Quinto romance ou expressão literária de uma autora de variados modelos e múltiplos títulos publicados, o romance Os Íntimos acaba de receber o 19.º Prémio Máxima de Literatura. Já em 1998 o Prémio tinha sido para Inês Pedrosa, com o livro Nas Tuas Mãos, a confirmar o percurso, o estilo e a maturidade crescente da escritora a partir de 1992, quando o seu livro de estreia, A Instrução dos Amantes, marcou pontos positivos, entre críticos e leitores. “Eu acho que a escrita da sensibilidade é uma forma de descobrir mais prazer na vida, de abrir mais mundos na vida. Isso é que alargará os afectos e as pessoas sabem reconhecer esse tipo de escrita”, dizia-nos então a autora em entrevista de celebração, já como prenúncio do estilo que vem definindo. Voz singular e muito própria, nela a palavra escrita sugere a ondulação do mar para dizer as emoções humanas, os momentos de dor e de júbilo, o ódio, a compaixão. Jornalista de espaço cativo em coluna de opinião, interveniente em causas de actualidade, directora da Casa Fernando Pessoa, figura pública, Inês Pedrosa é mulher de acção e discurso directo, na defesa das suas posições. A preparar as comemorações pelos 18 anos da Casa, como chama à morada do Poeta, ela tem criado uma vasta corrente de público para o muito que ali acontece. O Prémio Máxima foi momento de felicidade para a escritora e motivo de um bom encontro marcado, em tarde quente de Lisboa.
Como recebeu a notícia do Prémio Máxima de Literatura?
Com grande alegria porque é um Prémio importante, que me foi atribuído por um júri que eu admiro. É o reconhecimento de um trabalho que no meu entender é o mais ousado e arriscado de todos os meus anteriores trabalhos. Eu duvidava que este livro fosse imediatamente entendido e aceite, e também duvidava de que seria o escolhido porque é a segunda vez que recebo o Prémio.
Os Íntimos, porquê o título?
Porque o tema central do livro é a invenção da intimidade nos seus diversos capítulos, não só a intimidade amorosa, mas a amizade que aconteceu no século XX e se modifica no século XXI, porque as pessoas vivem num mundo com muitos encontros. Nunca as escolhas foram tão difíceis como agora, nem nunca a possibilidade de confusão e atordoamento foi tão grande. O que, por outro lado, é aliciante, pela possibilidade que nos dá de escolhermos a nossa família particular. Isto é uma revolução tão grande como a epopeia espacial, é um mundo que se acaba e outro que se começa.
A capa do livro é uma gravata…
A ideia foi do Jorge Colombo, o artista que tem feito as minhas capas. Ele propôs a gravata, que é um óbvio símbolo fálico, porque o livro é protagonizado por homens, dado que me parece que se tem reflectido menos sobre as mudanças na masculinidade do que na feminilidade.
Como reagiram os homens a esta “invasão” do seu universo?
A primeira reacção é a pergunta: Como me atrevi? Pergunta curiosa porque não foi feita a Flaubert nem a Tolstoi nem ao António Lobo Antunes, que pôs uma mulher a falar na primeira pessoa do singular. No Nas Tuas Mãos, quando pus uma mulher de 80 anos a falar na primeira pessoa do singular, ninguém perguntou nada. Foi mais difícil pôr-me na cabeça de uma mulher de 80 anos do que na cabeça dos homens da minha geração, com os quais convivo diariamente. Não me parece que hoje uma alma masculina seja essencialmente diferente da feminina.
Como pode uma feminista tomar o universo dos homens como tema central do livro?
O feminismo é um sector do humanismo que importa a mulheres e a homens, e que só se concretizará quando for entendido também pelos homens. Interessa-me tratar de homens criados numa cultura do sul da Europa matriarcal e machista, perdidos na nova configuração política, social e íntima do mundo.
As mulheres também estão muito presentes n’Os Íntimos. Como não podia deixar de ser!
Sim, as mulheres estão lá, quer através das conversas deles quer através de textos escritos por elas para eles, ou do manuscrito de uma delas de que um dos homens se apropria e que resolve transformar. No fundo, como muitas vezes acontece, há uma ironia de inversão no facto de às mulheres pertencer o texto escrito e aos homens o comentário oral. Ou marginal. De resto, procurei que o livro demonstrasse algum humor, característica existencial muito contemporânea, que não pode resumir-se ao sarcasmo.
