Sem Tabus
Observámos e conversámos com as protagonistas de uma realidade que não será assim tão marginal. No final, pedimos à investigadora Alexandra Oliveira, autora de uma tese de doutoramento sobre a prostituição de rua, que nos ajudasse a entender melhor este mundo.

É possível fazer um perfil da mulher que se prostitui?
Não. Há uma diversidade de experiências de vida, de formas de viver a sexualidade, que não as reduz a um só tipo, a uma só experiência. É impossível metê-las a todas numa caixinha, a caixinha das vítimas exploradas e degradadas.
Sabemos pouco desse mundo?
A nossa visão é muito baseada em preconceitos. Temos a ideia estereotipada: prostituta de rua, degradada, toxicodependente, numa esquina de minissaia, mas isto é só uma pequena parte da realidade.
A nossa reportagem foi, sobretudo, sobre a prostituição de rua. Tem ideia de quantas mulheres trabalham na rua?
Alguns estudos estimam que será uma percentagem pequena, cerca de 10 a 20 por cento das pessoas que se prostituem.
Na reportagem, uma mulher assegurava que na rua ganhava melhor do que nos apartamentos e era mais livre. Corresponde ao que descobriu?
Muitas vezes são as mulheres que optam pela rua, precisamente por acharem que têm mais controlo sobre as suas condições de trabalho, os horários e os honorários.
E a ideia que temos do chulo explorador corresponde à realidade?
Não, é negada pela realidade, o que não quer dizer que não existam alguns casos. Mas serão casos minoritários.
No seu livro diz que os companheiros as vão buscar e levar. Eles têm trabalho, também ganham?
Alguns têm empregos formais, profissões perfeitamente normativas, embora por regra pouco qualificadas, outros têm profissões informais e muitas vezes ligadas ao mercado sexual, muitas vezes são motoristas de carrinhas que trabalham para os bares de alterne, põem música ou são porteiros... E depois há os que vivem dependentes das mulheres que fazem o trabalho sexual.
Como é que elas sentem esta relação?
Sentem da mesma forma que as restantes mulheres não prostitutas. Elas sabem que a sociedade os vê como chulos mas não os reconhecem na imagem do homem explorador, violento, que está com elas apenas com objetivos económicos. E eu também não vi isso. Não é por serem prostitutas que elas não têm direito ao amor.
Na reportagem quase todas são mães...
Há uma imagem associada à prostituição que anula quase essa possibilidade. A sociedade divide as mulheres em mães/esposas e as outras, as prostitutas. E de facto muitas delas são mães e não é pelo facto de serem prostitutas que são más mães... Há de tudo!
Indicam, muitas vezes, os filhos como a razão para se manterem nesta vida.
É verdade que são os filhos que em muitas destas histórias aparecem como o motivo para explicar porque entraram nesta profissão. Queriam dar-lhes uma vida que elas próprias não tiveram.
Mas quando imaginam o futuro das filhas, desejam essa vida para elas?
Não. Sabem que é uma atividade muito estigmatizada, com violência, sabem que são rejeitadas pela sociedade e não querem isso para as filhas.
Quem são os clientes?
A procura é de todo o tipo de homens. São homens de todos os níveis socioeconómicos, todos os estatutos maritais, todas as idades.
Porque é que ainda se paga para ter sexo?
As teorias que defendem que estes homens têm algum tipo de problema psicológico têm sido rejeitadas pelas investigações. Uma das explicações para ainda haver tanta procura de sexo comercial, e que faz sentido, tem a ver com a forma como a masculinidade é construída e que faz com que, na sociedade atual, o recurso ao sexo pago ainda seja visto como uma expressão normal dessa sexualidade.
O que é que procuram?
Querem ter relações sexuais com muitas mulheres diferentes, práticas sexuais que não conseguem com as suas companheiras – ainda há desencontros entre alguns homens e mulheres, por exemplo, o sexo oral, ou sexo anal. Muitas vezes os homens querem reproduzir atividades que veem nos filmes pornográficos e que não são possíveis com a sua companheira. Há também os homens que não conseguem uma relação sexual ou porque são tímidos ou porque têm determinados handicaps.
Encontrámos mulheres que escondem a prostituição dos maridos. É comum?
Na rua, geralmente os companheiros sabem... Nos apartamentos, muitas têm uma vida dupla. Os maridos não fazem ideia que elas são prostitutas. Têm um emprego de fachada, saem de casa num determinado horário, têm várias estratégias para o esconder. Vivem num medo constante de serem descobertas.
Há clientes que não querem usar um preservativo, que até pagam mais para não o usar...
Acontece e diz muito sobre a educação da população em geral em relação às doenças, como a Sida e outras. Diz muito, também, dos riscos que estas mulheres correm porque mesmo usando o preservativo ele pode romper-se.
