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Máxima

Crónica Saltos na Calçada

Nascer branco sempre foi uma sorte neste mundo intolerante. A lição de inclusão do Harlem

Festa no Harlem celebra inclusão e diversidade com música e dança
Festa no Harlem celebra inclusão e diversidade com música e dança Foto: "Fame" (IMDB)
17 de setembro de 2025 às 17:17 Patrícia Barnabé

Foi no comboio a caminho de Newark, de regresso a Lisboa, que a minha amiga Pat se viu a dançar, no telefone de uma jovem afroamericana, sentada ao seu lado no comboio, e fazia um scroll despreocupado no Instagram. "Wait, I'm sorry", disse no seu jeito encantador, "but that's me dancing in that video!!" Gravado na block party do Harlem, para onde ela nos levara a todos, ela dança no seu vestido rosa choque de cetim, depois de a câmara me ter apanhado também a mim, em azul klein e calções. Really?  Risota geral. Duas miúdas brancas dançam felizes no coração do black Harlem, ao som de Lil'Kim, como se estivessem descalças em casa. Éramos onze portugueses, as minhas amigas resolveram mostrar Nova Iorque aos filhos adolescentes, e ficámos hospedados no Harlem. E fomos todos partilhar a magia do hip hop numa tarde em que bairro todo sai à rua para celebrar a vida. E como esta é melhor quando estamos acompanhados e partilhamos, quando somos comunidade.

Contactei a autora, pela graça, e ela, a @creativeewhitney, que tem 22,6 mil seguidores, adorou a coincidência e convidou-nos para a partilha do seu vídeo, entretanto viral: 214 mil gostos, visualizado por 6,1 milhões de pessoas. Enquanto escrevo esta crónica, continuam a cair comentários diários, e amigos novos dos Estados Unidos, só porque alguém calhou filmar duas brancas, aunties da geração X, como nos chamaram, naquele mar bonito de gente em comunhão. Nos comentários, e são já quase 8.300, entre os dois zangados do costume, e os três desconfiados de sempre, com a inevitável boca da gentrificação que tão bem compreendemos, foi comovente ver aquela comunidade gigante abraçar-nos. A diferença é sempre diferente, e gera piada, mas sentimo-nos em casa no Harlem. E, se dúvidas houvesse, é ler os piropos e a boa onda gerada nas redes sociais.

Esta foi a minha oitava vez na cidade das cidades, onde um dia pensei estudar e morar. A minha primeira vez foi em 1998, Nova Iorque era outra cidade, com uma alegria que o 11 de setembro quase levou. E nós éramos outros também, com pouco mais de 20 anos nuns anos 90 quando tudo parecia possível, a década da descoberta criativa depois da abundância hedonista dos 80. Mas ao contrário da inspiração que encontrei por toda a ilha de Manhattan (ainda Brooklyn era uma piada e Queens estava praticamente adormecido), o Harlem era agressivo. Para além de um belo coro de gospel numa igreja, a razão por que a maioria dos turistas sobe para lá do Central Park, só recebemos esgares desconfiados, bocas de que nos tínhamos enganado no caminho, e ameaças por trazer uma máquina fotográfica ao ombro. Foi uma desilusão, para quem crescera a ouvir a soul, o hip hop e o R'n'B ali nascidos, mas o que dizer quando se conhece a história da escravatura nos Estados Unidos? E do seu racismo endémico e incompreensível quando é um país construído por todas as nações.

Foi a primeira vez que me senti branca. E visito África desde 1980, tenho lá família, e um avô, um pai e um tio, que só deram, e dão, amor a Angola. Na minha família, a cor nunca foi tema, sabíamos que os brancos não eram incluídos, e haviam razões históricas para isso. Mas só daquela vez, no Harlem, percebi o tanto que ainda estava por fazer.

Conhecido como “o grande bairro negro do mundo”, com todo o seu poderoso simbolismo, o Harlem começou por ser um bairro holandês, em meados do século XVII, por lá viveram irlandeses, alemães, italianos e judeus. Foi rural durante dois séculos, e a maioria das casas, onde ficámos hospedados, construídas no fim do século XIX, com a sua traça vitoriana, ficaram algum tempo vazias. Outros bairros cresceram, ao mesmo tempo, e algumas foram largadas por europeus que regressaram a casa, deixando também empregos disponíveis, num tempo de indústria de guerra. O empreendedor negro, Phillip A. Payton, prometeu encher aquelas casas à volta da rua 130 com as famílias vindas do sul da cidade, do sul do país, onde fora abolida a escravatura, e das Caraíbas. Assim nasce o chamado black Harlem, que floresceu, cultural e artisticamente, nos anos 20, no chamado Harlem renaissance: quando o mundo percebeu as grandes qualidades artísticas, naturais, intelectuais e humanas, vindas de África. E, apesar dos constantes retrocessos da história, os movimentos de direitos humanos foram conquistando, com nomes como Malcom X, um lugar no mapa. E foi essa energia poderosa e bela que nos abraçou naquela tarde. Os habitantes do Harlem começaram a reescrever a história das suas raízes, assentes no desenvolvimento económico. Todos temos de aprender com o Harlem, the black capital of America.

