Victoria Guerra: “Eu gostava que se desse mais atenção à cultura, porque realmente é a cultura que está a salvar-nos neste momento”
A Máxima falou com a atriz sobre a série 'Auga Seca', o thriller policial que estreia esta quarta-feira, 1 de abril, na HBO Portugal: dos companheiros de elenco galegos aos dias em isolamento por causa do novo coronavírus.

Filmada entre Lisboa e Vigo, a série luso-espanhola Auga Seca é protagonizada pela portuguesa Victoria Guerra, ao lado dos atores espanhóis Monti Castiñeiras e Sergio Pazos. O drama policial, que retrata o universo do tráfico de armas e as suas intrínsecas ligações ao mundo dos negócios, é uma coprodução da RTP e da TV Galicia e foi realizada em maio e junho do ano passado. "Nós tivemos a oportunidade de estrear a série em Cannes, num festival de televisão e foi vendida para a HBO", conta à Máxima a atriz.
Rodado em galego e em português, o thriller de seis episódios conta a história a partir da morte de Paulo Duarte, cujo corpo aparece no porto de Vigo. É a primeira série de produção portuguesa incorporada no catálogo da plataforma de streaming HBO Portugal e todos os episódios serão disponibilizados a partir desta quarta-feira, 1 de abril.

O elenco inclui também os atores portugueses Adriano Luz, Joana Santos, Igor Regala e João Arrais e os galegos Eva Fernández, Paloma Saavedra, Santi Romay, Cris Iglesias e Adrián Ríos.
Como chegou a esta produção?
Deram-me os episódios para ler e a partir do momento que os li tive logo a certeza que queria muito fazer este projeto. Primeiro por ter uma personagem que me interessava muito fazer e também por nunca ter trabalhado com grande parte dos atores e da equipa na Galiza. E pareceu-me um projeto bastante interessante e muito ambicioso, disse logo que sim.

O enredo retrata o universo do tráfico de armas. Como foi entrar nesta realidade?
Na verdade, o que me conquistou nesse projeto foi precisamente isso. Eu li o roteiro – eram seis episódios – e, quando uma pessoa pensa, o tráfico de armas é um universo bastante distante do nosso. E o que eu gostei foi precisamente isso, foi a forma como eles conseguiram juntar toda a história e o tráfico de armas de forma tão real, ou seja, partindo de um universo tão distante do nosso eles conseguiram torná-lo bastante real e bastante verossímil, deu-me ainda mais prazer e ainda mais vontade de fazer. A minha personagem não se cruza propriamente com este universo, ou seja, ela não tem nada a ver com o tráfico. Ela é irmã do rapaz que está envolvido com o tráfico de armas, mas ela não sabe disso e a série começa com a morte do irmão da Teresa, que é a minha personagem e ele vive em Vigo, trabalha numa empresa portuária muito grande, que é do meu padrinho. A Teresa decide mudar-se para Vigo para perceber o que aconteceu, porque ela não acredita que possa ser suicídio, não faz muito sentido. E, quando se muda para Vigo, começa a perceber que existem muito mais coisas por trás daquela morte, sem nunca desconfiar do tráfico de armas, ou seja, aquilo que está a acontecer – e o tráfico de armas é um assunto muito maior do que ela e do que a própria polícia imagina. Sobre o tráfico de armas, está muito bem defendido na série.
E como se preparou para a personagem?

O trabalho de pesquisa que eu fiz foi mais uma coisa interior, ou seja, ela é uma mulher muito livre, muito independente. Portanto a mudança dela para Vigo é muito fácil – era muito próxima do irmão – e é uma mulher muito determinada, que não tem medo. E por não saber propriamente o que se está a passar, ela acaba por fazer a sua própria investigação à parte da polícia, para tentar perceber o que se passou com o irmão, sem nunca perceber a gravidade da situação e a sua dimensão. Portanto, tudo o que ela faz é, de certa forma inconsciente – consciente no sentido que quer tentar fazer tudo para tentar descobrir o que aconteceu com o irmão, mas sem ter a noção da gravidade, portanto ela acaba por se meter com as pessoas erradas sem querer, sem perceber o que está a fazer.
Faria a mesma coisa que a sua personagem?
Claro, tenho a certeza que sim, acho que faria exatamente o mesmo com qualquer um dos meus irmãos. Parava o que estava a fazer para tentar descobrir o que aconteceu.
