Alerta (hotel) vermelho! A hospitalidade de Louboutin em Melides
O mais famoso desenhador de sapatos dá asas à sua paixão pelo design de todas as coisas belas e que culminam no hotel Vermelho, em Melides.
Não é sobre a chegada, é sobre o caminho. A frase, batida de tão certa, aplica-se a tudo em geral, mas faz especial sentido se estivermos a falar de uma peregrinação em particular: o Caminho de Santiago. Esse lugar de progressão e de recolhimento, desenhado na História e nos mapas, pintado de todos os tons de verde e envolto num espetro de silêncio que abre espaço para a viagem dentro da viagem. Sim. Sabemos que descrever este percurso não se resume a alcançar o destino. Ainda assim, trocamos as voltas à lógica e à narrativa e começamos por aí, pelo fim, pela meta, pela catedral, em plena Praça do Obradoiro. É nesse lugar onde desaguam todos os peregrinos que encontramos Telma e Denise (qualquer semelhança cinematográfica é pura coincidência!), brasileiras, de Minas Gerais. Conheceram-se ainda meninas, quando estudavam no mesmo colégio de freiras, e nunca se perderam de vista. Na semana anterior, tinham soprado os bolos de aniversário uma da outra, já na estrada, longe de casa, 60 anos de vida partilhada que quiseram celebrar depois de um cancro se ter atravessado nos planos de uma delas. Denise mal chegou, mas já promete que vai voltar. Que magia é esta?
A Galiza é terra de meigas, explica Ana, referindo-se às bruxas que habitam as lendas locais. A guia turística é uma entusiasta da sua terra, sempre a contar um conto e a acrescentar um ponto, seja ele uma expressão idiomática ou uma banda sonora eclética, que vai da música moinheira (tradicional galega, com reminiscências célticas) a Julio Iglesias, a voz que eternizou Un Canto a Galícia, música que dedicou ao pai, natural de Ourense, terra onde o cantor espanhol, de 81 anos, acaba de comprar uma casa. Mas de volta ao caminho e à sua magia, de volta à Galiza e às suas mulheres. Eram elas que ficavam quando os homens partiam em busca de uma vida melhor, matriarcas valentes e abnegadas ou, como diz Ana, “viúvas de mortos e de vivos”. Talvez seja essa aura feminina (feminista?) que hoje atrai tantas mulheres a Santiago de Compostela. No caminho avistamos muitas, acompanhadas, como Telma e Denise, mas também sozinhas, como a bela Michelle, 70 anos, natural de Durban, África do Sul, há 11 dias no caminho português da costa. Explica que não há nada de religioso no seu desígnio, vem pelo passeio, para observar as casas e as flores. Jennica, uma californiana de 34 anos que refaz as tranças à porta da igreja de Santa María de Herbón, também está a cumprir a etapa final do caminho português. Diz que veio para lidar com processos mentais antigos e que, apesar de ainda não ter terminado a sua jornada, já percebeu que vai voltar para casa mais leve.
“Bom caminho!”
O caminho português da costa é apenas um dos 10 percursos oficiais dos Caminhos de Santiago, declarado Património da Humanidade da Unesco, em 1993. São cerca de 145 km, a partir da vila pesqueira de A Guarda, conhecida pelas vistas panorâmicas do monte de Santa Tecla (ou Santa Tegra) e pelo castro pré-romano, património arqueológico que data do século IV A.C., mas também pelo marisco fresco (as zamburiñas são obrigatórias). Baiona, Oia e o Cabo Silleiro são alguns pontos de passagem, sempre com faróis no horizonte e a possibilidade de refrescar os pés nas praias bonitas das Rias Baixas, muitas delas distinguidas com bandeira azul.
Entre quilómetros e mergulhos chegamos a Vigo, onde nos cruzamos com outra peregrina a viajar a solo: Austéja, uma lituana na casa dos 30 anos, a caminhar desde Lisboa. Tinha feito o caminho francês há uns anos, gostou da experiência e voltou. Naquela tarde, era uma das primeiras na fila do albergue onde havia de pernoitar para, depois, regressar à estrada. A mochila e o cansaço encarregar-se-iam de mantê-la na rota, mas os desvios são sempre possíveis, não fosse Vigo a cidade mais povoada da Galiza, com 300 mil habitantes e uma atmosfera vibrante, cheia de possibilidades: das obrigatórias ostras da Pedra, a bares de vinhos, como o Malauva, sem esquecer a oferta cultural dos museus (como o Marco, o museu de arte contemporânea da cidade) ou as ilhas Ciés, ali tão perto.