Nalguns testemunhos, estas mulheres falam da falta de direitos...
Todas se queixam de não poderem um dia vir a ter uma reforma porque não “fazem descontos”, e isso é uma desvantagem acrescida para uma “profissão” que não pode durar a vida toda... Falam de pagar impostos, mas sempre como qualquer coisa que teria uma contrapartida.
Todas as que ouvimos referiram uma enorme dificuldade em começar... Deixam de sentir essa tensão emocional ou aprendem a viver com ela?
Talvez uma mistura das duas. Muitas têm o discurso de “para mim isto é um trabalho como outro qualquer, isto é igual a trabalhar num restaurante...” Talvez para algumas seja, mas para outras será um discurso para se sentirem melhor com elas próprias... Continuam a pensar na prostituição como a restante sociedade. A palavra “puta” é o maior insulto que se pode dizer a uma mulher, e se nós somos socializadas assim, elas também, então arranjam estratégias para lidar com isso...
O jornalista encontrou na rua mulheres de várias nacionalidades. Há números?
As únicas estimativas que temos a esse nível vêm dos projetos de intervenção e os números que dão são as percentagens de pessoas estrangeiras entre os seus utentes, mas já são uma indicação. Se dissermos que cerca de metade é imigrante e metade é portuguesa não estará muito longe da realidade.
É mentira que uma vez que se entra na prostituição não se sai...
É mais um estereótipo. Há mulheres que saem, as imigrantes por exemplo trabalham uns anos e depois voltam aos seus países. Mas, por regra, é mais fácil entrar que sair porque depois atingem um nível de vida difícil de manter com o tipo de empregos a que estas mulheres podem ambicionar.
Defende que a legalização da prostituição mudava alguma coisa na vida destas mulheres?
Julgo que devem ter os mesmos direitos que outros profissionais porque a prostituição é um trabalho que permite ganhar dinheiro. É por isso que lá estão, e não por vício ou por luxúria, como se diz tantas vezes. Mas esta não é uma profissão como as outras: tem perigos e um estigma muito grande.
Acha que a legalização mudava esse estigma?
Não no imediato, sobretudo em relação às mulheres que se prostituem na rua, mas permitiria que tivessem outras condições de trabalho. Quem diz que a legalização não as favorecia esquece-se de que é o não reconhecimento da atividade que cria as condições para a exploração e o abuso.
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Acredita que são os “empresários” destas profissões a preferir a clandestinidade?
Muitas vezes acusa-se quem defende a legalização de estar a defender os negócios ligados ao sexo, mas são estes patrões que preferem a clandestinidade. Julgo que são eles que não têm qualquer interesse em que seja um trabalho regulamentado, em que sejam obrigados a prestar contas, a dar condições de trabalho adequadas, a responder em tribunal se forem elas vítimas de abuso.
Conta que as prostitutas de rua são vítimas de violência – e não é a dos clientes...
A violência contra elas é uma constante, todo o tipo de violência, física, verbal, sexual. Quando estava a fazer o estudo, passaram dois rapazes numa mota e atiraram sobre nós óleo de motor queimado. Não teve consequências graves, mas podia ter tido. E todos os dias há qualquer coisa deste género.
O que faz rapazes, ainda por cima novos, reagirem assim? Se fossem mulheres ciumentas...
Uma reação ao que se desvia da norma.
Mas esse ódio é quase como se tivessem medo de se tornar o outro?
Sim, é essa rejeição do desconhecido, do “outro” desviante... quase como um evitamento.
A tese de doutoramento O mundo da prostituição de rua: trajectórias, discursos e práticas foi defendida por Alexandra Oliveira na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e resultou de uma experiência de quatro anos de imersão prolongada no terreno. E que foi transformada no livro Andar na Vida, publicado pela Almedina.
"Dentro de Portas" Por Sónia Gomes Costa
Fomos descobrir uma mulher que começou por trabalhar em casas de prostituição e que, a dada altura, assumiu a profissão por sua conta e risco. Sob o pseudónimo de Joana Well, revela-nos os meandros de um submundo tão escondido como ela própria.
“Brinquedo de estranhos, marioneta de sonhos, mas eu ainda vos guardo dentro dos meus olhos.” A frase salta à vista ao entrar no blogue de Miss Joana Well. Ali escreve a sua história de prostituição, dividida por capítulos que percorrem verões, outonos e invernos (nunca primaveras) e descrita em versos poéticos. Nesta montra online, Joana Well também promove o site de acompanhantes e massagistas – Castelo de Lux –, onde anuncia o seu perfil: Nacionalidade - Portuguesa; Idade - 36; Altura - 1,60; Peso - 55; Busto - 40; Cabelo - Louro; Olhos - Mel; Pés - 37; Convívio - Massagem Relaxante, Revigorante, Sensorial; Horário - das 10h às 21h.
