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Papa Francisco, o primeiro a acolher no seu rebanho a comunidade LGBTQ

Menos de 24 horas depois de ter dito algumas palavras aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro, em domingo de Páscoa, o Papa Francisco morreu, aos 88 anos. É um ciclo de 12 anos que se encerra, marcado pela solidariedade com os mais frágeis e por alguns avanços históricos para a Igreja Católica.

Foto: GettyImages
21 de abril de 2025 às 15:56 Maria João Martins

Antes de mais, uma declaração de interesses: sou agnóstica, no sentido em que não me identifico no modo como as religiões, todas elas, procuram regulamentar não apenas a minha relação com a transcendência, em que acredito, como a minha intimidade. Mas de uma coisa estou certa: Com o papa Francisco, que nos deixou esta manhã, aos 88 anos, perdemos muito mais do que o líder da Igreja Católica. Perdemos um bem precioso, cada vez mais escasso no mundo violento e áspero em que vivemos — um humanista, que, em 12 anos de pontificado, foi uma voz a favor dos mais frágeis e de todas as vítimas de discriminação, fosse esta política, étnica, sexual ou económica. 

Fazia-o com o sentido pedagógico, característico da Companhia de Jesus em que Jorge Mario Bergoglio, descendente de imigrantes italianos na Argentina, ingressou em 1958. Também por essa proximidade, decerto ficará para a História, no mesmo patamar que alguns antecessores seus que marcaram o mundo, muito para lá dos limites do Vaticano, como João XXIII, promotor do Concílio Vaticano II, e João Paulo II, que teve papel decisivo na queda do muro de Berlim.  

Francisco ousou criticar os excessos do sistema ecómico atual, tendo ido, neste aspeto em particular, muito mais longe do que qualquer um dos que o precederam. Bem informado e com os pés, afinal, bem assentes na terra, manifestou especial preocupação com a ecologia e as mudanças climáticas, tema a que dedicou a encíclica Laudato Si, de 2015. Um texto em que afirmava: "A irmã natureza clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada (…)." Talvez só agora, dez anos depois, com a administração Trump a perseguir as instituições e empresas que falem abertamente deste tema, alcancemos o carácter revolucionário deste documento.

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Mas Francisco não ficou por aqui. Na encíclica seguinte, Fratelli Tutti (2020) atacava os perigos do neoliberalismo e do populismo. Uma posição que reforçaria na encíclica Dilexit Nos (Amou-nos), a mais teológica e espiritual de todas (já que se ocupa do Sagrado Coração de Jesus). Mas em que alertava os fiéis para os perigos da ganância, da frieza do algoritmo e do papel que este desempenha nas vidas de cada um. Mesmo tendo uma conta no Instagram desde 2016 (como bom pedagogo, Francisco conhecia as possibilidades evangelizadoras das redes sociais), mostrou-se sempre muito crítico da desumanização fomentada por estas plataformas.

Francisco seria ainda mais disruptivo em relação à posição tradicional da Igreja Católica, ao aceitar fraternalmente, no seu rebanho, homossexuais e transexuais, permitindo que estas pessoas sejam padrinhos de batismo, ou que recebam a benção católica. 

Em setembro de 2020, fez história ao ser o primeiro papa a encontrar-se com um grupo da comunidade LGBTQ. O Papa Francisco esteve reunido com 40 pais de crianças do grupo Tenda di Gionata, associação que apoia cristãos desta comunidade. "Deus ama as crianças como elas são", disse-lhes. "A Igreja ama os vossos filhos como eles são, porque são filhos de Deus." Num documentário de 2023 (Amén: Francisco Responde, transmitido pela Disney+), Francisco é questionado por um grupo de jovens sobre o acolhimento da Igreja às pessoas LGBT. Dirá :"Toda pessoa é filha de Deus, toda a pessoa. Deus não rejeita ninguém, Deus é pai. E eu não tenho o direito de expulsar ninguém da Igreja. Não só isso, meu dever é sempre acolher. A Igreja não pode fechar a porta a ninguém. A ninguém".

Para muitos, esta defesa da inclusão não foi tão longe como deveria, já que o Papa não deixava de criticar a chamada "ideologia de género", que considerava abusiva em relação à sociedade como um todo. No entanto, em maio de 2024, pediu desculpas por alegadas afirmações suas, feitas em privado, sobre o sacerdócio de pessoas homossexuais. O que também ficará para a História como uma das poucas vezes em que um Papa veio a público pedir desculpa.

Do mesmo modo, procurou iniciar um processo de "desmasculinização" da Igreja, permitindo que as mulheres acedam a cargos superiores na Cúria. Teve também uma palavra de esperança e solidariedade para com as vítimas dos abusos sexuais protagonizados por sacerdotes católicos, considerando esses atos "uma traição à vida".

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Ao longo destes doze anos de pontificado, Francisco mostrou-se também muito atento à situação daqueles de quem o poder só se ocupa com a mão pesada da repressão. Mostrou-o logo na primeira das suas muitas viagens, no caso, à ilha italiana de Lampedusa, palco da tragédia dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo em busca de uma vida melhor e só encontram hostilidade e morte. Por causa de tudo isto, podemos hoje dizer que minguém como ele, na vida religiosa ou política, teve tanta legitimidade para proclamar a frase que se tornou o símbolo das Jornadas Mundiais da Juventude, realizadas em Lisboa, em Agosto de 2023: Todos, todos, todos! Afinal, não fora por acaso que Jorge Maria Bergoglio, ao assumir a liderança da Igreja Católica, tomara para si o nome de Francisco, o homem que, em plena Idade Média, revolucionou a ortodoxia religiosa, com uma política de proximidade às populações e de atenção às mais pequenas, e vulneráveis, criaturas de Deus.

O que esperar do futuro próximo, quando o fumo branco sair da mais famosa chaminé do Vaticano? Qual será o perfil do novo pontífice, que sairá do conclave dos cardeais? Teremos alguém favorável à conclusão do legado de Francisco, concretizando aspetos a que ele não chegou, como a ordenação de mulheres sacerdotes ou os direitos dos divorciados no seio da comunidade católica? Ou, pelo contrário, teremos um Papa saído dos setores mais tradicionais da Igreja, mais do agrado das correntes totalitárias que se perfilam em vários países, dos Estados Unidos à Rússia? 

Neste momento de despedida, mais do que todas as palavras, ocorre-me a imagem de Francisco, solitário na Praça de São Pedro, a rezar por todos nós, desorientados e impotentes, apanhados à traição por uma pandemia que não esperávamos. Nesse gesto quase mendicante de quem carregava humildemente a cruz de milhões de almas, estava alguém que assumiu a missão de velar por todos. Iluminado talvez por uma centelha de Deus.

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