O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre

Máxima

Atual

Clara Não. "As mulheres estão fartas que falem por elas"

Ilustradora, ativista e autora, Clara Não reflete sobre as feministas que a inspiram.

Clara Não
Clara Não Foto: DR
11 de novembro de 2025 às 18:30 Clara Não

Se olharmos para o nosso umbigo, o máximo que encontraremos é cotão, e o mundo não se move a cotão. O futuro quer-se com equidade, com as mesmas oportunidades para todas as pessoas, independentemente do seu contexto. Bem sei que essa proposição é tão idílica quanto utópica, mas se não almejarmos por um mundo em que o acesso a direitos humanos e oportunidades não seja movido por privilégios inerentes ao contexto em que alguém nasceu – mas antes pela construção do verdadeiro mérito –, nunca chegaremos a um lugar mais justo. A lente da sociedade beneficia uns em detrimento de outros, graças a fatores que em nada têm que ver com aptidão: o seu género (homem), orientação sexual (hétero), cor de pele (branca), nacionalidade, contexto geopolítico ou capacidades económicas. Assim, torna-se indispensável percebermos como foram construídos os alicerces desta sociedade desigual, para que a possamos reconstruir. 

Nesta busca pela desconstrução dos símbolos, tentando fazer sentido de um mundo socialmente tão descompensado, encontrei-me com pessoas que se tornaram ícones: mulheres feministas que me introduziram ao feminismo interseccional. Esta corrente dentro do movimento feminista – cujo nome foi cunhado pela filósofa Kimberlé Crenshaw – é a que correlaciona os diferentes sistemas de opressão e discriminação referidos acima: classe social, género, orientação sexual, cor de pele, etnia e deficiência. A primeira pessoa ícone com quem me cruzei foi a escritora Roxane Gay, na sua coletânea de ensaios intitulada Bad Feminist, publicada em 2014, em que a professora não só fala do racismo intrínseco na construção da cultura pop, como apresenta de forma muito clara a questão do privilégio. Além disso, apresenta o conceito de “feminista imperfeita”, não fôssemos nós humanas, logo, imperfeitas. (Aliás, atrevo-me a dizer que uma pessoa coerente em tudo seria, possivelmente, uma valente seca.)

Quando mergulhamos no mundo do feminismo, não é difícil perceber como este movimento começou com a luta da abolição da escravatura. Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito a trabalhar e a votar, já as negras trabalhavam há muito e sem o devido reconhecimento ou remuneração. Aliás, as pessoas negras nem sequer tinham o estatuto de cidadãs. Se, por um lado, eram vistas como biologicamente inferiores – uma mentira que convinha a quem as escravizava –, por outro, eram vistas como exóticas. Recordemos a existência dos desumanos “zoológicos humanos”, que incluíam pessoas que os ocidentais consideravam curiosidades étnicas. Recordemos Sarah Baartman, exibida pelas suas proporções corporais, como se lhe tirassem a humanidade. Djamila Ribeiro – na sua coletânea de artigos Quem tem Medo do Feminismo Negro?, publicada em 2018 – aborda este caso de racismo. 

De facto, desde muito cedo há registo do silenciamento das mulheres, especialmente das mulheres negras, cujo lugar de fala lhes é negado na maior parte dos contextos com poder de decisão. Erika Hilton é o exemplo vivo de que a representatividade de uma mulher negra e trans faz toda a diferença no caminho contracorrente em busca da igualdade. Esta tentativa de silenciamento das mulheres, num mundo em que o poder regente renova constantemente a subscrição ao racismo, apresenta registos que remontam à Grécia Antiga, como afirma Mary Beard, historiadora e autora do livro Mulheres e Poder, um manifesto. O que nos é apresentado comummente nas típicas aulas de História como o “Berço da Democracia” é, na verdade, o Berço da Falocracia Branca com Privilégio Económico. (Um chavão menos vendável para quem tem mais poder de compra.)

A luta pela igualdade está, também, nas palavras de Ruth Manus no seu Guia Prático Antimachismo – Para pessoas de todos os géneros, que, numa linguagem sucinta sem floreados académicos, mostra como todas as pessoas têm a ganhar com a igualdade de género e de oportunidades – a não ser aquelas que querem continuar a lucrar com o seu lugar privilegiado de poder. Neste contexto da atualidade insere-se Paula Cosme Pinto, cujas palavras certeiras desmascaram qualquer lobo macho vestido com um mero casaco de pelo feminista, tanto nas suas crónicas, como no apoio a projetos feministas de relevância, como foi com o caso do livro que documenta o Me Too – Um Segredo Muito Público: Assédio sexual em Portugal, de Sílvia Roque, Rita Santos, Maria João Faustino e Júlia Garraio.

Uma coisa é certa: as mulheres estão fartas de que falem por elas e que se tomem decisões que as afetam diretamente sem que elas estejam incluídas na discussão. Para termos um futuro com mais conhecimento e clarividência do mundo que nos rodeia, precisamos de pessoas que sejam ícones de representatividade, que façam ouvir todas as vozes e não somente aquelas que já tanto privilégio contêm no seu discurso. Que seja essa a nossa máxima.

Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2025.

Leia também
As Mais Lidas