Histórias de Amor Moderno: “É que o João não é o pai biológico do bebé”
“‘Eu sei o que os homens dizem uns dos outros quando as mulheres não estão por perto. E também sei o que dizem das mulheres dos homens que não estão presentes.’” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Se for rapaz, que seja tudo menos Orlando, que era o nome do meu avô materno. Esta foi a minha única exigência, e nem sequer me parece difícil de cumprir. Hoje em dia, quem é que chama Orlando a um bebé? Nem há quem se lembre do nome, a não ser quando, inusitadamente, se cruzam com algum dos raros exemplares que o carregam. Quando digo "carregam", não o faço por dramatismo nem para usar um disfemismo. Carregam-no porque, para mim, esse é um nome de peso, de carga obscura. O meu avô não era flor que se cheirasse. Mas o meu avô também não é para aqui chamado.
O João tem mais regras e diretrizes que o guiam até ao nome ideal. Suponho que seja o nome ideal, considerando todas as condicionantes que impõe à escolha. Que não pode começar por A, para não ser sempre dos primeiros a serem chamados nas aulas; mas que também não quer que comece por Z, nem Z, nem por Q - mas eu ira chamar o quê à criança? Quintino? Quirino? Quitério? -, nem por X, para não ser dos ultimos numa chamada do que quer que seja; que não pode ser um nome daqueles mais antigos - "essa moda de chamarem Sancho e Mendo e Martim às crianças é uma palermice; ainda acabamos a chamar Febo a algum" -, mas também não quer uma pós-modernice qualquer - "não vou chamar ao miúdo Fábio, nem Ruben, nem Mauro, nem Igor, Ivan ou Diego; não quero que cresça com a obrigação de se tornar futebolista ou barbeiro".

E, se for rapariga, também não está fácil a escolha. Além das regras todas expostas atrás, diz que o bebé "não pode ter um nome banal dentro da geração". Ou seja, estão excluídas as Leonores, as Carolinas, as Joanas, as Alices, as Camilas e as Beatrizes. E ficam igualmente de fora os Franciscos, os Afonsos, os Santiagos, os Lucas e os Mateus. Não sei se são estes os nomes mais populares, não me dei ao trabalho de ir consultar as listas, as estatisticas e os registos dos últimos cinco anos. Porquê cinco anos? "Porque são da mesma geração. Daqui a 30 anos, seão todos da mesma idade e chamam-se todos uma das mesmas cinco ou seis possibilidades. Não há diversidade." Naturalmente, o João foi consultar as listas e as estatísticas. Quando digo "consultar", estou a usar um eufemismo: ele foi mesmo estudá-las.
A maneira como conto a história pode fazer parecer que ridicularizo o João pelo seu empenho em encontrar o tal nome ideal. Porém, não é disso que se trata. Pelo contrário. Acho graça ao seu esforço para que tudo seja perfeito. Acho amorosa a sua dedicação, derrete-me com o tempo que despende para que todas as coisas estejam prontas, sem pontas soltas, sem detalhes por resolver no momento em que o bebé chegar a este mundo. E faz-me sentir por ele um amor cada vez mais forte. É que o João não é o pai biológico do bebé.
Não se trata de uma história cabeluda, repleta de segredos capaz de fazer as vizinhas juntarem-se no átrio do prédio a falar baixinho e a levar as mãos à boca e à cabeça. Não, eu nunnca enganei o João. Nunca o traí. Nunca na vida seria capaz de fazer semelhante coisa. Somos muito felizes juntos. Não somos amantes com estampa de capa de revista nem temos histórias luxuriantes de amor louco. Não somos os pombinhos que estão juntos desde o jardim-escola, não somos sequer os primeiros amores um do outro. Somos só duas pessoas convencionais, regulares e indistintas que têm a sorte de se ter cruzado na vida uma com a outra. E que são muito felizes desde então, mesmo que não o apregoem publicamente nem disso façam alarde nas redes sociais.

