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Celebridades

Lembrar Abril

As suas histórias revelam-nos os bastidores desconhecidos da revolução e impedem-nos de esquecer o que foi o 25 de abril. Quatro mulheres aceitaram o desafio de regressar ao passado e falaram à Máxima do dia que mudou Portugal.

http://rrr.streaming.claranet.pt/?account=Maxima&file=teaser_abril.mp4&type=download&service=apache&output=mp4
15 de maio de 2013 às 06:00 Máxima

Teresa Ferreira de Almeida Alves

Filha do almirante Ferreira de Almeida e mulher do então major Vítor Alves.

“Tinha de escolher entre o meu pai e o meu marido”

Na altura do 25 de abril o meu pai era Chefe de Estado-Maior da Armada e o meu marido um dos homens que fez a revolução. Já viu situação mais impossível para uma filha que, embora rebelde, adorava o pai mas que, simultaneamente, admirava muito o marido e achava uma evidência que Portugal tinha de mudar? Era uma situação terrível e que só podia ser vivida como foi: o Vítor, muito reservado, não me dava pormenores de nada, eu fingia que não percebia e não lhe pedia detalhes. Fazia de conta que acreditava, por exemplo, que os nossos amigos militares se reuniam todas as noites ali, à volta daquela mesa [aponta e ri], só para conversar e fingia que não percebia que estavam a preparar uma revolução. Aliás, nessa altura tínhamos uma empregada interna, que dormia no quarto ao lado da sala, e todas as manhãs me dizia: “Ó minha senhora, já viu o que se está a passar aqui em casa?” Eu respondia: “Sim, sim, o senhor major está a receber amigos.” E ela não se ficava: “Olhe que são uns amigos muito especiais.” E eu despachava-a: “Dorme, não penses nisso!”

Era politicamente mais atenta do que eu [risos], que só não era o figurino acabado da filha de oficial porque sempre reagi às coisas certinhas e à autoridade sem sentido. Mas quer que lhe conte como vivi a noite do 25 de Abril? Tinham cá estado alguns deles a jantar e, a certa altura, o Vítor disse que tinha de ir ouvir uma música na rádio, para escutar o sinal, e depois foram todos embora. O Vítor despediu-se de mim, disse-me que não esperasse por ele e não explicou mais nada. Eu ainda lhe perguntei: “E se correr mal, o que é que fazem? O que é que vão fazer aos ministros, a essa gente importante?” Ele riu-se e disse: “Atamo-los a umas cadeiras com umas cordinhas.” O meu pai atado a uma cadeira com cordinhas? Aquilo parecia-me tudo muito ingénuo. E lá me meti na cama, escondida debaixo dos cobertores, com uma angústia enorme. Pensei sempre mais no Vítor do que no meu pai. Eram todos tão jovens, e eu sabia como é que as coisas se passavam, que havia uma forte polícia de Estado, corriam um risco enorme.

Depois, de madrugada, não quis saber, peguei no telefone e liguei para as minhas melhores amigas a dizer-lhes para não mandarem os filhos à escola porque havia uma revolução.

O Vítor passou por casa no final do dia 26, para dizer que estava tudo bem, e eu só lhe perguntava pelo meu pai. O meu pai foi íntegro, não saiu do seu posto no Terreiro de Paço durante três dias. É claro que depois ficou 23 anos sem lhe falar, estava magoado, achava que o genro o devia ter avisado. Mas claro que não podia! E aceitou essa decisão do meu pai, sem rancor, também o admirava muito. Felizmente, depois, o meu pai e o meu marido reconciliaram-se e, nos dias antes de morrer, o meu pai disse-me: “Filha, podes crer que não tenho nada contra o teu marido!” E não tinha.

