Depois de Carmen Maura, Rossy de Palma, Victoria Abril e Penélope Cruz, eis chegada a hora de Elena Anaya. Em comum, têm todas uma experiência marcante de poderem ser consideradas musas de Pedro Almodóvar. Quis o destino que esta jovem de 35 anos, de olhos redondos e um de cada cor (verde e castanho), se cruzasse com o dele numa curta participação em Fala Com Ela, e que serviria de aperitivo para o papel ousado no inesperado A Pele Que Habito. Do seu potencial erótico já o realizador de La Mancha conhecia a prestação muito erótica e explícita em Lúcia e o Sexo, de Júlio Medem, explorada mais recentemente pelo mesmo realizador pelo prazer de uma outra mulher em Habitación en Roma.
No fundo, a preparação perfeita para um filme que supera largamente o sexo e a própria identidade sexual, onde Antonio Banderas assumirá o papel de um brilhante cirurgião plástico possuindo o seu próprio teatro de operações. Almodóvar procura novos rumos em que o amor incontrolável supera até a mutação transgénica. Por todos os motivos, um encontro que envolvia uma aura de descoberta. Foi precisamente com essa expectativa que chegámos ao topo tentador de um hotel elegante, em Cannes, para uma conversa reveladora com essa actriz intrigante. Só que ao vivo o mistério dissolveu-se na simpatia franca de uma rapariga a viver um dos momentos mais emocionantes da sua vida.
Depois da sua experiência em A Pele Que Habito já se sente com uma das musas do Pedro Almodóvar?
Cresci com o cinema do Pedro. Ele pertence à minha cultura espanhola. Abriu fronteiras, mesmo quando estávamos ainda fechados numa ditadura. Adoro os filmes dele. E esta é uma personagem muito complexa.
No entanto, não é a primeira vez que trabalha com ele. Teve ainda uma participação em Fala Com Ela…
Sim, mas era um papel bem mais modesto e que provocou em mim um enorme impacto. O Pedro até estava um pouco incomodado por me oferecer um papel tão modesto. Por isso, foi excelente poder voltar a trabalhar com ele e mostrar as minhas qualidades.
No seu entender, trabalhar com Almodóvar foi aquilo que esperava?
Falei com os meus colegas que trabalharam com ele durante muitos anos e aprendi com eles o seu método de trabalho. Mesmo assim, necessitava de adquirir a minha própria experiência. Ele pode ser duro, mas também nos adora. Ele é uma espécie de Deus e nós somos as peças dele. A verdade é que tratou-me sempre bem. E diverti-me imenso. Nunca pensei que fosse tão divertido.
Ainda que o filme não seja propriamente uma comédia. Muito pelo contrário...
Sim, claro. Mesmo assim. É até um filme... digamos com elementos de terror, apesar de ter também elementos de algum humor.
Como é que ele a seduziu para o papel? Ou não foi necessário?
Ele disse-me que eu era a actriz perfeita para este papel. Naturalmente, quis saber porquê. Ele respondeu que eu compreenderia quando lesse o guião. E é verdade, é algo que nos pertence [o rumor é que Elena é gay].
É então um segredo vosso?
Sabe, às vezes escolhemos um projecto, tal como escolhemos um livro para ler, mas por vezes é ele que nos escolhe. O Pedro perseguiu-me para este papel e eu sabia que teria de me esforçar para conseguir o nível que ele pretendia. Ainda que soubesse que podia conseguir.
É verdade que quando se prepara para um papel vai buscar inspiração a um animal? Qual foi o usado neste caso?
Isso nem sempre acontece, mas neste caso, foi um leopardo. Até por uma nota que o Pedro me deixou no guião descrevendo que Vera [a sua personagem] parecia um animal preso numa jaula, esperando paciente o seu momento para escapar. É esta a minha personagem.
É verdade que os seus fatos de pele foram desenhados por Jean-Paul Gaultier?
Sim, foi o Jean-Paul que desenhou os fatos de corpo inteiro, bem como as roupas que usam os empregados domésticos.
Sentiu-se confortável a usá-los?
Senti-me bem, eram como uma segunda pele. De certa forma um pouco como se não tivesse roupa.
Estranhou essa liberdade?
No início sim, mas era uma ferramenta fundamental para criar o meu papel. Por isso adaptei-me bem e acabei por ter pena quando deixei de usar esses fatos justos.
