Histórias de Amor Moderno: “Levei a Vanessa a casa dos meus pais três vezes. Revelou-se uma péssima decisão”
“Perguntei-lhe se ela sabia o que tinha feito e pelo que é que pedia desculpas. Não me soube responder de modo satisfatório. E eu acho que isso me salvou.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

O meu pai não bateu com a mão na mesa, mas notei que teve de se conter para não o fazer. Pousou-a lentamente, mas com firmeza, deixando as cartas com a face voltada para baixo, de modo a não estragar o jogo a mais ninguém, e disse “jogo a brincar, mas não brinco a jogar”. Levantou-se e disse “boa noite”. Retirou-se para o quarto. Fiquei sem palavras, senti-me embaraçado. A minha mãe olhava-me fixamente, sem dizer nada. O meu irmão mostrava-se agastado, mas também preferiu não falar. Acredito, conhecendo-o, que tenha mordido os lábios. A meu lado, a Vanessa preferiu não fazer cerimónias na apreciação da situação: “Não sei porque é que ficam todos assim, não fiz nada de mal, só estava a gozar… animem-se, pá!”
Eu não gostava especialmente da Vanessa. Não seria bonito quantificar o meu sentimento por ela, seria mesmo deselegante fazê-lo. Mas, se o fizesse, diria que, numa escala de 0 a 10, gostava dela talvez 2 ou 2,5. Não é muito. E, por causa disso, a situação entre nós atingia níveis confrangedores de estranheza.
Por exemplo, eu detestava o nome dela, “Vanessa”. Contudo, nunca encontrei alternativa para me dirigir a ela, uma daquelas alcunhas fofinhas que os apaixonados arranjam para o seu “outro significativo” - “amor”, “morzinho”, “babe”, “baby”, “bebé”, ou qualquer coisa menos genérica, como um diminutivo (o que, no caso dela, seria deveras desafiante - chamar-lhe o quê? Néssinha? Nessy? Vány? A cada possibilidade que surge, o mundo torna-se um lugar pior, como se eu fosse escavando em busca de um tesouro no meio de uma lixeira municipal).
Quando eu disse que não gostava do nome, talvez não me tenha expressado da maneira correta: sinto aversão pelo nome “Vanessa” ao ponto de ter dificuldades em pronunciá-lo. De tudo faço para o evitar. Felizmente, não foram muitas as vezes que me cruzei com vanessas na minha vida.
Essa minha dificuldade em lidar com o nome e a ausência de qualquer outro apelido romântico para me dirigir àquela que era, então, a minha companheira, resultavam numa estranha maneira que eu usava para me dirigir a ela. Sempre que possível, omitia o sujeito, qualquer que fosse a interpelação, e tentava sempre dirigir-me a ela começando pelo predicado. No caso das perguntas era fácil - “queres”, “gostavas”, “preferes”, “importas-te”, “apetece-te” -, mas com frases afirmativas tudo se tornava mais complexo. Foi por isso que adotei o “olha” para me dirigir à Vanessa sempre que não pretendia fazer-lhe uma pergunta. Dizia “olha”, e depois continuava. “Olha, vou pôr o lixo na rua” ou “olha, estou cheio de calor”. Não era perfeito, mas ajudou-me a superar muitas dificuldades.
Nunca percebi muito bem o que me levou a envolver-me com a Vanessa. Não foi amor e paixão também não terá sido. Não me sentia especialmente atraído por ela e os tempos que passávamos juntos eram, por norma, turbulentos: ela tinha uma personalidade de certa forma destrutiva; quando fumava (não me refiro a tabaco) e bebia, formava-se uma tempestade onde quer que estivéssemos. A eterna tempestade Vanessa. Latente durante a maior parte do dia, revelava-se em toda a sua fúria quando o álcool e o THC lhe batiam na base da nuca e se sacodia como se fosse um cão a sentir um arrepio. Depois desse abanão, já estava: o olhar diferente, alterado, a fronte franzida como quem quer farejar o ponto fraco mais próximo para semear um desastre.
Nos dias em que a alteração lhe trazia alegria, era capaz de dançar no meio da rua sem outro motivo que não fosse o seu desejo. Não precisava de música, de nada: pegava e desatava a dançar. Nos outros dias, tornava-se ainda mais chata e corrosiva, implicava com qualquer coisa, começava a falar alto e a fazer perguntas inquinadas, como um bully repetente numa escola primária cheia de caloiros. Tornava-se tenebrosa.
Eu e a Vanessa conhecemo-nos numa festa qualquer ou num concerto no meio de Lisboa, nem sei bem. Por alguma razão que hoje não consigo decifrar, demo-nos bem. Nessa época, talvez também eu fosse destrutivo ou simplesmente procurasse uma referência de desequilíbrio para fomentar, em mim, uma ideia concreta de equilíbrio - o equilíbrio que me faltava.
Eu vinha de duas relações relativamente longas e quase consecutivas, após o que entrei numa espiral de desvario. Os excessos multiplicavam-se, tal como as companhias. Só ia reduzindo duas coisas: as horas de sono e o saldo contabilístico. A Vanessa terá sido uma espécie de etapa final nessa descida à minha profundeza. Não sei se bati no fundo, mas é seguro que a nossa relação não terá ficado mais de um palco acima do meu limite mínimo. Estivemos juntos pouco mais de dois meses, e de modo intermitente. Não tínhamos propriamente um compromisso. Íamos ficando um com o outro. Encontrávamo-nos, ficávamos. Passeávamos, às vezes. Chegámos a fazer uma curta viagem até à costa, ficámos por lá uns dias. Não foi terrível.