 

Maria Barroso

“Estava em Bona quando soube”

Quando o telefone tocou às 7 horas da manhã no hotel onde estávamos em Bona, acordei sobressaltada e atendi, preocupada que fosse alguma coisa com os meus filhos em Portugal. Nessa altura fazia a navette, ou seja, andava sempre entre Lisboa-Paris-Lisboa, porque era em Paris que o Mário estava exilado. A voz do outro lado da linha era a de uma secretária que trabalhava com o chanceler da Alemanhã, o Willy Brandt, e que me disse: “Olhe, houve uma revolução em Lisboa.” E eu disse: “Vou já acordar o meu marido e passar-lhe o telefone.”

Foi uma surpresa. Tínhamos a sensação de que estávamos na iminência de qualquer coisa, mas nunca pensámos que fosse tão cedo. O meu marido ficou eufórico e, claro, ligámos logo para os nossos filhos, e a Isabel disse: “Ó pai, não venha já, deixe ver em que é que isto dá!” Mas não conseguíamos esperar! Como o aeroporto da Portela estava fechado pelos militares, a única opção era o comboio e, apesar de não ser seguro, embarcámos logo no dia 27. Eu estava muito contente. Se isto era a libertação e ainda por cima sem violência, o que podia pedir mais?! A chegada a Lisboa foi extraordinária, estava tanta gente à espera, uma enorme alegria.

O meu primeiro contacto com a política começou com o meu pai, que foi deportado para os Açores, várias vezes preso, a última das quais na véspera de fazer 74 anos: foi “festejá-los” à PIDE com uma tortura do sono, como dizia, com ironia. Éramos sete filhos em casa, dez à mesa e conversávamos muito. Testemunhávamos aquilo que se passava, fomos alvo de perseguição, a minha própria saída do Teatro Nacional... Mas apesar do sofrimento que a ditadura tinha causado a tanta gente, e houve verdadeiros heróis, estávamos ansiosos por uma sociedade diferente daquela onde tínhamos vivido, e sem qualquer sentimento de vingança, que nos tornaria iguais a eles. Mas em tempos difíceis como os que agora atravessamos, não podemos correr o risco de esquecer o passado e tudo o que conquistámos.

Manuela Ramalho Eanes

“O 25 de novembro salvou a democracia”

Sempre soube que o meu marido estava implicado no Movimento do 25 de abril, tendo redigido o documento fundamental que criticava o Congresso dos Combatentes, em 1973. Era natural falarmos de todos estes acontecimentos porque, ao longo de 43 anos, sempre houve essa partilha no nosso casamento. Mas é claro que não sabia a data certa e na manhã do 25 de abril tive conhecimento da revolução pela rádio e pela televisão. O meu marido estava em comissão em Angola e foi imediatamente chamado a Lisboa. Fico indignada quando dizem que os militares fizeram o 25 de abril para não irem para a guerra ou qualquer razão corporativa porque o sonho do meu marido e homens superiores como o Melo Antunes era o de um Portugal livre, mais desenvolvido, com melhores condições de vida e mais justiça social.

Vivi com sofrimento o período do PREC: recebemos ameaças constantes, inclusivamente de rapto do nosso filho. Era preciso agir, e a nossa casa passou a ser “invadida” pelos amigos do meu marido, que ali reuniam. Não posso falar do 25 de abril sem falar do 25 de novembro, embora haja muita gente que não quer falar dessa data porque desejam ser os pais da Pátria, e como não estiveram envolvidos (e até se preparavam para sair do País), preferem referir apenas abril. Mas sem o 25 de novembro, Portugal não seria uma democracia.

Quando o meu marido saiu, por volta das 3 da manhã, uma hora depois de ter chegado, disposto a impedir o golpe de Estado em curso, não nos despedimos com dramatismo, como nunca o fazíamos, mas tive medo de não nos voltarmos a ver [comove-se]. Havia fortes probabilidades de tudo acabar numa guerra civil. Só sosseguei dois dias depois quando o vi na televisão, de camuflado e ar cansado, a receber o agradecimento do almirante Pinheiro de Azevedo (primeiro-ministro). E ele a dizer “Não me agradeça a mim, isto foi um trabalho de equipa”, com a sua imensa humildade e espírito de sacrifício. Depois veio a campanha para a Presidência da República e acompanhei-o sempre. Tomou posse em 1976, e desde aí muito aconteceu, mas estivemos sempre juntos, apoiando-nos mutuamente, em espírito de compreensão, muita ternura e afeto, diálogo, grande companheirismo e comunhão de vida. Tenho pelo meu marido uma profunda admiração pela sua dignidade, verticalidade, sensibilidade e dimensão ética da vida.