Ou à anedota.
Sim, como tantas vezes acontece. O humor é uma das qualidades mais antigas da literatura portuguesa e menos sublinhadas por nos definirmos apressadamente como povo da melancolia, da nostalgia, da saudade.
E o amor?
É um recado permanente dos meus livros, acredito que só o amor salva e que nunca me deixei abater pelos supostos ditames científicos que dizem que o amor dura dois anos… além de que a amizade é também uma forma de amor.
Sendo escritora, é autora de ficção. Sendo jornalista, é cronista. Como compõe o seu estilo literário em dois géneros tão distintos?
Há 11 anos escrevo todas as semanas uma crónica, sem falhar. Comecei nos jornais em 1983, devo muito à crónica como disciplina de escrita, como conhecimento do mundo e limpidez da linguagem. Mas a certa altura o jornalista também cria facilidades, que podem ser um engano. O meu trabalho como romancista combate a facilidade que tenho em escrever sem a preocupação de clareza que uma crónica implica. Como escritora, empenho-me para dizer algo de substancial sobre o amor e a morte, que são as duas grandes balizas da existência humana.
Tratando dessas questões, o escritor tem influência na sociedade?
Penso que sim.
Mais ou menos que o cronista?
Na sociedade portuguesa, os escritores são muito postos de lado. As televisões não os chamam para comentar a actualidade, mas chamam políticos, sempre os mesmos. Em Portugal há vários escritores com crónicas nos jornais, a maioria tem uma forma mais literária do que de intervenção social. Pessoalmente, penso que é pena que os escritores não se envolvam nos grandes debates políticos mundiais. Eles poderiam dar um contributo muito bom, porque a sua profissão é pensar, e como dizia o tão esquecido Vergílio Ferreira pensar é o acto mais violento que há. Porque obriga a tomar atitudes, obriga a agir de maneira nova e a ir contra o estabelecido.
Sabe-se que Agustina [Bessa-Luís] tem sido uma presença forte neste seu percurso. Porquê?
Durante muitos anos fugi de a conhecer pelo tanto que gostava dos livros dela. Tinha medo de me decepcionar se a entrevistasse, porque nos livros o que eu encontrava era a capacidade de exprimir as ideias de uma forma esteticamente única, com uma voz muito poderosa, muito afirmativa mas não autoritária, e aberta às possibilidades e capacidades do ser humano. Depois conheci a Agustina e fiquei rendida à figura humana dela, pela autenticidade, pelos olhos que faziam a radiografia da pessoa no primeiro instante e pelo sentido de solidariedade e carinho que encontrei nela. E pelo seu sentido de humor, divino.
E a sua experiência como directora da Casa Fernando Pessoa?
Tem sido muito entusiasmante, vai fazer quatro anos em Fevereiro. Comecei por encontrar uma equipa com grande sentido de serviço público, com quem tenho uma relação humana fantástica, o que permitiu que quase todos os dias haja um acontecimento e haja um público. Sinto-me muitas vezes feliz, o que acontece sempre que vejo a casa cheia de crianças das escolas dos bairros mais pobres, maravilhadas com a poesia.
Essa é uma função do escritor, a iniciação à beleza, à sensibilidade, à expressão das emoções?
Claro que sim, um escritor serve para nos tornarmos melhores, para termos mais força. Desde criança beneficiei desse contacto com os escritores, quando o meu avô materno me recitava a Lírica de Camões nos barcos do rio Nabão, em Tomar. E depois, quando comecei a ler os livros infantis da Sophia [de Melo Breyner].
Mãe de uma filha, mulher livre e independente, figura pública, escrevendo agora um novo romance, que momento da vida é este?
Sinto-me bem comigo mesma de um modo que não me lembro de alguma vez ter sentido. Sou mais feliz hoje do que era aos 20 ou 30 anos.
Será esse o elogio da mulher madura?
Se a maturidade é a libertação da culpa, sim. Já não me aflijo com os erros que cometo ou com os obstáculos que encontro, tudo é aprendizagem e em última análise, alegria.