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Para o meu pai... e para as minhas filhas
Carta a um progenitor, escrita por um filho com dúvidas – como muitos outros da sua geração. Por Paulo Farinha

"Um menino na minha sala disse que os meninos são mais crescidos e as meninas mais pequeninas." Foi assim. Ontem, do nada, a Carolina saiu-se com esta. Íamos pela rua, a caminho do jardim, para ela andar de bicicleta. (Ela já sabe pedalar. Com rodinhas, claro, mas percebeu finalmente para que servem os pedais. E que, se os mexer na direção certa, a bicicleta mexe-se também. Eu filmei a primeira vez, depois mostro-vos.) Eu disse-lhe que sim, que alguns meninos são mais altos que algumas meninas, e que isso é normal. Não falei em genética nem biologia, ela não ia perceber. Mas não quis que ficasse sem resposta nem dizer-lhe que mais tarde logo ia entender. Ficou calada um bocado. Depois respondeu: "Isso não é justo, pai." E para isso, sim, eu não tive resposta. A minha filha de três anos e meio a falar-me de justiça. E aplicada num contexto correto. Devemos estar a passar bem algumas noções de igualdade de género.
- 09h30. A Madalena está com 37,7 ºC. Acabei de ver. Não precisa do Ben-U-Ron. Boa! Acordar uma criança de dois anos às quatro da manhã para lhe dar um medicamento é uma taluda: ou corre lindamente e vira-se para o outro lado, ou faz um berreiro, desperta a irmã e depois é um 31 dos diabos. Vou-me deitar, estive a escrever. Combinei com a Sofia, que já dorme, que veria a temperatura da Madalena antes de dormir. A tua nora anda de rastos, com as duas miúdas doentes. Eu também, mas ela acorda mais vezes. Veremos como a Madalena acorda amanhã e se vai à creche, se fica em casa e um de nós tem de faltar ao trabalho ou se vai para vossa casa. Os dilemas do costume para quem tem filhos pequenos.
Tu fazias isto? Vias-me a temperatura de noite? E acordavas, quando eu chorava? Ou só a mãe é que se levantava? As minhas irmãs ajudavam, eu sei. E como sou o mais novo... É uma coisa de que falamos muito, eu e os meus amigos que têm filhos. Sobretudo amigas – queixam-se que as tarefas domésticas continuam desequilibradas, principalmente a cuidar dos filhos. Sobra sempre para elas. E acabamos a falar de como era no tempo dos nossos pais. Tu não me mudaste fraldas, pois não? E alguma vez me deste banho? A mãe diz que sempre cozinhaste em casa e tratavas da louça (embora à porta fechada, porque não gostavas que te vissem), mas puericultura era coisa que não te assistia. E eu ou as minhas irmãs alguma vez nos manifestámos por causa das injustiças nas diferenças entre meninos e meninas?
Eu sei, pai. Eram outros tempos. Não há comparação possível. Fizeste o que conseguiste, o que era "normal" na altura. Não porque trabalhavas e chegavas cansado – a mãe também trabalhava e também vinha estafada. Mas as mentalidades eram outras. O que se esperava de um homem era diferente. E isso nada tinha a ver com ser um bom pai ou mau pai. Eu dou banhos, vejo temperaturas e mudo fraldas. Faz de mim melhor pai? Não sei. Isso pressupõe assumir que os nossos pais foram piores pais connosco do que nós somos com os nossos filhos. E eu não consigo falar de ti assim. Um pai é feito de tantas coisas, tantas aprendizagens e ensinamentos, tantos momentos, tanto acompanhamento de um filho, tanto sacrifício e gargalhada, cumplicidade e educação, proteção e mimo. Não consigo fazer isso. Comparar-te. Soa-te paternalista, esta conversa? Ser paternalista com o nosso pai é uma coisa estranha. Talvez as tuas netas consigam falar de mim assim, dentro de uns anos. Mas eu, que tenho 41, não consigo olhar-te com essa distância. Se calhar é o verbo que me faz confusão. Em vez de "somos" melhores pais, "estamos" melhores pais. Será?