Do virtual ao real
Depois de um primeiro contacto virtual, Miss Joana Well recebeu-me no seu local de trabalho, o apartamento na Quinta do Lambert que divide com mais três colegas desde março. Toco à campainha duas vezes, como ficou combinado, e abre-me a porta uma mulher comum, mas nada vulgar. Veste calças de ganga e uma túnica. Encaminha-me para uma divisão da casa com um sorriso discreto nos lábios. Sigo-lhe os passos até uma sala de estar perfeitamente normal: móvel de televisão, velas, mesa, cadeiras, um sofá. A única coisa que destoa talvez sejam os dois refletores e sombrinhas a indicar que aquele é também um cenário de sessões fotográficas.
Aceito a água que oferece e sento-me a seu lado para começar a conversa do como, quando, onde e porquê começou ela a prostituir-se. Conta que foi às escuras, no verão de 1997, altura em que procurava um trabalho durante as férias da faculdade. Confessa que não sabia ao que ia mas, quando lá entrou, depressa se apercebeu de que tinha entrado numa casa em que mulheres seminuas desfilavam para homens que as escolhiam a dedo, para a seguir irem para um dos quartos. Foi assim que Joana entrou no mundo da prostituição. Recorda que era ingénua mas nada burra: nessa primeira entrevista manteve-se em posição de observadora. Dispôs-se a responder ao inquérito da proprietária da casa, que a aliciou com grandes montantes de dinheiro que ali poderia vir a ganhar. Joana admite que só pensou depois. Quando saiu, fez contas à vida e deu por si a considerar que “assim, podia ganhar dinheiro que não acabava mais”, lembra.
Identidade escondida
Entrou na vida pelo dinheiro e começou a trabalhar por conta de outros em casas de meninas. Ao contar a sua história, Joana mede o impacto das palavras. Tem medo de ser reconhecida? Admite que silenciar a sua verdadeira identidade tem um peso vital. Joana (que afinal não se chama Joana) guarda a pessoa que dá corpo à Miss Joana Well como um tesouro escondido. No meio virtual e presencialmente, com os seus clientes, dá-se a conhecer através do nick Miss Joana Well que, esclarece, escolheu inspirada na personagem Felicity Shagwell, dos filmes da saga de Austin Powers. Apesar de não ser o seu nome de batismo, diz que este nome é também uma parte dela e que acabou por “se lhe colar como uma segunda pele”. Explica que se desdobra em dois nomes e duas vidas, em contextos distintos, porque faz questão de separar a vida privada da profissional. Diz omitir a sua identidade de prostituta dos familiares e amigos, não por si, mas para protegê-los a eles. Prefere esconder essa outra vida, a da segunda pele, a de prostituta, porque é escusado “ferir suscetibilidades”. Argumenta que não quer “fazer sofrer quem ama… porque poderiam pensar que estou a sofrer horrores e não estou”.
Quando amor e negócios se misturam
É então que o amor vem à baila. Pergunto-lhe se já se apaixonou por algum cliente. Ela confirma que sim, que já amou quem lhe pagava e que, quando isso aconteceu, deixou de se prostituir, optando por viver a relação amorosa. Mas acrescenta que o ideal mesmo é não ter ninguém quando se está nesta profissão porque “torna-se mais difícil lidar com as nossas emoções e com as da outra pessoa”. Também já lhe aconteceu ter clientes que se apaixonaram por ela, sem que lhes tenha correspondido. Quando assim é, também escolhe terminar a relação. Diz que não é capaz de receber dinheiro para estar com um homem que quer mais do que sexo. “Seria como se estivesse a explorá-lo”, e isso recusa-se a fazer, afirma, perentória.
Se durante muitos anos foi alvo de escolha, desde que optou por trabalhar como independente é Joana quem escolhe a quem vende o seu serviço de massagem aliada à prática sexual. “Este luxo”, segundo diz, é um privilégio adquirido por quem já atingiu um patamar que permite gerir uma lista de clientes fixos e regulares que angariou. Na maioria das vezes, são homens que conhece e nos quais deposita a máxima confiança, ao ponto de lhe deixarem o dinheiro em cima da mesa de cabeceira ou num envelope, sem que sinta a necessidade de conferir. Joana observa que é mais seguro e rentável estar com quem já tem afinidade, além de que, confessa, “a rotina e a habituação tornam tudo mais fácil… e menos penoso”. Contudo admite que, de vez em quando, precisa de abrir a porta para servir clientes novos, “até porque o poder de compra diminuiu e os preços dos serviços também”. Nesses casos, garante ser cautelosa na seleção, sobretudo por razões de segurança.