Mais pequena e graciosa, Pontevedra é a paragem seguinte. Uma cidade de origem romana, rodeada por muralhas, pontes e História, mas com uma aura jovem (a média de idades da população ronda os 43 anos) e universitária, que faz vibrar as ruas empedradas que nos conduzem até ao coração que bate na Praza da Ferraría. É nas lojas do centro histórico que descobrimos o trabalho de outra mulher, Elena Ferro, da terceira geração de uma família de artesãos, responsável pela recuperação e transformação das socas tradicionais, usadas para o trabalho no campo, já distinguida com um prémio nacional de artesanato. Retomamos o caminho sempre de olhos postos nas setas pintadas a amarelo (por ser essa cor da tinta usada para pintar as estradas nos anos 1960) e nas conchas de vieira, símbolo do Caminho de Santiago, desenhadas por toda a parte.
“Mesmo que não saiba o caminho, é impossível perder-se”, assegura quem se cruza connosco. Mais de 60% dos peregrinos são estrangeiros, mas são muitos os locais disponíveis para ajudar, tal como são vários os pontos de paragem onde é possível descansar, tomar um refresco (a cerveja Estrella Galicia é das mais solicitadas) e carimbar a credencial do peregrino, uma espécie de passaporte que deve ser validado pelo menos duas vezes por dia nos últimos cem quilómetros, de forma a garantir uma espécie de oficialidade ao percurso. A declaração oficial, designada de Compostela, é atribuída já em Santiago, no Centro Internacional de Acolhimento ao Peregrino, onde todos os dias chegam centenas de pessoas. As primeiras dez podem usufruir de uma refeição no Hostal dos Reys Católicos, experienciando assim aquele que é outro dos lugares simbólicos da cidade: convertido num hotel de luxo em 1954, era o ponto de acolhimento dos peregrinos, que ali chegavam desgastados ou até feridos.
“Cantarte hei, Galicia, na lengua gallega...”
Padrón é a última paragem do caminho português, antes da chegada a Santiago de Compostela. Terra pacata, é o segundo local mais visitado logo depois da Catedral, muito graças à sua centralidade na tradição jacobeia: é ali que se celebra o culto à pedra (o pedrón onde se acredita ter sido amarrada a barca que transportava o corpo de Santiago). A capela de Santiaguiño do Monte, bem como o conjunto arqueológico que remonta à Idade do Ferro, são lugares de culto desde a Idade Média onde, ainda hoje, se encontram papéis caídos entre as pedras, onde os peregrinos escrevem os seus pedidos e dão as suas graças. É inegável que todo o Caminho tem uma forte dimensão religiosa, mas nem por isso deixa de fazer sentido para quem não pratica qualquer religião. Pelo contrário. Muitas das pessoas com quem nos fomos cruzando confessaram-se não católicas. Foi quase sempre o lado espiritual, do recolhimento e da partilha, do desafio e da superação, da reflexão e da contemplação, que as empurrou para a estrada.
Antes da partida de Padrón, vale a pena visitar a Casa-Museu de Rosalía de Castro, a escritora que viria a ser considerada a fundadora da literatura galega moderna. Rosalía é filha da relação proibida entre uma fidalga e um padre, uma menina de saúde frágil que cresceu criada pelas tias e que viria a casar com um jornalista, Manuel Murgía. Autora de obras poéticas como Cantares Gallegos (1863) e Follas Novas (1880), teve o arrojo de escrever em galego quando todos publicavam em castelhano, mergulhando fundo em temas como a identidade da Galiza, a condição da mulher na sociedade e o sentido da existência. Não há nada de superficial na escrita feminista e lírica de Rosalía e é também por isso que ela acaba por ser uma extensão natural daquela terra, fértil em camadas e significados, mas também plena de fragilidade e beleza. Os mesmos predicados que descobrimos no coração de Compostela.
