David Fonseca - As estações da aventura
O discurso é tão convicto quanto ponderado, tão entusiasmado quanto consciente. Apetece dizer que David Fonseca cresceu bem, ao longo daquilo a que ele próprio chama uma década de experiências.

Talvez valha a pena a memória para se perceber bem o alcance do presente e para se tornar possível dar às palavras de David Fonseca o alto valor que transmitem, ainda por cima ao serem aplicadas na prática. Há uma década, precisamente uma década, este moço de Leiria, bem apessoado, vivia no centro de um furacão chamado Silence 4, fenómeno de vendas e popularidade para uma geração ávida de identificação (cantando em inglês, eles não deixavam de ser portugueses, de Leiria), nem que fosse com os portadores daquilo a que alguém chamou, à época, um spleen precoce. Eram contidos, fortes, adeptos da essência contra a cultura do espalhafato, os Silence 4. David era cantor e líder natural, compositor e autor, guia. E há uma década, precisamente uma década, o quarteto caminhava ruidosamente para o meio milhão de discos vendidos.
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Muitos se perderam por menos. David Fonseca ainda não tinha 30 anos, descobria os amigos de ocasião e as legiões de fãs, a vertigem e os fogos de artifício, tão intensos quanto efémeros. Sabe bem reencontrá-lo tanto tempo e tantos discos depois, lúcido, estruturado e assertivo sempre que quer anular a margem de dúvida nas palavras que vai deixando. É direto, por exemplo, quando o questiono sobre a oportunidade de separar um disco em dois compassos – Seasons: Rising é lançado agora e Seasons: Falling verá a luz do dia ali bem perto do equinócio de outono, a 21 de setembro – numa época em que apenas um já é um desafio à lógica imposta pela crise: “Para mim, não faz sentido condicionar uma atividade artística à presença de uma crise que só vai dissipar-se daqui a sabe Deus quantos anos… Diz-se, inclusivamente, que as crises estimulam a criatividade. Ora, não se pode pôr a vida em pausa e ficar à espera de condições ideais que talvez nunca cheguem.” Depois particulariza, começando por salientar que a “linha de trabalho” também lhe permite esta aventura de, em dois andamentos, dar conta do que sente, do que pensa, do que lhe vai acontecendo: “No meu caso, as canções não têm – em princípio – a ver com uma situação social, não é esse o meu campo de ação primordial. As minhas canções vêm mais do universo do amor, do mundo dos sentimentos…”
David fala dos “fragmentos” de dia que o levaram a escrever e a compor, de momentos determinados que lhe servem de inspiração – é neste contexto que refere a ideia de um diário que se adequa a este primeiro andamento de Seasons, suscetível de ir buscar “alguma coisa” que aconteça com ele. Noutras circunstâncias, muitas seriam as hipóteses desses episódios não desaguarem em canções, uma vez que se impunha a lógica, a coesão, o controlo do autor sobre o que queria mostrar. Desta vez: “Não consigo decidir, como sempre fiz antes e sem prejuízo de alguma dose de espontaneidade, que esta ou aquela canção vão ficar de fora. Não há controlo sistemático da minha parte face ao caminho que as canções levam – tanto assim que nunca me passou pela cabeça fazer algo de semelhante ao What Life Is For [a canção de apresentação do álbum, uma cavalgada épica que se entranha sem ser preciso estranhar], onde há uma avalanche de sintetizadores e praticamente desaparecem as guitarras. É como se eu me tivesse retirado do papel de controlador, de ditador [risos], que desempenhei até agora.”
"Uma vida inquieta?
Não conheço nada mais aliciante."