 

Joana Melo Antunes

“O fim da guerra deixou-lhe a cabeça mais livre para ser pai”

Fui um bebé inesperado, concebido na agitação dos meses a seguir ao 25 de abril (a minha mãe diz que a pílula ficou demasiado tempo ao sol no tablier do carro!), e que nasceu em pleno PREC, no dia 9 de março de 1975. Está a ver este sinal, na pálpebra direita? Os médicos dizem-me para o tirar, mas não consigo, porque sei que quando o meu pai me viu pela primeira vez, na véspera do 11 de março e prestes a partir para Argel, disse: “Ah, ela tem um sinal aqui, por isso, pronto, já a consigo reconhecer, agora ninguém a troca...” Sempre fui muito próxima dele [sorriso] e acredito que ao resolver a questão da guerra, a revolução lhe deixou a cabeça mais liberta para ser pai. A minha mãe conta como ele, naqueles anos difíceis, me ia buscar à cama, punha um disco e andava comigo ao colo de um lado para o outro, porque para pensar sempre precisou de fazer quilómetros... Lembro-me perfeitamente de estar a ouvir ópera e de os quadros tremerem com o balanço dos seus passos, o que também é uma lembrança de colo e de muita afetividade.

O meu pai sabia que o 25 de abril ia acontecer porque estava envolvido na organização, mas a minha mãe não fazia ideia. Estavam nos Açores quando a minha avó lhe entregou um telegrama que acabara de chegar a dizer: “A tia Aurora vai partir para os EUA no 25 de abril.” Achou estranhíssimo, mas passou o telegrama ao meu pai e não perguntou nada. Pouco depois, vieram para Lisboa. É evidente que cresci a perceber que o meu apelido provocava reações estranhas nas pessoas, muito boas ou muito más, dependia [risos]. A certa altura, a minha mãe decidiu que precisávamos de nos mudar para um apartamento porque era mais seguro (tinha havido uma bomba que curiosamente só partiu os vidros dos vizinhos) e fomos para um andar no Restelo, onde rapidamente percebemos que a maior parte dos vizinhos achava que ter Melos Antunes no prédio não era uma coisa boa. Recebemos então instruções para sermos muito bem-educados e, bem vistas as coisas, acho que exagerávamos nos bons-dias e boas-tardes no elevador [risos].

Fui para a Torre, uma escola que me marcou muito. Era pedagogicamente avançada e as ideias da revolução estavam integradas no nosso dia a dia da escola, mas a certa altura os meus pais ficaram preocupados porque nunca mais aprendia a ler. A diretora dizia que cada criança aprendia a seu ritmo, mas quando um dia, de repente, li os murais do MRPP, ficaram aliviadíssimos – a minha mãe conta que me colocou na bancada da cozinha a ler alto manifestos revolucionários, daqueles que na altura deixavam na caixa do correio.

Foi um tempo fascinante, em que a nossa casa estava sempre cheia de gente, dirigentes africanos, jornalistas, em que todos os dias se discutia política à mesa. O meu pai era um homem culto, de um grande pudor, muito discreto e que não tinha nada de saudosista. Depois, quando eu tinha 12 anos, foi para Paris como subdiretor da UNESCO, e comecei a passar todas as férias com ele, e foi um período muito feliz. Marcou-me, e estou certa de que determinou a forma como me envolvi na candidatura do Manuel Alegre à Presidência. Mas ainda estamos longe da maturidade democrática com que ele sonhou.

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