Não é preciso ser-se particularmente sensível para ficar emocionado com o espetáculo que diariamente acontece na praça do Obradoiro, o ponto de chegada dos peregrinos que vêm de todo o mundo, com muitos quilómetros nas pernas e costas cansadas pelas mochilas adornadas com as conchas de vieira (os Correios de Espanha prestam esse serviço a quem não quiser transportar as mochilas durante o percurso). A manhã ainda vai a meio, mas a praça já está cheia. Uma mulher jovem aninha-se sobre ela própria, depois de se ter deixado cair no chão empedrado. As lágrimas correm-lhe pelo rosto. Um grupo de ciclistas entra pela lateral da praça, rostos mais emocionados do que cansados, corpos colados num abraço coletivo. Miúdos do liceu, ensaiam um sprint final envolto em gargalhadas. E a melodia da gaita de foles soa ininterruptamente, a embalar uma coreografia que é diária, mas sempre única.
Muitas daquelas pessoas reencontrar-se-ão nas horas seguintes, do lado de dentro das paredes frescas da catedral, durante um dos serviços religiosos. Sorrisos silenciosos que reconhecem o outro, com quem se cruzaram a dada altura do caminho. Com sorte, assistirão ao botafumeiro, o (dispendioso) ritual realizado com o imponente incensário de 53 kg que, balançado a partir da nave central, perfuma e purifica a atmosfera. Outros, terão a coragem de subir os 150 degraus que conduzem aos telhados da catedral. Lá em cima, mais do que a panorâmica a 360º, vê-se futuro. Porque, independentemente da rota, Santiago é sempre a perspetiva de caminho.
Onde dormir
Da mesma forma que existem vários itinerários até Santiago de Compostela, também existem diversas opções de alojamento para quem faz o Caminho. A rede pública de Albergues conta com 76 locais para pernoita, mas é preciso entrar no espírito. As tipologias variam, mas, por norma, o alojamento faz-se em quartos coletivos, com vários beliches e acesso a casas de banho partilhadas (mas também à cozinha e lavandaria). Os peregrinos podem ficar uma ou duas noites, por 10 euros/noite. No entanto, como as vagas são limitadas (e não é possível fazer reservas), convém fazer o check-in o mais cedo possível, sabendo de antemão que o check-out tem de ser feito até às 8h.
Se o conforto e a privacidade forem prorrogativos da viagem, existem boas alternativas ao longo do percurso. O Hotel Talasso Atlántico, em Oia, beneficia da proximidade com o mar de várias formas, a começar pela vista. Confortável e com uma boa cozinha, tem como principal atração o circuito de talassoterapia, perfeito para recuperar depois de um dia de caminhada. A partir de €129/noite em quarto duplo. Já em Santiago de Compostela, e a uma curta distância (a pé) da Catedral, o Palacio Del Carmen Autograph Collection está instalado num antigo convento do século XIX, contando com quartos charmosos envoltos em jardins cuidados e silenciosos. A partir de €150/quarto duplo.
Onde comer
Região de bom marisco, as Rias Baixas pedem tempo para saborear as suas especialidades mais frescas. No Trasmallo, em A Guarda, também há carne, mas é quase pecado não provar o que vem do mar, mesmo ali ao lado. Vieiras, lagosta e rodovalho grelhado são apenas algumas das muitas propostas. Já em Vigo, o El Olivo é o restaurante integrado no bonito Palacio de la Oliva. Sob a direção do chef Pepe Solla (distinguido com uma estrela Michelin), tira partido de produtos locais numa atmosfera sofisticada, mas que nunca é pretensiosa. Já no Indómito, em Santiago de Compostela, o chef Martín Vasquez faz jus ao nome do restaurante (indomável), apostando num ambiente cosmopolita e em pratos desafiadores, confecionados numa cozinha aberta e sem segredos.
A Horta do Obradoiro, também no centro de Santiago, é um pequeno oásis de prazer, tal a qualidade da cozinha comandada por dois amigos, Kike Piñero e Eloy Cancela, e a inexcedível simpatia do staff. Tudo servido num espaço acolhedor que se estende até um jardim nas traseiras, a fazer lembrar uma pequena aldeia onde apetece morar.
A Máxima viajou a convite do Turismo de Espanha / Turismo da Galiza.