Profissionais do sexo, misoginia e cinismo. Ana Moreira filmou estereótipos numa nova curta

Pela segunda vez a realizar, Ana Moreira fala com a Máxima sobre a dificuldade de filmar em Portugal, a importância de desafiar os arquétipos das mulheres no Cinema e como a pandemia nos fechou ainda mais nos nossos monitores – até no que toca ao prazer.

Foto: Getty Images
21 de julho de 2021 às 08:00 Joana Moreira

Cassandra Bitter Tongue. É este o nome do novo filme de Ana Moreira, o segundo realizado pela atriz portuguesa conhecida por obras como Transe (2006) ou Os Mutantes (2008). A curta-metragem de 20 minutos tem por base um texto de Cláudia Lucas Chéu e faz parte da competição nacional de curtas do Curtas Vila do Conde, que acontece até dia 25 de julho.

O filme - um monólogo que já subiu ao palco através do projeto Cassandra, do encenador Nuno M. Cardoso - tem no centro da história uma profissional de sexo (Íris Cayatte) que depois se revela afinal uma académica a defender uma tese em que reflete sobre questões como a sexualidade, o cinismo, a misoginia. A obra pode ser vista durante as próximas duas semanas em online.curtas.pt.

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Foto: D.R.

Qual a sua relação com este texto, como é que o descobriu?

Este texto parte de um conjunto de sete textos encomendados pelo Nuno M Cardoso a sete autores, portanto dramaturgos, que escreveram a partir da personagem de Cassandra, que na mitologia é uma personagem que é [capaz de] conseguir o dom da profecia, só que, no entanto, em simultâneo, tem uma maldição que é ninguém acreditar na sua palavra, na sua voz, no seu discurso. Vários textos foram produzidos, as peças foram apresentadas em teatro, e um desses dramaturgos é a Cláudia Lucas Chéu. É o texto que encontramos aqui depois de um desafio do encenador Nuno M Cardoso para voltar a repensar nestas Cassandras, mas para o Cinema. Coube-me a mim pegar no texto da Cláudia, um texto literário de teatro, quase um monólogo, e escrever um argumento para este filme.

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Portanto o desafio partiu de Nuno M Cardoso?

Exatamente. Ele convidou vários realizadores para integrar este projeto e, dentro dos vários textos que pude ler, o da Cláudia foi o que na altura me chamou mais à atenção. Perguntei se poderia fazer a adaptação do texto da Cláudia e estava disponível.

O que é que a despertou neste texto?

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O que me despertou neste texto foi a força desta personagem, desta Cassandra, que no início aparenta ser uma trabalhadora de sexo online, mas que no fundo não é bem assim. Tu depois percebes que ela está numa pesquisa de campo para fazer uma tese académica que no fundo dispara em vários sentidos, vai desde a filosofia à sexualidade, à maneira como nos relacionamos e partilhamos a nossa intimidade hoje em dia, questões políticas, sociais, económicas. O discurso dela é uma reflexão sobre o estado das coisas e o momento que vivemos.

Esta ideia de uma profissional do sexo que depois revela, afinal, ser outra coisa - ou ambas, fica no ar - pode abrir também aqui uma discussão sobre preconceitos, do que achamos de alguém quando a vemos pela primeira vez. Já tinha vontade de explorar estes temas? Parece o momento perfeito tendo em conta as discussões que estamos a ter agora.

Exatamente. Daí que a profecia de Cassandra se ajuste um pouco. Este texto foi escrito muito antes da pandemia nos atingir e de outros movimentos começarem a surgir mais vincadamente. Estes temas claro que me interessam por várias razões. Também gosto de brincar um pouco com a perceção e com a ambiguidade das personagens, de brincar com certas narrativas às quais já estamos habituados. Vemos muito personagens femininas no Cinema que são sempre limitadas a arquétipos. É a filha, a mãe, a prostituta, a enfermeira, a adúltera. E a mim interessa-me brincar com estes estereótipos e narrativas que estão constantemente a repetir-se. E jogar um pouco com isso.

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Há também a questão da nossa proximidade com os ecrãs, impulsionada também pela pandemia e que afeta também a própria sexualidade. Como é que foi esse processo, aqui enquanto realizadora, de dirigir a atriz nessa relação com a tecnologia?

Em termos técnicos tivemos que gravar primeiro todo o lado das outras personagens que estão do outro lado do ecrã e depois fazer uma espécie de rendilhado com a atriz, e com ensaios, para que os diálogos, as intenções e os tempos estivessem todos certos. Mas essa questão de usar os monitores dos computadores também reflete esta relação com a pandemia, que estamos todos muito dentro dos nossos monitores, toda a nossa vida está muito orientada para os monitores, seja o trabalho, seja o lazer, seja o prazer. Estamos todos muito limitados a este pequeno enquadramento. 

Foto: D.R.

 

O filme de Pedro Almodóvar, que está agora nos cinemas, é uma curta (A Voz Humana). No Q&A que acompanha a exibição o realizador fala da surpresa de conseguir exibir uma curta em sala e de como o Cinema nesse sentido parece estar mais permissivo na liberdade da criação artística. Concorda com isso? Acha que há mais liberdade hoje para criar uma história independentemente do tempo ou as longas-metragens ainda são vistas como o objetivo final de quem realiza?

A questão é que o Pedro Almodóvar já tem uma obra feita e em princípio não terá muita dificuldade em distribuir uma curta numa sala porque é um realizador conhecido, o trabalho que ele tem é com uma atriz conhecida [Tilda Swinton] e leva o público às salas, seja uma longa seja uma curta. Agora, as curtas de facto têm em si essa questão. Será apenas uma pequena amostra do que virá o realizador a fazer mais tarde em longa? Ou são já um objeto artístico em si mesmo? Eu sou da opinião que as curtas são já um objeto artístico em si mesmo. Não é pela duração que se deve fazer essa distinção porque uma curta não deixa de ser Cinema e não deixa de contar uma história. Agora de facto não há muito espaço para as curtas serem exibidas em sala, daí a importância dos festivais como [o Curtas] Vila do Conde, exatamente para termos essa visibilidade do trabalho e para haver esta possibilidade de partilha de trabalho, não só com colegas, mas também com o público.

Estar numa plataforma digital também permite chegar a outras pessoas.

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Exatamente.

Falando de realização, esta é a sua segunda obra como realizadora. Tem planos de explorar mais este lado ou é algo pontual?

(risos) Não é pontual, continuo a trabalhar nesse sentido. Tenho alguns projetos a serem desenvolvidos com algumas produtoras associadas, só que, no entanto, fazer Cinema é complicado, fazer Cinema em Portugal ainda mais complicado é. Fazer uma primeira curta é difícil e parece que conseguir fazer a segunda curta ou uma primeira longa ainda mais complicado é. Mesmo depois de ter feito uma primeira.

Então uma longa está nos planos?

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Também, também. Mas ainda está tudo em fase de desenvolvimento, não posso desenvolver muito mais.

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