- Estou no escritório, porta fechada. A Madalena foi para a nossa cama às seis, depois de eu lhe mudar a fralda e a mãe lhe dar leite. Ou era isso ou acordava a irmã. O que aconteceu às sete. E também foi para lá. Não dormi nada de jeito. Estou zombie, mas tenho de acabar este texto. E daqui a pouco tenho de as levar à rua, para elas saírem de casa e apanharem ar.
Claro que estamos melhores pais. Também temos mais condições. Condições que tu não tiveste. Eu tive direito a vinte dias de licença paga para ficar em casa quando nasceu cada uma das miúdas. E mais trinta, só para mim, porque prolongámos o tempo total para seis meses. Aproveitei tudo a que tinha direito. Mais houvesse e mais tempo teria ficado com as tuas netas. Há medidas de apoio à natalidade e a legislação protege os trabalhadores nestas condições. Realmente, com tanta salvaguarda laboral, tanta informação, recomendações da Organização Mundial de Saúde, grupos de discussão, fóruns de partilha, palestras, tanta mudança de mentalidade, tantos e tão importantes avanços sociais e culturais, difícil era estarmos piores pais. Tornámo-nos mais participativos, ativos, responsáveis. Dar banho e mudar fraldas não é nada. Preparamos refeições, levamos à escola, ao médico, ao judo, à natação. Ajudamos a fazer os TPC, aprendemos jogos de computador para os podermos acompanhar nisso, temos noções de primeiros socorros. Conhecemos o Ruca, a Dora, a Dr.ª Brinquedos e a nova versão da Abelha Maia. Faltamos ao trabalho quando estão doentes, compramos roupa, vestimos, sabemos tudo sobre ovinhos e cadeirinhas e recomendações de segurança infantil, frequentamos cursos de preparação para o parto e para a parentalidade. Vamos à Internet tirar dúvidas sobre alimentação biológica. E promovemos a amamentação – embora não nos estiquemos no tema porque "as mamas são minhas, eu é que sei" não é coisa que queiramos ouvir numa discussão com hormonas aos saltos. Nós sabemos, mas não precisamos de nos pôr a jeito para ouvir. E lemos o Eduardo Sá, o Paulo Oom, o Mário Cordeiro, o Javier Urra. Até as crónicas da Isabel Stilwell eu leio (apesar de hoje ela falar mais dos netos do que dos filhos).
Tu não leste nada disto, pois não, pai? O Eduardo Sá tinha 12 anos quando eu nasci, não devia ser grande ajuda. Mas também não leste o Brazelton nem o Spock. E lembro-me, quando eu era miúdo, de empapar o leite com Nesquik, comer cereais ao pequeno-almoço (quem é que consultava a informação nutricional daquilo?) e batatas fritas de pacote às vezes às refeições. Refrigerantes, essa água suja cheia de açúcar que as tuas netas não bebem, também não entravam lá em casa.
Não sabias quem era o Dartacão, nem o Bana e o Flapi e aposto que o Marco, que andava atrás da mamã com um macaco ao ombro, não te dizia nada. Deixavas-me andar na chapeleira do carro nas viagens grandes para Castelo Branco, podia comer as bolachas Maria que eu quisesse e, que me lembre, era sempre a mãe que ia comigo comprar roupa. E isto não era bom, nem era mau. Era o que era.
Chegará o tempo em que deixaremos de fazer alarido de tudo isto que fazemos agora, em comparação com o que tu e outros pais não faziam no vosso tempo. Afinal, não fazemos mais do que a nossa obrigação. Nem fazemos mais do que as mulheres têm feito nos últimos sessenta ou setenta anos, desde que passaram a ter um papel mais ativo no mercado laboral e passaram a trabalhar em dois sítios, ganhando o mesmo: fora de casa e em casa, tratando dos filhos e das lides domésticas. Chegará o tempo em que a partilha de tarefas deixará de ser assunto. Quero acreditar que chegará o tempo em que perceberemos que planear as refeições da semana, preparar a roupa das miúdas para o dia seguinte e saber onde estão as calças do pijama, as camisolas de gola alta e o vestido novo são obrigações tão importantes – e unisexo – como quaisquer outras. Chegará o tempo em que os homens – e as mulheres – vão finalmente perceber a diferença entre "ajudar" em casa e "fazer" tudo o que houver para fazer em casa.