Quais foram os outros desafios deste papel?
O mais desafiante para ser franca foi ter de trabalhar numa língua que não era a minha. A série é uma coprodução, mas é falada maioritariamente em galego. E a minha personagem tem raízes galegas, a mãe é galega, portanto eu tinha que falar galego o melhor possível. E foi um trabalho técnico, nesse caso. Tive aulas e também tive aulas com um das atrizes que entra na série, a Eva Fernández, foi um trabalho incrível. Foi muito bom, eu fui muito bem recebida e isso foi uma das coisas que eu mais gostei dessa série, a forma como eu fui tão bem recebida por parte dos atores galegos e da equipa galega. Foi mesmo incrível. E eu tive um professor só para a língua, o Anxo foi meu professor de galego durante as primeiras semanas e depois durante as rodagens todas.
E o quão a personagem é parecida ou distinta de si?
O mais parecido, se calhar, será essa proximidade com a família e a sua independência e o facto dela não pensar duas vezes em fazer tudo o que pode para saber o que aconteceu com o irmão. Nesse sentido tem muitas parecenças comigo. A maior diferença eu diria que é este lado tão destemido dela, apesar de eu ser destemida, não sou tanto como ela, se calhar não faria o que ela faz, não faria a minha própria investigação como ela fez.
O que mais gostou na Teresa?
Ela tem as características todas que fazem com que seja uma pessoa verdadeiramente boa e que vê o lado bom de tudo. Eu gosto desse lado bom dela, dela acreditar que o irmão não tenha feito nada de mau e de confiar nas pessoas à volta dela e ao mesmo tempo não confiar na polícia e tentar, de alguma maneira, descobrir o que aconteceu. Este lado destemido, eu gostava de ter um bocadinho mais de Teresa em mim.
Há alguma cena que a tenha marcado especialmente?
Há um conjunto de cenas muito interessantes, porque é uma guerra familiar. Se calhar trabalhar no porto. Trabalhar no meio de homens, ter uma mulher a tentar, sem medo, descobrir o que se estava passar naquela empresa. Foram momentos de tensão para a personagem que foram muito divertidos, para mim, fazer. O final é incrível, é muito bom. Tem muito das séries nórdicas, dos policiais nórdicos, ou seja, não é uma série de grandes cenas de ação ou grandes explosões, não. É uma série de tensão entre personagens e segredos. A cada episódio descobrimos um segredo novo, descobre-se uma coisa nova, aquilo que parece ser e não é, daí também o nome Auga Seca [Água Seca], que é uma coisa que não existe. É um bocadinho essa a premissa da série, tudo o que parece não é real, isso é muito interessante para o espetador.
Quando as filmagens terminaram, mudou alguma coisa em si?
Sim, há sempre um antes e depois de todos os projetos. A partir do momento em que nos entregamos a 100% a uma personagem, vivemos com ela durante aquele tempo e ela acaba por fazer parte de nós e nós acabamos por fazer parte desta personagem. Esse lado forte da Teresa foi uma coisa que eu trouxe alguns meses comigo a seguir, mas aquilo que guardo mais é o carinho com que fiquei pelos atores e pela equipa. Nunca tinha trabalhado na Galiza e foi espetacular. Conheci grandes atores, grandes atrizes e aprendi muito com eles. E a equipa também era fantástica. A verdade é que eles fazem séries há muitos anos, portanto eles têm um know-how muito superior ao nosso, então para mim foi muito bom aprender com eles e trabalhar com eles. Fiquei com um carinho muito grande por aquelas pessoas.
O que gosta de fazer nos intervalos das gravações?
Dependendo dos dias e das cenas, se eram cenas muito difíceis – porque a personagem passa por muitas coisas nessa série, então há cenas muito fortes, muito emocionais e é preciso concentração. Aí normalmente eu ponho os meus phones, ando sempre com os meus phones a ouvir música para me distrair ou concentrar. Noutras alturas sim, estava com os atores e com a equipa e até era bom, porque eu tinha muito texto e eles ajudam com o texto, ficávamos a passar o texto entre cenas ou a conversar sobre o que gostaríamos de fazer naquela cena, como podíamos trabalhá-la e isso foi muito bom.
O seu ritual para entrar na personagem é então ouvir música? E já tem um playlist separada?
