Lamelas, o restaurante da costa alentejana com duetos no feminino
A chef Ana Moura acolhe no seu espaço, em Porto Covo, uma série de jantares a quatro mãos, concebidos em parceria com outras chefs. A cada quinze dias, ao longo do outono, há um jantar com uma chef convidada.

O lugar do homem é na cozinha: eis uma frase que, em princípio, nunca ninguém terá dito. Pelo menos, não num tom sério. Todavia, a cozinha, em especial a de autor, é um espaço cada vez mais ocupado pela presença masculina. Os chefs, aqueles de quem mais se fala, são, na maioria das vezes, homens. E, graças à nova realidade em curso, a mulher foi progressivamente perdendo o proverbial lugar na cozinha. Mas em todas elas? Não! Parafraseando o início de cada história de Astérix e Obélix, num recanto do litoral alentejano, uma cozinha povoada por irredutíveis mulheres resiste, ainda e sempre, aos invasores.
O parágrafo anterior serve apenas de introdução - de amuse-bouche - para sublinhar que os Duetos de Outono, promovidos pela chef Ana Moura no restaurante Lamelas, em Porto Covo, são protagonizados exclusivamente por mulheres. De resto, o género dos chefs não é relevante. O que importa é que dentro da jaleca haja bom-gosto e um bom coração, e que a mão do seu dono ou dona seja bondosa e inteligente na hora de harmonizar e combinar aromas, sabores e texturas, cumprindo sempre o tempo certo das cozeduras. E é isso mesmo que acontece no Lamelas.


Os Duetos de Outono são um programa de menus a quatro mãos em que a chef Ana Moura convida uma camarada de ofício para, em conjunto, conceberem um menu temático. O programa teve início a 18 de outubro, com a convidada Marlene Vieira, do restaurante Marlene (Lisboa). O jantar inaugurou uma sequência que conta ainda, no mês de novembro, com os nomes de Annakaren Fuentes (Pastus, Paço D’Arcos), dia 1, Joana Duarte (mentora da Rota das Algas), dia 16, Michele Marques (Gadanha, Estremoz), dia 29, e que termina, já em dezembro, com Rafa Louzada (TimeOut Market Porto), no dia 13.
Algas no prato
A chef Joana Duarte, convidada de Ana Moura para o Dueto de Outono de 16 de novembro - aquele que afortunadamente tivemos o prazer de presenciar e degustar - tem um currículo vasto e curioso. Formada em Biologia Marinha e Biotecnologia, tem ainda um mestrado em Oceanografia. Entretanto, é chef de cozinha há mais de 15 anos. Formou-se em Barcelona, na Escola Hoffmann, e passou depois por diversos restaurantes, alguns deles com Estrela Michelin. Mais recentemente, decidiu criar a Rota das Algas, onde junta o conhecimento dos oceanos e das macroalgas à gastronomia.


O percurso da chef Joana Duarte é importante para que se perceba o contexto e o motivo deste Dueto de Outono com a chef Ana Moura, inteiramente dedicado às algas. E se a escolha do elemento principal pode parecer surpreendente, o resultado da ementa surpreende ainda mais - surpreenderá principalmente, pessoas com fraca cultura gastronómica que envolva algas, como é o caso deste que vos escreve. O alinhamento do jantar foi delicioso do princípio ao fim e demonstrou, para lá de qualquer dúvida, que muitas vezes menos é mais, deixando claro que o melhor ingrediente de um menu é mesmo o bom-gosto de quem confeciona. As chefs Joana Duarte e Ana Moura estão definitivamente de parabéns, pois o que apresentaram à mesa foi glorioso.

A ementa, que abria com manteiga de algas e bahjis de algas (a palavra "algas" vai surgir muitas vezes, mas é mesmo necessário para que se perceba tudo o que as chefs fizeram com elas), incluía peixe-galo e salada de algas, fricassé de mexilhão e lingueirão, com as algas cabelo de velha e nori do Atlântico - quanto a nós, o prato da noite, absolutamente soberbo -, ravioli de camarão com caldo de algas e, a encerrar o desfile de pratos, uma robusta e saborosa feijoada do mar com algas. Para sobremesa, uma refrescante tarte de queijo com as algas musgo da Irlanda e botelho comprido, que fechava assim um alinhamento irrepreensível.


Vinhos do mar
O pairing para um jantar destas características pedia uma escolha certeira. Os aromas e sabores marinhos deviam ser exaltados pela combinação com vinhos ricos em frescura, mineralidade e salinidade. A preferência pelos vinhos Monte da Carochinha revelou-se muito adequada, com o pairing do jantar a apresentar três vinhos brancos que são um ótimo cartão de visita para a pequena produtora (a vinha tem uma implantação de 6,2 hectares) da região da Península de Setúbal.
O Monte da Carochinha Arinto e Encruzado com estágio em adega acompanhou as entradas. Era o vinho ideal para o arranque da noite: simples, jovial, fácil de beber. Seguiram-se os mais complexos Monte da Carochinha Arinto e Encruzado com estágio no mar e o Monte da Carochinha Arinto Reserva, também com estágio no mar. Ambos os vinhos possuem a certificação de Vinho do Mar, que obriga a um estágio ao largo do Porto de Sines em profundidades entre os 10 e os 15 metros. Tanto um como o outro permaneceram submersos no Atlântico durante 12 meses. São vinhos muito especiais. O Monte da Carochinha Arinto e Encruzado apresenta diferenças bem notórias entre as versões de estágio em adega e estágio no mar, com o segundo a revelar uma muito maior complexidade. Já o Arinto Reserva é um vinho elegante e distinto, ideal para ocasiões especiais - tais como este jantar.
Um cão entra num restaurante
Fundado em 2021 sobre a baía de Porto Covo, o Lamelas é, segundo a própria descrição, um restaurante que se propõe a servir a "nova cozinha alentejana". O que é que isso significa? "Servir os sabores do Alentejo, mas sem a obrigação de seguir à risca o receituário alentejano", de acordo com a chef Ana Moura. Os produtos locais são essenciais para se chegar aos tais "sabores do Alentejo", pelo que o Lamelas usa apenas peixe da lota de Sines e produtos frescos do mercado local. A ambição e a abordagem, juntamente com o talento da chef, valeram ao Lamelas uma recomendação no Guia Michelin 2024.
Além de todas estas características, sem dúvida impressionantes, há mais uma a juntar ao rol. Pode parecer coisa de somenos para o cidadão comum, mas é um detalhe que pode fazer toda a diferença quando se trata de famílias com animais de companhia - e esse não será caso raro num sítio como Porto Covo. É que o Lamelas aceita a presença de cães no seu espaço, desde que cumpram os requisitos do restaurante, como é evidente. Quando achamos que é difícil ficar melhor, o Lamelas consegue acrescentar esta pequena nota de conforto, permitindo-nos entrar com o cão. É quase perfeito. E é obrigatório voltar.
