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Antes do Brexit e das eleições nos Estados Unidos, ninguém imaginaria que “a filha do Demónio” pudesse levar a extrema-direita ao poder em França. Mas as sondagens dão à líder da Frente Nacional a vitória na primeira volta das presidenciais, a 23 de abril.
20 de abril de 2017 às 07:00 Máxima
Talvez seja derrotada, na derradeira corrida, a 7 de maio. Se chegar ao Eliseu, dizem os críticos, "será pior que o Trump".
A política não seria o destino de Marion-Anne-Perrine Le Pen, nascida a 5 de agosto de 1968, na maternidade privada de Ambroise-Paré, região de Paris. Foi apenas aos oito anos que a política entrou na sua vida, da "forma mais cruel e brutal", quando cinco quilos de dinamite destruíram o edifício onde vivia com os pais e as duas irmãs.
Nunca apanharam ou condenaram o(s) culpado(s). Ninguém se mostrou solidário com a família. O alvo do ataque era o pai, Jean-Marie Le Pen, criador da Frente Nacional (FN), de extrema-direita, amaldiçoado como o "Diabo da República". Terá sido, a partir deste momento, que Marine – nome inspirado nos seus olhos azuis e o único, sem apelido, com que se apresenta às presidenciais em 23 de abril – começou a construir uma visão do mundo "conspirativa e apocalíptica".
O atentado, na madrugada de 2 de novembro de 1976, destruiu 12 apartamentos do imóvel de cinco andares. Os Le Pen viviam no 4.º piso. Sobreviver foi como milagre. "A partir daquele momento, deixei de ser uma menina como as outras", escreveu Marine Le Pen numa de duas autobiografias, À contre flots. "Descobri que o meu pai pode morrer e, pior ainda, que o querem matar. (...) Foi na idade das bonecas que tomei consciência de uma coisa, para mim, terrível e incompreensível: nós não somos tratados de forma igual aos outros."
É natural que Marine só tenha despertado para o "político" Jean-Marie Le Pen após a explosão cujos danos foram comparados aos de "um bombardeamento". O bretão nativo do golfo de Morbihan, filho de um pescador e de uma costureira, não era um pai presente. Ocupava dias e noites em reuniões partidárias, em "festas boémias" e a dirigir a sua editora discográfica (Serp, especializada em "discursos de ditadores, hinos de guerra e marchas militares"). A mãe, Pierrette, enjeitou ser fada de um lar que "às vezes se parecia com Woodstock".
As filhas – Marie-Caroline, Yann (nome masculino porque o pai queria um rapaz) e Marine – passavam a maior parte do tempo sozinhas. Em 1984, quando Maman est partie, para viver com um jornalista convidado pelo marido a escrever a sua biografia, foi um vexame para o "clã" Le Pen. Sobretudo para Marine, que tinha 16 anos e carregava, mais do que as irmãs, a cruz de ser "a filha do Diabo".
O divórcio foi venenoso. Sobre a mãe, disse o pai à Playboy, em 1987: "Se ela precisa de dinheiro, que vá trabalhar (...), até como empregada doméstica, que não é uma desonra." A mãe respondeu posando como playmate. Na capa da revista, o título provocador: Madame Le Pen nue fait le ménage. Para Marine, "foi um ato de violência psicológica".
A traição de Pierrette seria a primeira, mas não a última. Marie-Caroline, que le père preparava para ser herdeira política, abandonou-o quando Bruno Mégret causou a primeira cisão na FN, em 1998. Marine, expulsá-lo-ia em 2015.
Jean-Marie perdoou apenas Pierrette, acolhida num anexo de Montretout, mansão do século XIX herdada de Hubert Lambert, magnata da indústria do cimento que lhe legou a fortuna convicto de que o beneficiário iria restaurar a monarquia.
Maine não viu a mãe durante 15 anos. Em 1985, ela e as irmãs ficaram entregues a uma governanta, Danny, quando o pai se mudou com a segunda mulher, Jany Paschos, para outra residência em Paris, relatam David Doucet e Mathieu Dejean em La politique malgré elle – La jeunesse cachée de Marine Le Pen.
Em 1986, com "vocação para advogada" Marine inscreveu-se na faculdade de Panthéon-Assas. Concluído um mestrado, Marine foi trabalhar para a firma de Georges-Paul Wagner, ex-deputado da FN e o único que a aceitou como estagiária (após um telefonema do pai). Defendeu casos diversos: divórcios, despedimentos, injúrias, difamações, violações... Um dos mais mediáticos envolveu, em 1992, o imigrante ilegal argelino Eddine Hamidi, várias vezes detido e deportado. Exigiu para o cliente "reintegração da sua nacionalidade francesa". Perdeu a causa.