Levei a Vanessa a casa dos meus pais três vezes. Revelou-se uma péssima decisão, mas extraiu-se daí uma lição valiosa: não leves a casa dos teus pais alguém que não conheças profundamente e, acima de tudo, alguém em quem não tenhas a certeza de poder confiar. Quando falo em confiar, refiro-me a poder antecipar o seu próximo gesto, a não ter dúvidas de que não haverá um escândalo antes da sobremesa, a ter plena certeza de que essa pessoas sabe, assimilou e irá respeitar as regras mais elementares de boa convivência social e familiar. A Vanessa preenchia tais requisitos.
Na noite do jogo de cartas, antes de subirmos para casa dos meus pais, parámos numa esplanada no centro do bairro. Bebemos algumas cervejas. Sabia que isso representava, em si, algum perigo. Mas a Vanessa decidiu tornar a situação mais assustadora: “Vou fazer uma”, disse. Pedi-lhe que não o fizesse, expliquei que íamos jantar dentro de poucos minutos, tentei apelar ao seu bom senso - uma perda de tempo, pois de que vale apelar ao que não existe? Fez o que tinha a fazer e fumou. Ficou obviamente alterada.
À mesa do jantar, as conversas começaram a ganhar estranhos contornos. As suas perguntas pegavam nos ângulos mais inusitados das conversas, moldando-as de formas particularmente bizarras e quase sempre inconsequentes. Os meus pais e o meu irmão começavam a ficar agastados pelo comportamento errático. Mas Vanessa não abrandava: continuava a encher o copo de vinho sem pudores nem cuidados. Ela sabia o quanto isso me irritava, mas insistia, “o que é que foi? Se o copo fosse para beber só pela metade, tinha só metade do tamanho”, exclamava. E ria-se. Mais ninguém se ria.
Quando tomámos café, pediu para beber um pouco de whisky. Mas, para a Vanessa, “um pouco” nunca era só um pouco. E eu fiquei perante um dilema: dizer-lhe que não e desencadear uma discussão em que seria acusado de machismo e de a tentar controlar ou abster-me e esperar que tudo corresse pelo melhor, mesmo sabendo que tal era improvável. Receoso, optei pela segunda.
Todos à mesa percebemos que Vanessa estava descontrolada. O meu irmão decidiu então intervir. Sugeriu que jogássemos a qualquer coisa, “assim, distraímo-nos um pouco enquanto convivemos”. Foi buscar um baralho de cartas. Os meus pais acederam, mas sem entusiasmo. Perceberam que era uma questão de tempo até tudo acabar mal.
Quando o meu pai pousou na mesa as suas cartas, com firmeza - “jogo a brincar, mas não brinco a jogar, tenham uma boa noite” -, já todos estávamos bastante aborrecidos com o que se estava a passar. Só a Vanessa, enfiada na sua bolha de alegria autossuficiente e inconsciente, parecia estar a divertir-se com os melindres causados aos demais.
Não demorou dez minutos até que a minha mãe dissesse, com os seus modos mais bruscos, “bom, o melhor é retirar-me também antes que perca a compostura”. A Vanessa, por momentos, parou e parece ter ficado a pensar. Pura ilusão: assim que a minha mãe saiu da sala, desatou a rir às gargalhadas e a perguntar “mas está tudo doido nesta casa, estão-se todos a passar?” Pedi-lhe que se acalmasse.
Por momentos, Vanessa ficou calada, mas com cara de quem está a amuar e a preparar alguma. Eu sabia que ela, vexada por eu a ter chamado à atenção daquela maneira - “olha, se não te importas, acalma-te um bocadinho, por favor, já chega de espetáculo” -, iria vingar-se à primeira oportunidade. E foi o que aconteceu após uma jogada qualquer em que me acusou de batotice, primeiro, e de mau perder, depois. Mesmo não querendo discutir, tentei defender-me, o que acendeu a discussão. O meu irmão interveio e Vanessa continuou, prego a fundo: foi malcriada também com ele.
Foi então que aconteceu algo que nunca esperei ver. E talvez esse tenha sido o momento em que senti maior admiração pelo meu irmão, e um grande alívio por ele me ter compreendido e por ter feito o que estava certo. “Vanessa”, disse ele (eu dificilmente pronunciaria o seu nome), tu fizeste com que o meu pai se fosse deitar às dez da noite, estragaste a noite à minha mãe e a toda a gente. Não achas que já chega, que já fizeste o suficiente?” Perplexa, surpreendida, Vanessa olhou para mim à espera, suponho eu, que a defendesse. Eu não disse nada. A minha expressão manteve-se serena. “Mas queres que me vá embora?”, perguntou ela, dirigindo-se a mim. Eu ia responder, mas o meu irmão antecipou-se, “acho que, dadas as circunstâncias, é o melhor que tens a fazer”. E eu anuí, concordando.
Vanessa pegou nas coisas e saiu. Foi para casa da mãe, com quem, à época, ainda vivia. Ligou-me, dias mais tarde. Chorava e jurava que gostava muito de mim. Pediu-me muitas desculpas. Perguntei-lhe se ela sabia o que tinha feito e pelo que é que pedia desculpas. Não me soube responder de modo satisfatório. E eu acho que isso me salvou. Seguimos, cada um a sua vida.
*Ouça a História de Amor Moderno aqui.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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