Antonio Banderas e Elena Anaya
Como sempre nos filmes do Pedro existe um segredo [que não é para revelar]. Como foi? Ele contou-lhe toda a história do filme ou revelou apenas alguma parte do guião?
Antes de me dar o guião, falou-me da história. E ajudou-me na audição. A história só se desenrola no final. Deu-me notas incríveis e detalhes muito importantes. De certa forma, esta personagem era uma projecção dele próprio. Um pouco como uma criatura dele. Para além disso, fiz o meu trabalho de casa e explorei as limitações da personagem.
Mesmo sem querer revelar muito, a ideia de troca de sexo está presente na história. Por isso atrevo-me a perguntar-lhe: Qual seria o seu programa se pudesse trocar de sexo durante um dia?
Uau... [risos] Acho que se fosse um homem faria tudo aquilo que faço agora enquanto ser humano. Mas se fosse homem por uns dias ou mesmo umas horas, a verdade é que não iria a correr contar à minha mãe o que me tinha acontecido... [risos] Seria horrível.
Sabia desde o início que ia contracenar com o Antonio Banderas?
Sim, sabia. Não é fantástico? [risos] Vinte anos depois encontram-se de novo. Gosto muito dele e tenho-lhe muito respeito. A oportunidade de contracenar com ele é algo que vai ficar para sempre no meu tesouro de memórias. Senti imensa falta dele depois da rodagem, porque ele é uma pessoa muito generosa.
Gostou de trabalhar com ele? É um verdadeiro gentleman, não é?
Sim. O Antonio é das pessoas mais incríveis que conheci. É muito atencioso e carinhoso. Deixa-nos à vontade, mesmo nas cenas mais complicadas. Adorei trabalhar com ele.
Calculo que seja um pouco diferente de Hugh Jackman, com quem contracenou em Van Helsing...
Por acaso não são assim tão diferentes. Devo dizer que o Hugh é igualmente um gentleman. Lembro-me na primeira cena que filmamos em Praga, às 6 da manhã com 12º negativos. Era praticamente impossível trabalhar. Mas ele ajudou-me bastante.
Falemos um pouco da Elena Anaya, que muita gente ainda não conhece. De onde é que vem? A sua família tem algum passado artístico?
Nasci em Palência a 11 de Julho de 1975. E tanto quanto julgo saber, sou a única actriz na família. Seja como for, o meu avô foi escultor durante algum tempo e a minha irmã Marina é artista plástica e o meu irmão Salud constrói bonecos. Por isso, já vê, sempre tenho algum gene artístico na família. [risos]
Como foram essas suas primeiras semanas em Madrid? Teve de partilhar um apartamento? Revele-nos um pouco esse período?
Sim, tive de partilhar um dormitório com duas francesas. Foi um pouco estranho. Mas os meus pais ajudavam-me pois ainda não trabalhava. Tínhamos um sofá-cama do Ikea que ocupava a sala quase toda. Foi um primeiro ano um pouco duro em Madrid, mas também divertido.
Olhando para trás, lembra-se de algum evento especial que a tivesse motivado a ser actriz?
Não. Acho que foi algo que me veio de dentro. Mesmo assim demorou algum tempo até que pudesse formar uma opinião segura e decidir ir para Madrid estudar arte dramática.
É verdade que se tornou entusiasta do ioga depois deste papel?
O ioga foi uma boa prenda que o Pedro me deu. Nunca tinha praticado até fazer este filme. Tive a sorte de ter aulas com uma professora muito conhecida em Madrid que me ajudou muito. Como pessoa e também como actriz, sobretudo na forma como o ioga acabava por salvar a minha personagem.
Continuo a praticar sempre que possível. Inicialmente, no guião existiam mais cenas com ioga. Gostaria de ter mais, mas como o filme tem de ser rápido tiveram de as cortar.
Fazer ioga ajudou-a?
Ajuda-me bastante. Acho que pode ajudar todas as pessoas a conhecer a sua própria força. Com o ioga consigo chamar a minha energia interior. É pena é que as aulas sejam às 8 da manhã, o que se torna um pouco complicado manter a assiduidade.
Há alguma coisa que receie quando está diante de uma câmara? A verdade é que parece ser uma actriz destemida...
Olhe que não, eu sou uma pessoa muito assustadiça [risos]. E sou bastante tímida. Mas é diferente estarmos diante da câmara. Um dos receios que tenho é que a câmara escute os meus pensamentos.