12h50. Escrever um artigo aos bochechos não resulta, mas com as duas miúdas de molho, tenho de ir dando apoio. Há ali uma otite, ranhos, dores de barriga, diarreia, a Madalena voltou a fazer febre e a Carolina já está a antibiótico. É a Sofia que está a levar com o pacote todo porque eu tenho este prazo. "Mãe, colo", "mãe, brinca comigo", "mãe, não quero comer", "mãe, dói-me a barriga". Estão as duas na fase em que só querem a mãe. São só 17 meses de diferença entre elas. É duro. E eu com remorsos por não estar a ajudar mais e ela farta que eu traga trabalho para casa. Não é fácil gerir isto. É outra característica destes tempos: passamos a vida a correr no trabalho para não falharmos em casa e a correr em casa para não falharmos no trabalho.
Sim, a minha geração deve ter os pais mais bem preparados e informados da história. E, no entanto, continuo com dúvidas. Estarei a fazer tudo bem? Podia fazer melhor? É outra característica dos pais deste tempo. Pensamos muito. Demais. Não é insegurança, apenas excesso de estímulos. Tanto lemos e conversamos que passamos a vida nisto. Não vamos conseguir protegê-los sempre e um dia tomarão decisões sozinhos que lhes vão marcar a vida toda. Mas, até lá, damos-lhes tudo o que precisam? As ferramentas necessárias? Ou eles só precisam mesmo é de tempo de qualidade connosco e o resto vem por acréscimo? Olha, eu lembro-me do dia em que aprendi a andar de bicicleta e foste tu que estavas lá. E não foi preciso filmar nada.
Tu também tinhas estas dúvidas, quando eu nasci, pai? Quando nasceram as minhas irmãs? Também tinhas medo de não vir a gostar tanto da Zezinha como gostavas da Dulce? E de não gostares tanto de mim como gostavas das minhas irmãs? É que eu pensei nisso, antes de nascer a Madalena. E olha, também choraste, quando nos viste a primeira vez? Aposto que sim. Eu fartei-me de chorar quando peguei nas tuas netas ao colo pela primeira vez. Herdei isso de ti. Ainda bem. Homem que é homem chora no nascimento dos filhos. E se não chora, está tramado – devem encaixá-lo logo numa teoria XPTO e dizer que ele precisa de trabalhar o vínculo ou outra coisa qualquer. E quando entraste em casa connosco pela primeira vez? Quando deste por ti longe dos hospitais, dos médicos, dos botões para chamar as enfermeiras… Também tiveste medo? É que isto é mesmo uma coisa para a vida... E com o tempo, pai? Este amor que se tem pelos filhos, acalma? Arruma-se? Cresce? Eu ainda só levo três anos e meio disto, mas tu já tens mais de cinquenta de experiência...
00H20. Amanhã sou eu a fazer o jantar. E, importantíssimo, a pensar no que vou cozinhar. E a comprar o que for preciso para isso. Condição da tua nora, por ter passado o fim de semana agarrado a este trabalho e não ter ajudado grande coisa com as miúdas. É outro sinal desta época: não assumir que a comida vai chegar à mesa porque alguém a vai preparar.
Há pouco, antes de se deitar, a Carolina veio-se despedir de mim. Deu-me um beijo e disse à mãe: "O pai é mais crescido do que a mãe, mas o que conta é o coração. O meu é grande, grande, grande." Sim, definitivamente, alguma coisa devemos estar a fazer bem com estas crianças.
Por Paulo Farinha,
*Editor executivo da Notícias Magazine, revista do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias, onde assina, aos domingos, a crónica Vida em Comum
(Edição de Março de 2016)


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