Se a defesa de clandestinos, contra os quais tem feito campanha – e Hamidi não foi o único –, surpreendia acusadores e juízes, as "noites loucas" da filha do guru da extrema-direita também espantavam. Aos 22 anos, ela adorava as pistas de dança, onde se cruzava com celebridades, embriagava e fumava compulsivamente maços de Gauloises. Era conhecida como la night-clubbeuse, adiantamos biógrafos Doucet e Dejean.
Foi num clube de fama libertina, L’Aventure, que Marine conheceu o primeiro marido, Franck Chauffroy. Casaram-se em 1995 e divorciaram-se em 2000. O empresário que trabalhara para a FN é o pai dos seus três filhos, Jehanne (1998), assim chamada em homenagem a Joana d’Arc, heroína do partido, e os gémeos Louis e Mathilde (1999).
Em 1997, com escassez de clientes e dinheiro, Marine aceitou o convite do cunhado Samuel Maréchal, (ex-) marido de Yann e líder da Frente Nacional da Juventude, para ser diretora jurídica do partido. Estava aberto o caminho para o trono do pai.
Chegou à liderança em 2011, prometendo a dédiabolisation de um partido contaminado pelo antissemitismo, racismo e neofascismo das suas diversas tendências.
O antigo paraquedista da Legião Estrangeira para quem as câmaras de gás no Holocausto foram "um detalhe da História", arrependeu-se de ter apoiado a filha contra o delfim, Bruno Gollnisch. Em 2015, foi banido da direção. Restou-lhe o título de "presidente honorário".
Um dos estrategas da ascensão de Marine é Florian Philippot, orgulhoso gaullista e gay de 35 anos, que tem ajudado a recuperar militantes que saíram com Mégret (como a irmã Marie-Caroline e o marido, Philippe Olivier) e a recrutar votantes que outrora repeliam a FN mas hoje se sentem atraídos pelo slogan "nem esquerda nem direita".
Mas será que houve mesmo uma rutura clara na ideologia da FN? O filósofo francês Michel Eltchaninoff, autor de Dans la tête de Marine Le Pen, admite que a filha de Jean-Marie "impulsionou mudanças significativas" – sendo "a mais extraordinária" a rejeição do antissemitismo. "Ela quer afastar-se dos momentos históricos e traumáticos na memória da extrema-direita francesa: os anos 1930 e as suas linhas antirrepublicanas, a II Guerra Mundial e o colaboracionismo [do regime de Vichy], a guerra da Indochina, a guerra da Argélia."
Marine distancia-se também dos outrora influentes católicos tradicionalistas. Já não trava combates contra o aborto, o sexo antes do casamento ou a homossexualidade – bandeiras que são hoje da sua sobrinha Marion Maréchal-Le Pen, 28 anos, a mais jovem deputada na Assembleia Nacional. A ultraconservadora filha de Yann é vista como potencial sucessora da tia se esta sofrer um desaire eleitoral. Marine rompeu, igualmente, com "a tradição viril e marital do chefe". Duas vezes divorciada e a viver em união de facto com Louis Aliot, vice-presidente da FN, é uma mulher moderna que cria sozinha três filhos. "Não se dirige apenas como general às tropas obedientes, mas como uma vítima dos efeitos do mondialisme", a globalização, o ultraliberalismo que define como "invisíveis totalitarismo". Nas presidenciais de 2012, cativou mais de 2 milhões de mulheres, prometendo-lhes emprego e segurança.
O feminismo é um tema que a FN raramente explorava. Ao reivindicá-lo, Marine define-se como "realista" para quem os grandes combates feministas dos anos 1960-70 já não têm razão de ser. Recusa a "grotesca teoria do género" e celebra "uma amálgama" de heroínas. Coloca no mesmo panteão, por exemplo, Olympe de Gouges, opositora do casamento religioso e condenada à guilhotina em 1873, e Santa Genoveva, a católica padroeira de Paris.
A académica Cécile Alduy, autora de dois livros onde analisa "mais de 2,5 milhões de palavras" de seis políticos franceses (Ce qu’ils disent vraiment e Marine Le Pen prise aux mots: Décryptage du nouveau discours frontiste), concorda que a líder da FN usa o feminismo – e a laicidade – não apenas para se distinguir de um partido falocrata mas, sobretudo, como arma de guerra contra a islamização.