A sério? Por exemplo, o seu papel está muito ligado ao seu corpo e à nudez e ao erotismo. Parece-nos que se sente bastante confortável no seu corpo. O mesmo se passa com a nudez? Sente-se aí mais tímida?
Não, mas é algo que envolve um grande esforço. Estaria a mentir se dissesse o contrário. Não me importo de andar nua quando estou sozinha, mas em frente da câmara?... É muito difícil. Felizmente, o Pedro é muito rigoroso com o que quer mostrar. Nós, actores, sentimo-nos sempre muito expostos no nosso trabalho, porque se trata da nossa realidade, das nossas emoções. Mas se estamos sem roupa, essa exposição é muito maior.
Antonio Banderas, Elena Anaya e Pedro Almodóvar
Sente que vai ganhando confiança?
O Pedro sempre foi muito cuidadoso nesse aspecto. E respeitou-me sempre, de uma forma como ninguém o tinha feito antes. Todos os detalhes foram tratados com grande subtileza. Senti-me sempre muito confortável. Por isso, ele também ficou muito grato com a minha atitude. Tudo isso me dá imensa confiança.
Para além de Lúcia e o Sexo, em que a exposição física foi bem mais ousada, interpretou recentemente Habitación in Roma... Dois filmes do Julio Medem.
Esse filme mais recente que fiz com o Julio é uma história de amor complicada entre duas mulheres dentro de um quarto de hotel, em que fazem sexo. A história é fantástica, no entanto não gostei tanto deste filme porque não o tornámos grandioso. O guião era bom, mas não deixou de ser a experiência mais difícil que já tive.
Sentiu-se mais confortável agora com o tipo de exposição física no filme de Almodóvar?
Seguramente. A personagem era... uau. Muito arrepiante, mas apaixonou-me. E era simples de representar. O Bom, acho que pode ajudar alguém que não se sinta muito à vontade no seu corpo. Fico contente por a ciência poder ajudar na vida das pessoas.
E como encara a pressão nas actrizes em Hollywood para se manterem bonitas e jovens?
A pressão nas actrizes? Não é apenas nas actrizes. Já vi muitas meninas nas caixas do supermercado com sinais de cirurgias plásticas. Se elas se sentem bem, o que posso dizer? Pessoalmente, nunca fiz nenhuma operação no meu corpo. E espero não ter de o fazer. Acho que a minha expressão é aquilo que eu tenho para o resto da minha vida. Tenho 35 anos e estou muito contente com a minha idade e com as minhas rugas.
No filme tem uma pequena cena de luta. Como foi que se preparou? É verdade que aprendeu karaté quando era miúda?
Sim, tinha 15 anos e porque a minha avó me convenceu que era importante para mim. O mais interessante foi a experiência física, mas também a disciplina. É claro que existem sempre duplos, porque não querem que nada de grave nos possa acontecer. Nesse aspecto tive sempre pessoas óptimas comigo. Ensinam-nos a fazer os movimentos e nós fazemo-los.
Com a projecção dada por este filme, sente algum receio de que venha a ter os problemas comuns a muitas celebridades?
Eu trabalho neste meio há já 15 anos, ou talvez mais. Pode ser assustador para algumas pessoas, mas a verdade é que eu tenho uma vida muito normal. Vivo no centro de Madrid, desde sempre. Rodeada de pessoas comuns. Tenho a minha vida e respeito muito as outras pessoas e é um pouco o mesmo feedback que tenho tido dos outros.
Acha que este filme já alterou o tipo de propostas que provavelmente passará a ter? Já teve essa experiência?
Já notei um pouco. Até agora este filme já mudou a minha vida de uma forma pessoal mas também profissional. Vamos ver o que sucede agora. Quero apenas estar desperta para o que está a acontecer.
Tanto o Antonio Banderas como a Penélope Cruz tornaram-se grandes estrelas nos Estados Unidos, em grande parte pelo trabalho desenvolvido com o Pedro. Acha que lhe irá suceder o mesmo?
Eu nem tive tempo ainda de pensar em tudo o que me está a acontecer. Apenas me interessa o que se está a passar neste momento. Foi incrível fazer este filme. Aprendi muito. Quando ao futuro, sei que o trabalho com o Pedro abre muitas portas, mas não pensei nisso quando ele me ofereceu esta oportunidade. Nem tive tempo para isso.