Pergunto-lhe se este “descontrolo”, passe a expressão e fique a ideia, vai permitir, mesmo, aos que o seguem de perto a surpresa com a revelação de novas facetas. E, de seguida, qual é a sua expectativa quanto às reações a um desafio em que, em função do modus operandi, acabará por tornar-se muito mais um criador exposto. Mais uma vez, a resposta parece vir de outro quadro lógico: “Um dos grandes prazeres deste álbum tem sido a possibilidade de subir ainda mais o grau de experimentação. Há canções que até a mim me surpreendem… Por exemplo, há uma que se aproxima do universo dos blues, que não é exatamente a zona em que costumo mover-me. Há outras mais pesadas, em que a voz não tem a preponderância que é mais ou menos uma das minhas regras. Sei que era esta exploração que queria fazer agora, por mais inesperado que seja o desfecho.” Depois, a lição: “Quanto ao resto, nunca me passa sequer pela cabeça como alguém vai reagir ao que tenho para lhe mostrar. Nunca, mas nunca mesmo, escrevi, compus ou cantei a pensar fosse em quem quer que fosse, faço-o por necessidade, por prazer, por ter descoberto que ainda havia muito caminho a fazer nas cantigas. Quanto ao resto, não faço ideia. Será que este disco, depois de três anos de ausência minha, é o que alguém espera para 2012? Vai marcar mais ou menos a vida de alguém? Julgo que as pessoas passaram a depender de demasiada informação, e que isso se aplica fortemente à Música. Por isso, só posso ter esperança que as pessoas escolham algumas destas canções para ouvir. Estas em vez de outras: essa opção é talvez o passo mais importante. Depois, amarem-nos ou odiarem-nos já acaba por ser um efeito secundário, absolutamente dependente desse primeiro passo que é escolherem-nos…”
Paro aquela meia dúzia de segundos que vale pouco mais do que uma respiração a pensar na maturidade que nem sequer se esconde nas confissões de David Fonseca. Quero ouvi-lo sobre a década que viveu, desde o turbilhão geracional que atravessou com os Silence 4 até ao que parece ser uma vida quase a ritmo certo [a solo, David publicou quatro álbuns, Sing Me Something New, Our Hearts Will Beat As One, Dreams In Colour e Between Waves, sempre em regime ano sim-ano não, ou seja 2003-2005-2007-2009, até chegar a este Seasons], desde o deslumbramento à renovação de votos que as suas canções vão valendo: “Foi, de longe, o período mais interessante da minha vida com as canções. Se entendermos o trabalho de um músico como o desenho das paredes onde o som vai ser feito, os Silence 4 tinham o seu espaço muito bem desenhado, desde a presença constante de uma voz feminina a um certo simplismo nos processos e nos resultados. Depois disso, tudo mudou e estes têm sido anos valentes de experimentação. É o tempo em que a minha paleta de cores se torna infinita, em que senti a indispensável liberdade, até para fazer aquilo que ainda não fiz…” Sem parar: “Muito sinceramente, admiti que, por esta altura, estas minhas aventuras já seriam privadas. Ou seja, que poderia deixar de ser músico profissional e estaria a criar sem expor, pelo menos desta forma… Talvez a minha maior surpresa seja exatamente a descoberta, constante, contínua, de que este chamado projeto a solo me permite arriscar sem ter o molde de uma banda e sem me sentir responsável perante ninguém.”
Estamos no ponto de rebuçado da conversa e eu chego-lhe aquilo que me parece um elemento potencialmente combustível: a circunstância de ele, David, se aproximar dos 40 anos, uma outra idade. Sou recebido/repelido com gargalhadas: “Essa preocupação com a eterna juventude é uma coisa muito moderna e muito pequena… A mim, não me tira o sono, nem um bocadinho. Pode ser um problema, mas sei que mantive muitas ideias desde os 17, desde os 25, desde os 32 – aquilo que importa realmente é continuar a persegui-las com a máxima energia.” Fala-me das suas outras atividades, das ligadas à Imagem, à Fotografia e a projetos artísticos não divulgados até ao tempo que ocupa com pesquisas de vária ordem. Refere a importância destas alternativas que não são públicas, mas que ajudam a equilibrar o complexo de rotinas que também foi adquirindo com a passagem do tempo: “Julgo que, qualquer que seja a atividade em análise, não há nada tão chato como fazer sempre a mesma coisa. Na Música, e em Portugal, temos um universo circunscrito que começa na composição, passa pelo estúdio, acaba no palco. Eu costumo dizer, quando inicio o processo, que me estou a lançar para mais uma volta ao quarteirão… Tenho como boa a ideia de que o conforto só é um bom conceito para vender na publicidade. Porque vital, mesmo, é a inquietação. Sem ela é que eu seria profundamente infeliz, sem a dúvida, sem aquilo que me ajuda a levantar todos os dias com a firme disposição de tentar perceber melhor as pessoas e as coisas… Uma vida inquieta? Não conheço nada mais aliciante.”
Depois disto, meto a viola no saco. E sento-me a ouvir, uma e outra vez, as canções de David Fonseca, desde o seu grito do Ipiranga até este primeiro capítulo de Seasons, já de boa memória. A inquietação salta da guitarra para a voz. E desta para o silêncio. Os espetáculos de apresentação estão marcados para o início de abril. Mas, entretanto, ouçam como ele pensa, sem medo e com brilho.
Fotografia de Rui Aguiar . Realização de Filipe Carriço . Maquilhagem: Elody Fiuza . Cabelos: Pini para Griffehairstyle . Agradecimento Especial ao Club Purex ao Bairro Alto.