"Marine apoderou-se da laicidade e do feminismo se apresentar como principal defensora dos direitos das mulheres contra a suposta misoginia de muçulmanos e imigrantes do Norte de África e do Médio Oriente", diz à Máxima, por e-mail, Cécile Alduy, professora de Cultura e Política francesa contemporânea na universidade americana de Stanford. "A marca de feminismo que ela brande tem como único objetivo vilipendiar o Islão e conquistar simpatias de um eleitorado feminino que costumava ser alérgico à FN dirigida por Jean-Marie Le Pen."
Se a "viragem definitiva da página do antissemitismo marca uma grande diferença ideológica" na FN de Marine, anotou Alduy, em termos de programa político, "ela segue a visão do pai em tudo: lei e ordem, identidade nacional e imigração, educação e valores morais". Por outro lado, "o seu discurso não difere muito, na forma, do dos seus adversários". Recorre, como eles, a uma linguagem tecnocrática, generalista e abstracta". Marine e Jean-Luc Mélenchon, o candidato da extrema-esquerda, por exemplo, "partilham uma retórica antieuropeia comum que usa os mesmos neologismos depreciativos (‘eurobeatos’ ou ‘casta’).São também os dois políticos que mais usam a palavra-chave ‘soberania’ e competem pela exclusividade da expressão ‘o povo’."
"Ao invocar ‘o povo’, de um modo ambíguo", observou a académica francesa, "Marine procura cativar as classes mais baixas anti-Europa e anti-imigração, os operários, os empregados menos qualificados e mais mal pagos na indústria, a ‘França periférica’ (população das pequenas aldeias onde há cada vez menos serviços do Estado) e o mundo rural. Para ela, le peuple é os pobres e, simultaneamente, um grupo cultural e etnicamente específico, francês ou de origem francesa, fiel a valores cristãos."
Em termos económicos, "o seu programa é um pot-pourri eclético de medidas da esquerda (reforma aos 60, manutenção das 35 horas de trabalho semanais…) e de direita (deduções fiscais para pequenas empresas…)".
À hora do fecho desta edição, duas sondagens confirmavam a imprevisibilidade dos resultados. Uma delas dava uma inédita vantagem, na primeira volta, ao centrista Emmanuel Macron, 39 anos, do movimento En Marche!, com 26,5% das intenções de voto contra 24% de Marine. Numa outra, a líder da FN continua na frente, com 27%, contra 25% do ex-banqueiro e antigo ministro da Economia. "Marine Le Pen perderá, à segunda volta (em 7 de maio), contra qualquer outro candidato", confia o cientista político francês-americano Arun Kapil. Segundo o IPSOS, o mais antigo e credível barómetro político, os que não gostam dela chegam aos 75%, percentagem semelhante aos que detestam a FN. É uma rejeição esmagadora e constante".
"Na primeira volta das eleições regionais em 2015, após os atentados de novembro, a FN conquistou 28% dos votos –algo sem precedentes", lembrou Kapil, numa entrevista à Máxima, por Skype. "Na segunda volta, porém, ainda que tenha registado uma subida de 3%, a maioria dos eleitores rejeitou a Frente, que não conseguiu ganhar nenhuma região."
"O que também impede a FN de ser um partido mainstream é não ter parceiros, e em França não se pode governar sem aliados", sublinhou o professor da Universidade Católica de Paris. "Mesmo que Marine ganhe a presidência, será muito difícil à FN vencer as legislativas em 11 e 18 de junho. Como irá governar sem maioria na Assembleia Nacional, sendo que um dos primeiros atos será designar um primeiro-ministro?" A realidade é que os tempos "são conturbados" e depois de "acidentes eleitorais", como o Brexit e a eleição de Donald Trump, Kapil não exclui uma vitória de Marine. "Se ela ganhar, é possível uma certa dinâmica a seu favor, mas isso acarreta o perigo de uma fragmentação dos partidos. Se houver muitos candidatos divididos, a FN poderá formar um bloco na Assembleia sem precisar de uma maioria. Isso seria um duro golpe para a direita tradicional. Temo que cause a desintegração do Partido Republicano. Este é um cenário de pesadelo."
"Marine e Trump têm uma retórica que assenta nos mesmos medos – mas ela é mais perigosa do que ele", conclui o autor do influente blogue Arun With a View. "Porque em França o presidente tem mais poderes do que nos EUA. Hoje, se a América e a França estão em maus lençóis, deve-se à natureza das suas instituições. Há muitas semelhanças entre o Partido Republicano nos EUA e a FN: ódio às elites, não económicas, mas culturais e intelectuais. Na América, assistimos a uma espécie de revivalismo da contestação social e resistência, mas em França sinto que a esquerda está exausta, não apenas dividida. Marine será uma catástrofe. Será um Trump menos doido mas mais eficaz."
Por Margarida Santos Lopes
*Originalmente publicado na edição de abril da Máxima (nº343)