dar uma ajuda a resolver um problema da minha sobrinha, dei por mim a parar e a pensar nisso. Mas seria um disparate deixar-me levar por um qualquer instinto dessa área, nesta fase… O meu sonho maior ainda é a minha carreira e, como este disco prova, quanto mais se anda mais longo é o caminho por andar…”

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Quando abordamos a incontornável crise, é perentória, mostra-se mais aflita do que assustada: “Vivo a crise por todos os que me rodeiam. Todos os dias vou conhecendo histórias, vou sabendo de notícias absolutamente incríveis… É uma das poucas circunstâncias em que me sinto perdida porque, aqui, nada se resolve com a visibilidade. Custa-me ficar sem saber o que fazer e gostava de descobrir uma forma de ajudar… Se calhar, faço aquilo que sei – vou cantando…”

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Ana Moura, aos 33 anos, vive um estado de graça impossível de esconder. Por mérito de um percurso que, em tempos mais próximos, a levou com voz ativa aos palcos de Prince e de Mick Jagger, a fez gravar num projeto dos Rolling Stones e num tributo a Caetano Veloso, a conduziu a um trabalho cúmplice com a Big Band de Frankfurt – e é de jazz que falamos, naturalmente. Uma digressão norte-americana em pleno, o reconhecimento crescente da crítica internacional, a conquista (e não há outra palavra que melhor vista a ação, nos terrenos de “alta competição” em que se move) de novos públicos também não desajuda. Mas a culpa é, por estes dias, de Desfado, quinto disco de carreira, aquele que a indesmentível protagonista aceita ser o primeiro de um novo ciclo – até porque vale como desafio, descoberta, é desalinhado e lança a desgarrada para saber rapidamente qual a resposta geral a este novo elemento do desejo.

Antes de mais nada, Desfado é “dois em um”. Eu explico: revoluciona por completo a paleta de autores e compositores que habitualmente se coloca ao dispor da voz de Ana Moura. É verdade que por aqui se mantêm os nomes de Aldina Duarte, Manuela de Freitas, Tozé Brito, Mário Rainho, Nuno Miguel Guedes, todos eles já com passados comuns às escalas da fadista. Mas juntam-se criações de Pedro Silva Martins (Deolinda), Nuno Figueiredo e Jorge Benvinda (os Virgem Suta), Márcia, Luísa Sobral, António Zambujo, Pedro Abrunhosa, Miguel Araújo e Manuel Cruz (em tempos líder dos Ornatos Violeta). Convenhamos: são demasiadas convocatórias em simultâneo para que se possa falar em coincidência. Ana confirma: “A ideia não pode ser mais simples – chamar gente da minha geração e lançar o desafio de escreverem para mim, tão especificamente quanto lhes fosse possível. Com muita pena minha, faltam alguns que gostaria de ter contactado. Mas estes já formam um naipe absolutamente notável de criadores que, em minha opinião, têm em comum uma linguagem muito portuguesa, por mais distinta que pareça entre eles. Depois de um primeiro contacto, houve conversas em que lhes tentei explicar que pretendia seguir um princípio literário, muito abrangente mas presente – algo que passasse pela loucura, pelos sonhos, pela vontade (ou pela necessidade) de arriscar…” Estava implícito que, mais tarde ou mais cedo, cada um dos capítulos de Desfado começaria um processo de transformação que, de forma mais regrada ou mais irrequieta, o levasse a chegar ao Fado. Mas esse, insisto, era apenas o primeiro dos dois saltos de aventura que Ana Moura cumpre com brilho e segurança.

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O segundo, tão imprevisto como o outro, nasceu da vontade de, munida de matéria-prima tão sólida, tão eficaz mas também tão inovadora, Ana ter decidido buscar ajuda num produtor que lhe abrisse caminho para algo substancialmente diferente. A ausência de Jorge Fernando, ocupado com o seu próprio disco e pela primeira vez distante dos comandos de um registo da fadista, deixava tudo em aberto.

As experiências no universo do jazz e o gosto pelos discos de Madeleine Peyroux, uma das grandes cantoras da atualidade, fizeram soar o sinal de alerta: e se fosse Larry Klein? Aos 56 anos, este baixista e produtor, que já foi casado com a grande Joni Mitchell e hoje tem como cônjuge a cantora brasileira Luciana Souza, vale um currículo impressionante: trabalhou com la Mitchell, Innocence Mission, Shawn Calvin, Holly Cole, Mary Black, Julia Fordham, Madeleine Peyroux, Rebecca Pdigeon, Vienna Teng, Herbie Hancock (que acabaria por dar duas mãozinhas em Desfado), Walter Becker, Tracy Chapman e Melody Gardot, entre outros e outras. Mas como se armadilha uma velha raposa, seduzindo-a para orientar um álbum em que, já se sabia, a linguagem do Fado poderia corresponder a uma estranheza total?

As surpresas tomaram conta dos momentos felizes de Ana Moura: “Ele já conhecia discos portugueses, discos meus, e a resposta foi imediata. Como confirmei depois, é daquele género de produtores que está sempre a ouvir música nova e a tentar descobrir coisas diferentes… As primeiras conversas foram no skype, com ideias para cá, ideias para lá… Depois, ele veio a Portugal e foi submetido [risos] a um programa intensivo nas casas de Fado, mas não só. Conhecia a Amália, ficou a conhecer o Marceneiro, o Fausto, por aí fora. Quando finalmente nos juntámos para gravar até passava a ideia de que já conhecia o Fado há muito tempo…” No meio deste processo de assimilação, indispensável para que se lhe seguisse a transformação, Larry Klein ajudou Ana a entender que a sua escolha nunca poderia transformar-se em equívoco: “Achei graça porque ele foi registando as sonoridades dos instrumentos tradicionais portugueses e, no regresso a casa, andou à procura de sucedâneos, de modo a que o ambiente musical não fosse descabido e não me assustasse…” Uma exceção para confirmar esta regra: a guitarra portuguesa, insubstituível, inimitável. Em duas semanas de estúdio, o essencial de Desfado ficava pronto, com Ana a poder exibir outro troféu: “Os músicos com que tive a sorte de gravar são daquele género que precisa de distância, de uma ‘limpeza’, quando acabam as gravações. Neste caso, talvez por ser algo que escapasse aos seus hábitos, continuaram a ouvir o que tinha ficado registado e já me contactaram várias vezes para saber quando é que o disco fica pronto…”