Não é por acaso que o presidente Bill Clinton escolheu ter ali o seu escritório, e não é por gostar de tocar saxofone. O Harlem tem uma energia de vida de que o mundo precisa, do todos juntos somos mais, e mais com mais é mais, que vem do seu profundo sentido de comunidade. Todas as sociedades pobres se seguram com abraços, Portugal sabe bem disso. Ali, a comunidade dança junta na rua, como canta junta na igreja, como se organiza para dar de comer aos vizinhos mais pobres. E hoje mete conversa com os turistas brancos porque ser diferente é bom e curioso, ainda mais a falar uma língua que “parece igual à do Brasil”, mas com uma fonética mais difícil de apanhar. É lindo e é comovente; mais do que diversidade, é inclusão. A verdadeira. Numa noite, três de nós fomos beber um copo a um bar onde éramos os únicos europeus, para além do rapaz do bar que parecia um elemento dos Vampire Weekend, mas era um francês excêntrico à procura da essência da música no Harlem. Fomos abraçadas, partilhámos prosecco e cigarros de enrolar, até selfies, era a festa de uma designer de moda de Brooklyn que vinha ao Harlem comemorar. A grande pinta que a moda parece ter descoberto apenas ontem e que hoje o mundo todo copia.

Nascer branco sempre foi uma sorte neste mundo doido e intolerante. Somos os sortudos da História, do continente dos colonizadores, embora não tenhamos culpa dos erros dos nossos antepassados, herdámos a sua liberdade e uma certa vantagem civilizacional. Todos temos telemóveis da geração seguinte, já criámos foguetões e a Inteligência Artificial, a arte mais incrível e a cura das doenças mais maradas, e tudo e tudo, mas ainda somos racistas. Como é possível? Assistimos a guerras territoriais nacionalistas, a genocídios brutais e inéditos, e a uma manifestação que juntou 110 mil pessoas em Londres, em protesto nacionalista, um dos maiores da última década, contra as políticas de imigração. É um tema demasiado complexo para ser discutido em meia dúzia de linhas, quanto mais em conversas de café, mas é também uma tristeza profunda.

No Costume Institute, do Metropolitan Museum of Art, a exposição Superfine, dedicada aos black dandies, importantes para a causa como os Panteras Negras dos anos 60, na sua versão suave, mostra todas as subtilezas dos elegantes. A grande importância da sensibilidade e do bom senso, contra os berreiros e os extremismos de grandes verdades absolutas. Os black dandies são tudo o que admira na luta pelas grandes causas: o mundo munda-se por dentro. Se as tontas senhoras ricas vestiam os seus empregados com as fatiotas europeias para não “destoarem” nos passeios públicos, eles usaram-nos como disfarce de fuga, nos tempos da escravatura negra, e como forma de empoderamento, depois desta ser abolida. (Ainda vimos uns tantos dandies na block party, orgulhosos nos seus fatos cor de bombom e fedoras impecáveis, sorriso em par. Da mesma forma como usaram a religião dos brancos, a mesma que os condenou, para a liberdade e a comunhão e deram à igreja uma alegria que esta desconhecia. Numa igreja metodista no Harlem o padre entrou a cantar, com banda e tudo, parecia um ator de Hollywood, charmosíssimo nas suas tranças grisalhas.

Se esta é a cidade que todos recebe, com ruas que são números, tão fácil de navegar, em Nova Iorque as pessoas perguntam-te: qual é o teu bairro? Todos vieram de algum lado. Nova Iorque bem podia ser uma lição de diversidade para o mundo globalizado em que vivemos, e o Harlem ser um exemplo para o mundo. Nele ente-se a calma de África, o leve-leve e o sorriso fácil, as pessoas suaves e acolhedoras, cheias de ritmo e de graça - eu acho que o cool nasceu ali tanto quanto nasceu nos concertos rock de Londres nos anos 60 e 70. É uma ideia que tenho desde os 17 anos. No Harlem assisti a uma cultura sem julgamento, sem preconceito. “We are all human, one only race” diziam os rapazes que estavam a dar espectáculo a troco de umas moedas junto ao ferry para Long Island, é uma das frases que gritam aos turistas que vão e voltam só para ver a estátua da liberdade. E diz tudo.

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Crónica Saltos na Calçada
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