Yves Saint Laurent. Recordar a história de um visionário da Moda

Dior viu no seu tímido aprendiz um sobredotado da Moda e a posterioridade deu-lhe razão. Há 60 anos Yves Saint Laurent conquistou sucesso imediato com a apresentação da sua primeira coleção em nome próprio. Paris celebra a efeméride com pompa e circunstância até Maio deste ano.

Foto: Getty Images
04 de fevereiro de 2022 às 07:00 Maria João Martins

Há 60 anos foi o imenso frisson: a 29 de janeiro de 1962, Yves Saint Laurent, então com 26 anos, apresentava em Paris a sua primeira coleção em nome próprio. Apesar da juventude, o costureiro não era um desconhecido para quem acompanhasse com atenção o mundo da Moda, o que justificava que, na assistência, estivessem figuras como a condessa de Paris, a princesa Ana de Inglaterra, a baronesa de Rothschild, a atriz Zizi Jeanmaire ou a enfante terrible das letras francesas da época, Françoise Sagan. Rendida ao trabalho apresentado, a redatora da Elle presente no evento escrevia: "Esperava-se a coleção de um jovem de amanhã, vimos a coleção de um mestre de hoje." 

O primeiro a detetar o talento emergente fora Christian Dior, que o nomeara seu herdeiro estético, o que levou o promissor aprendiz nascido na Argélia a conceber as coleções da marca após a morte súbita do fundador, em outubro de 1957. Discreto e introvertido, o jovem talvez não se sentisse muito confortável com os holofotes que muito depressa passaram a incidir sobre ele mas soube estar à altura do desafio, que era imenso. Nessa qualidade, desenhou o vestido de noiva de Farah Diba quando, em 1959, esta casou com Mohamed Reza Pahlavi e se tornou imperatriz da Pérsia, o reino em que os padrões do luxo eram dignos das mil e uma noites.

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Nas décadas seguintes, sempre apoiado pelo industrial Pierre Bergé (com quem chegou a viver durante alguns anos), Yves Saint Laurent criou um estilo muito próprio, em que uma certa androgenia acrescentava à mulher uma nota de sensualidade requintada e contemporânea. Para a história da Moda ficaram os smokings femininos e os casacos de safari que mulheres como Catherine Deneuve, Loulou de La Falaise, Sylvie Vartan ou Laetitia Casta transformaram em símbolos do chique parisiense. Acrescentou-lhe perfumes que rapidamente foram best-sellers como Rive Gauche, Opium ou Paris e transpôs em glória a fronteira, quase sempre difícil, entre a haute couture e o prêt-à-porter.  

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Vinte anos depois de abrir portas, YSL já era um clássico contemporâneo, a ponto do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque lhe ter elaborado a primeira exposição dedicada a um costureiro vivo e no ativo. Seguir-se-iam outros museus em Pequim, Paris, São Petersburgo, Sidney, Tóquio e Marselha. De triunfo em triunfo, continuaria até 2002, quando anunciou publicamente o fim da carreira. Consciente do legado que deixava, declarou: "Sinto-me orgulhoso pelo facto de tantas mulheres usarem fatos de calças, smokings e gabardines. Digo a mim próprio que criei um pouco do guarda-roupa das mulheres de hoje e que, dessa forma, contribuí para mudar a minha época… Quero agradecer a todas as mulheres que usaram as minhas roupas, às famosas e às que o não são, pela lealdade e alegria que me deram. Hoje decidi pôr um ponto final na minha carreira a que fui tão dedicado. Não vos esquecerei." Morreria seis anos depois, a 1 de junho de 2008.

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Sessenta anos depois de tão auspiciosa estreia, Paris decidiu recordar o criador de moda numa exposição que associa seis dos maiores e mais emblemáticos museus da cidade. Inaugurado a 29 de janeiro, o percurso "Yves Saint Laurent aux musées" pode ser visitado até 15 de maio e envolve, para além do pólo parisiense do museu do próprio criador (existe outro em Marraquexe, dada a relação profunda que tinha com Marrocos), o Louvre, o Centro Pompidou, o Musée d’Orsay e o Museu Picasso. Concebida como um arquipélago, o objetivo é estabelecer pontes entre o trabalho de YSL e a imensa pinacoteca, tão diversa nas épocas como nas geografias, que, ao longo de décadas, lhe foi servindo de inspiração.

No Centro Pompidou e no Museu de Arte Moderna de Paris, a ideia é mostrar YSL como um artista perfeitamente ancorado na arte contemporânea da sua época, como, aliás, acontece no Museu Picasso, onde as obras do pintor e do designer são postas em relação. Entre vestuário e pintura, postos frente a frente, estabelece-se um diálogo na abordagem de ritmos, cores geometrias, formas, luzes e sombras. Mais clássica é a abordagem do Louvre, que sublinha o fascínio de YSL pelos dourados da corte do Rei Sol, pelas artes decorativas e também pelo aparato à francesa, que é destacado, em todo o seu esplendor, na galeria de Apolo, concebida por Charles Le Brun para Luís XIV.  Ali bem perto, na outra margem do Sena, o Musée d’Orsay optou por recordar o fascínio de YSL pelo universo do escritor Marcel Proust (1871-1922), em particular pela sua monumental obra Em busca do Tempo Perdido, contemporânea de algumas das mais importantes pinturas do acervo do museu, em que se destacam alguns dos mestres do Impressionismo e Pós-impressionismo. Este trajecto não ficará completo, porém, sem uma demorada visita ao Musée Yves Saint Laurent Paris, onde estão reunidos e expostos milhares de documentos escritos ou iconográficos do arquivo pessoal e empresarial da empresa e a partir dos quais é possível compreender não apenas o processo criativo de YSL, como perceber como eram pensadas as coleções e como era concebida, e por quem, cada uma das peças que as compunham. De referir, no entanto, que no site do museu estão disponíveis para consulta inúmeros materiais de trabalho, incluindo os esquissos feitos para o guarda-roupa usado por Catherine Deneuve em filmes como Belle de Jour ou A Sereia do Mississipi.

Em entrevista ao The New York Times, a curadora desta exposição-roteiro, Mouna Mekouar, especialista em curadoria de Arte Contemporânea, lembrou que, apesar de terem vivido em mundos paralelos durante muito tempo, Arte e Moda já não podem ser tratados em compartimentos estanques: "Penso que em 2022 já não faz qualquer sentido interrogamo-nos sobre isso. Vivemos num mundo multi e transdisciplinar, feito de vasos de tal forma comunicantes que as velhas etiquetas já não fazem qualquer sentido. Não podemos compreender o trabalho de um criador de moda, qualquer que ele seja, sem considerar o mundo criativo em que ele vive. Do mesmo modo, não acredito que se possa tratar o trabalho dum artista contemporâneo sem saber o que está a acontecer na Moda." Esta rota é acompanhada por um catálogo, dirigido por Mouna Mekouar e Stephan Janson, co-editado pela Gallimard e pelo Museu Yves Saint Laurent Paris. Custa 39 euros. 

 

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