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Desfado vem aí, para abanar e para mudar. Mas mantém algumas das bases de trabalho de Ana como, por exemplo, a gravação de alguns fados tradicionais, dotados de novos poemas. “É um processo curioso, em mim. Sou capaz de ficar uma semana a ouvir o mesmo Fado e, se me apaixono ao ponto de querer gravá-lo, peço uma letra que se ajuste ali.” É um processo infalível? “Nem sempre [risos]… Desta vez, a Aldina [Duarte] sugeriu outro, mas eu queria muito gravar o Fado Macau.” E num caso destes? “Levo a minha vontade por diante, tal como acontece quando estou a tratar dos arranjos com os músicos que me acompanham em palco. Todas as ideias são recebidas, nem todas são passadas à prática.”

'Nunca premeditei aquilo que me aconteceu nos últimos anos'

A conversa deriva para os gostos de quem ama a música: “Não ouço só Fado, nada disso. Gosto de estar a par de toda a música portuguesa e a última descoberta foram os Minta & The Brook Trout. Ouço muito jazz e algumas das minhas vozes favoritas vêm da soul.” A saber: “Marvin Gaye, Nina Simone, Aretha Franklin.” Compra muitos CDs e DVDs, que lhe permitem manter contacto com o cinema, mas a horas que encaixem na sua disponibilidade irregular, quase desregulada. Na TV, confessa a sua fraqueza por uma certa animação americana, aquela que cobre os Simpsons e Family Guy. Ao tempo da entrevista, Ana Moura estava a ler A Solidão dos Números Primos, do italiano Paolo Giordano, livro de duas solidões que se tocam… Como quem não quer a coisa, pergunto-lhe se, quando canta, o faz a pensar em alguém, família, amigos, amores. Que não, que nem por isso: “Só sei que vou para uma zona de conforto, que cá dentro sinto como se estivesse em contacto estreito com a alma, conseguindo o alheamento face a qualquer cenário. É engraçado pensar nisso: eu gosto de estúdio, não tenho problemas, mas estava capaz de dizer que os espectáculos são o meu porto de refúgio, na vida em geral, mesmo que a voz não esteja a cem por cento…” Em contrapartida, “odeio ensaios de som, aviões, hotéis. Há ocasiões em que sinto que precisava de mais rotinas mas a verdade é que quase não tenho padrões, faróis, referências que possa levar sempre comigo”. Continua o jogo aberto: “Fico irritadiça quando não durmo. E tenho o defeito de ser muito controladora quando andamos em viagem e alguma coisa corre menos bem…” Depois, percebo que há aqui um turbilhão qualquer que é preciso aquietar, quando me é oferecido o único sorriso triste de toda a conversa e sou presenteado com uma frase que demoro a desembrulhar: “Na perda, há sempre algo de libertador.”

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Recupero a voz para falar de moda e Ana Moura não esconde que gosta de estar “a par das tendências”. Acha piada ao arrojo, ao que sai fora dos parâmetros mais tradicionais, às irreverências de alguns criadores. No seu caso, o gosto a valer vai para peças vintage, que o tempo ajuda a tornar únicas. Compra muitas enquanto está em digressão pelo estrangeiro, mas não descura uma sistemática fonte de surpresas – a Feira da Ladra de Lisboa.

Voltamos ao Fado e à nova geração, que a entusiasma e a motiva. Mas não deixa de referir a “propensão monárquica” [risos] quando há eleições e comparações a querer estabelecer hierarquias e a estimular rivalidades que muitas vezes “são impostas de fora para dentro”: “Parece que só ficamos satisfeitos quando temos uma rainha, alguém que se coloque acima dos outros. A verdade é que temos noites, infelizmente raras, em que o maior prazer é ficarmos ali horas esquecidas a admirar a voz umas das outras. Pela vida que levamos, talvez seja difícil tornarmo-nos amigas. Mas não é preciso passar de um extremo ao outro e cair na inveja e na mesquinhice.”

Último aviso à navegação: Desfado traz lá dentro uma versão do clássico A Case Of You, original de Joni Mitchell, agora às ordens de Ana Moura. Foi Larry Klein quem pediu que ela a cantasse. E Ana, como não podia deixar de acontecer, apaixonou-se pelo tema. Porta aberta para outros estilos, quem sabe se para um disco todo cantado em inglês? “Gosto de pensar nos passos um a um. Nunca premeditei aquilo que me aconteceu nos últimos anos. Daqui em diante, continua tudo em aberto. Mas, para já, quero gozar muito este disco – com esta idade, neste ponto, ele é mesmo o meu sonho.” Ana Moura fala como canta: acaba a subir.

1 de 4 / Ana Moura - Tudo isto é (des)fado
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2 de 4 / Quando canta, Ana Moura sente como se estivesse em contacto estreito com a alma
3 de 4 / A carreira preenche os dias de Ana Moura que assume o estado de graça em que vive
4 de 4 / Desfado, quinto disco de carreira, aquele que a cantora aceita ser o primeiro de um novo ciclo
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