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Serviço interrompido
Quis perceber até que ponto esta sua opção de vida interfere com o seu equilíbrio. Joana deixa falar a voz da experiência e admite que, apesar da sorte que tem tido, “é preciso estofo para aguentar porque exige muito a nível físico e emocional… e pode ser muito duro”. Garante que nunca precisou de apoio psicológico, pois quando se sente menos bem, desgastada e saturada, afasta-se da prostituição “para chegar mais perto de si própria”. Ao longo destes anos, já se retirou várias vezes na tentativa de “se equilibrar e renovar forças”, e é por isso que investe “na introspeção e noutras coisas”, como escrever e estudar para terminar o curso superior na área das ciências sociais e humanas que frequenta há uns anos. Revela que, nos intervalos da prostituição, já trabalhou em call centers, agências de viagens e centros de estética. Feitas as contas, Joana concluiu ter estado mais tempo fora do que dentro da atividade e admite terem sido as necessidades financeiras que a obrigaram a voltar à prostituição. “O dinheiro sempre foi, e ainda é, a minha motivação”, relembra, acrescentando que exerce este como qualquer outro trabalho, leia-se, de forma prática e responsável.
E haverá espaço para o próprio prazer no que faz? Joana garante que, na maioria das vezes, o seu corpo sente gozo, mesmo que a cabeça lhe diga que há algo que a desagrada. Quando lhe pergunto se alguma vez se recusou a prestar o serviço e o que a faz negar-se, responde que já o fez quando trabalhava numa das casas. Recorda que se tratava de um cliente com o qual já tinha tido uma má experiência, primeiro porque se recusou a tomar banho (cheirava mal, diz), depois porque tentou ter relações sem preservativo. Lembra-se de gritar pela rececionista da casa para que a acudisse, mas sem sorte. Custou-lhe, mas deixou-se ficar até que ele voltou para a escolher a ela. Aí, Joana recusou-o e a patroa convidou-a a sair. “Foi uma situação penosa mas fui-me embora e acabei por ultrapassar”, explica, deixando claro que a falta de higiene do cliente é um critério de recusa, tal como gestos violentos, antipatia ou falta de respeito. “Tanto há casas que permitem isso como outras que não… e há pessoas decentes em todo o lado… a prostituição não é exceção”, repara.
O que poderia ser feito para pôr fim a situações como a que acabara de contar? Joana acredita que a resposta está na legalização da atividade. Só assim se garantia a fiscalização das casas em que existem maus tratos, prostituição de menores, tráfico de mulheres, droga... Além do mais, considera que os cofres do Estado beneficiariam se todos os profissionais do sexo começassem a fazer descontos. Empolgada, observa que é fundamental uma lei que regulamente os direitos e obrigações, e proteja o anonimato e a privacidade dos profissionais do sexo, dependentes ou independentes. “Ou nos ajudam a estar no caminho que escolhemos, com dignidade, ou então de pouco ou nada nos servem associações como O Ninho”, diz, reconhecendo contudo que esta associação pode ser eficaz na ajuda a mulheres com realidades diferentes da sua. Porque ela, Joana, recusa o papel de “coitadinha no mau caminho” e assume pertencer à fação das mulheres que optaram por trabalhar como prostitutas com o objetivo de ganhar dinheiro.
Desmanchar ilusões
Desde que escreve no blogue e nos fóruns, Joana é muitas vezes contactada por mulheres que procuram conselhos sobre os meandros da prostituição. A verdade é que, a dada altura, tomou consciência de que estaria a passar apenas a parte mais cor-de-rosa da sua história. Sentiu-se culpada, com a obrigação moral de repor a verdade nua e crua da sua experiência, sem floreados poéticos. Por isso escreveu um alerta a quem quer entrar ou a quem já entrou na vida, numa carta aberta que acabou por divulgar também no blogue e nos fóruns: “Tens mesmo que...? Tentaste os caminhos todos? É que se vais arriscar vida, saúde física e mental, um dia podes ter que explicar a ti mesma(o) porque te fizeste tanto mal. E como vou eu dar dicas a quem pretende iniciar-se, se eu mesma não vejo a hora de sair e só agora tive um vislumbre da porta de saída? Ninguém nos força, ninguém nos obriga, ninguém nos retém aqui, mas parecemos presas em teias e ficamos, quase sempre, muito mais tempo do que prevíamos. Acreditem. Ao entrar corre-se sempre o risco de ficar aqui como se fosse a única vida que se conheceu até agora; há quem fique até depois da fase em que se torna ridículo pela idade. Cuidado com o mundo, cuidado com as ilusões, ambição não é ganância, cuidado com a falta de segurança, arriscar o mínimo e rejeitar tudo o que não permitir manter a dignidade.”
Do alto do seu alter-ego “brinquedo de estranhos, marioneta de sonhos”, Miss Joana Well desmancha ilusões.
Veja também "A prostituição mora ao lado".