A música tem uma coisa muito boa, permite-nos viajar para universos diferentes, para energias diferentes, portanto normalmente eu tenho playlists, dependendo dos projetos que eu vou fazendo. Nesta série eu também tinha uma playlist, tanto com música clássica como mais pesada, enfim mais intensa.
Auga Seca é uma produção luso-espanhola, mas é considerada a primeira produção nacional incorporada no catálogo da HBO Portugal. As plataformas de streaming são uma oportunidade para os atores?
Sem sombra de dúvida. Neste caso não foi uma série realizada pela HBO, era porreiro se conseguíssemos colocar mais séries nestas plataformas e também ter a ajuda deles para as produzir. Eu acho que isso seria uma mais-valia para todos nós, sem dúvida alguma, porque o dinheiro que há para fazer séries em Portugal não é muito, daí procurar-se cada vez mais coproduções, porque é uma forma de conseguir mais financiamento. Com mais dinheiro melhora sempre o produto e esta troca de trabalhar com pessoas de outros países que trabalham em séries há tanto tempo, é uma mais-valia. Essa experiência é sempre boa e essas plataformas vieram abrir muitas portas – se existirem mais séries portuguesas nessas plataformas, os portugueses estariam mais habituados a ver produto português.
E a Victoria o que tem visto em streaming?
Assisti agora ao Kidding, com o Jim Carrey, vou ver a terceira temporada de Ozark, que eu gosto muito… Acho que as séries hoje em dia – como há cada vez menos dinheiro para o cinema e o cinema que é feito é cada vez mais virado para os blockbusters ou super-heróis –, eu acho que a televisão passou a ter um espaço muito mais interessante, ou seja, as séries passaram a ser, às vezes, mais interessantes que os grandes filmes que são feitos. Das séries novas eu gosto muito de The Crown, Succession, são duas séries das minhas favoritas, são séries mesmo muito boas. Nesta fase estou a aproveitar para ver séries.
No momento em que estamos, conseguimos ver o trabalho que foi feito através das plataformas de streaming...
Sim e é muito bom, porque neste momento há muito produto português que está a ser posto online, não só nessas, como no YouTube e em plataformas independentes. Há filmes gratuitos, isso é bom, porque há pouca gente a ver cinema português, mas de repente se pudesse ter acesso através da Internet. Era bom que estas plataformas pudessem passar mais coisas portuguesas, não só séries estrangeiras, mas séries e filmes portugueses.
Mas foram coisas que todos fizeram antes da epidemia do coronavírus, porque neste momento estão também a passar pela mesma situação e estão em casa.
Toda a gente está em casa, sim. Eu ia começar a rodar uma longa-metragem com o Edgar Pêra e, pronto, agora estamos à espera. A própria Auga Seca estava pensada para uma segunda temporada, estava tudo alinhado para isso. Neste momento o mundo parou e não sabemos o que vai acontecer.
E como se sente em relação a isso?
No caso da nossa profissão foi tudo parado, porque não é possível trabalhar em casa, nem é possível trabalhar sozinho. Na verdade, aproveito esta fase para melhorar, para trabalhar mais [nas minhas próximas personagens], para preparar melhor ainda o que tínhamos iniciado, mas é sempre complicado, porque não se sabe quando é que vai ser feito, se vai ser possível ser feito – e, atenção, eu tinha este filme agora e tinha já alinhado vários projetos a seguir. Fica tudo em stand by e não se sabe quando vai retomar e se vai retomar. No caso de teatro é ainda mais complicado, porque a maior parte dos teatros tem as agendas já um a dois anos programadas, portanto não pode haver um adiamento ou há um adiamento e não se sabe para quando... No caso da televisão, séries, cinema está tudo parado e não se sabe quando vai poder retomar e é muito complicado mesmo, mesmo. Não sei... É muito assustador. Pode ser que as pessoas vejam, nesta fase, já que há tanta cultura para ver em casa, depois, quando tudo voltar a normalidade – que não se sabe quando é –, as pessoas passem a ter mais vontade de ir ao cinema e mais vontade de ir ao teatro.
Que se passe a valorizar mais.
Eu gostava que sim, que se desse mais atenção à cultura, porque realmente é a cultura que está a salvar-nos neste momento. Para estarmos em casa e termos as plataformas e a televisão e os cinemas a disponibilizar filmes para vermos sem pagar online, tudo isso foi feito há muito tempo e foi feito com muito amor. Se pudéssemos no futuro dar mais atenção a isso, à cultura e a tudo aquilo que é feito era bom.