Vivemos juntos há cinco anos, começámos a namorar um ano antes. Desde que decidimos morar na mesma casa e partilhar a vida que tentamos engravidar - agora diz-se assim, é mais delicado dizer-se que "queremos engravidar" do que afirmar que pretendíamos que o João me engravidasse, que é uma expressão cujos contornos são mais animalescos e rudes (e, no entanto, era aquilo que eu mais queria que acontecesse, por mais bruto que isso pareça). Só que nunca conseguimos engravidar. Tentámos muito, tentámos com mais método, mais disciplina, seguindo calendários; tentámos seguindo instruções, tomando mezinhas, seguindo indicações astrológicas e evitando o Mercúrio Retrógrado. Tentámos, tentámos e voltámos a tentar. Não nos queixamos, tentar é sempre bom e tem as suas recompensas. Contudo, é frustrante quando a gravidez continua a teimar em não aparecer.
Não esmorecemos. Aceitámos que havia um problema. Aceitar que um problema existe é o primeiro passo no caminho da sua resolução, segundo os mantras de várias dezenas de gurus do auto-conhecimento e da auto-ajuda. Consultámos médicos, fizemos exames. Aparentemente, tudo estava normal connosco. Fisicamente aptos, razoavelmente saudáveis. Foi só quando fizeram a contagem de espermatozóides que se descobriu um problema. Eram poucos. Tão poucos que a conclusão foi quase instantânea. Não levou tempo nenhum a contá-los.
Fizemos tratamentos. Este "fizemos" é abusivo e solidário, mas não condescendente. Foi o João quem fez os tratamentos, mas eu estive sempre a seu lado. E o tratamento tinha como fim o nosso bem-estar e a conceção de uma criança nossa, filha de ambos. Da mesma maneira que engravidamos juntos, é juntos que nos tratamos. Só que os tratamentos falharam também. Nada era suficiente. E a frustração e o cansaço começam a apoderar-se de nós quando começamos a não ver uma saída para uma situação destas, principalmente quando se trata de um desejo tão forte de ambos: ter filhos.

Eu e o João não somos apenas felizes. Também somos muito otimistas juntos. E perseverantes. Não sei dizer o que vem primeiro, qual é a característica que sustenta as outras. Suponho que sejam simbióticas e que, em conjunto, produzam em nós este efeito que nos permite sermos positivos, alegres e corajosos. Sim, porque é preciso alguma coragem para ter esperança, todos os dias, e acreditar, até ao limiar da fé, que é possível concretizarmos aquilo que o mundo parece dizer-nos que não está ao nosso alcance.
Aconselhados por médicos e pessoas que nos são queridas e próximas, tínhamos em cima da mesa várias possibilidades. A minha primeira opção seria adotar uma criança. Mas o João não quis. O João sabe o quanto é importante para mim conceber, gerar e trazer ao mundo um bebé. Não é só criar e educar. Carregá-lo no ventre durante 9 meses faz toda a diferença. O João ama-me e é generoso. Mesmo sabendo que o filho não seria biologicamente seu, aceitou esse fardo para que eu pudesse concretizar o meu sonho.
Procurámos um banco de esperma que nos oferecesse opções de confiança. As minhas preocupações foram, desde o início, mais, digamos, técnicas. Queria garantias, queria segurança, queria fiabilidade. E queria também um bom historial de resultados de sucesso. O João queria tudo isso também, claro. Mas queria mais ainda. Pretendia aceder a uma seleção exaustiva de dadores. Tendo em conta as exigências e entraves que existem na cabeça dele quandos e trata de escolher um nome, não espanta que queira assegurar-se de que está a escolher o perfil ideal para o dador do sémen que irá gerar o seu próprio filho.
A definição de perfil ideal, essa sim, é complexa - se bem que não seja surpreendente. Segundo o João, o perfil ideal para o dador é, claro, o perfil dele mesmo. Portanto, fomos obrigados a procurar um homem branco, moreno e de faces rosadas, de 34 anos, um metro e setenta e oito de altura, oitenta e dois quilos, entradas profundas de ambos os lados do coro cabeludo e uma ligeira calvície no cocuruto. Olhos castanhos têm preferência, mas aceitam-se os olhos verdes, que poderiam perfeitamente ser herdados da parte da mãe - que sou eu. As exigências chegaram ao cúmulo de querer saber se o dador era muito ou pouco peludo, porque ele, o João, não é exatamente um prodígio de pêlos. "Imagina, Susana, imagina só, um dia, daqui a quinze anos, estamos alegremente em família, na praia, e eu com esta pele imberbe ao lado do meu filho adolescente sobre cuja cútis a pelagem abunda, como uma selva negra de masculinidade e testosterona. Toda a gente vai perceber que não é meu filho, Susana. Eu trabalho numa oficiana, amor. Eu sei o que os homens dizem uns dos outros quando as mulheres não estão por perto. E também sei o que dizem das mulheres dos homens que não estão presentes quando têm por onde pegar para serem maldosos. Não, minha querida, a mim não me apanham nessa brincadeira."
Escolhemos um indivíduo que tinha uma barba muito mal semeada. Só espero que o bebé seja uma menina, porque se for rapaz e acabar por ter uma barba assim, enfim, aquilo não é barba que se apresente. Quanto ao nome: se for rapaz, será Daniel; rapariga, Daniela. Está decidido.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
