Eduarda Abbondanza: "as mulheres estão a posicionar-se na liderança"
Assim que nos sentamos com Eduarda Abbondanza, no seu gabinete na Rua do Arsenal, em Lisboa, hoje sede da associação ModaLisboa, lemos-lhe na voz e no olhar uma determinação serena. É uma mulher à frente do seu tempo.

Tendo sido uma criança curiosa, Eduarda não viveu uma infância sempre feliz devido a problemas de saúde, mas isso deu-lhe uma força inabalável para a vida. Fez ballet no Teatro Nacional de São Carlos e experimentou teatro amador durante três anos. Casou vestida de cor-de-rosa, uma escolha pouco comum, como revelou numa entrevista à Sábado. Em meados dos anos 80 foi para Milão morar com a família do então marido, Luigi Abbondanza, e foi nessa cidade que se deslumbrou com a Moda. Regressou a Portugal em 1987, mas entretanto tinha completado o curso de Design de Moda no Centro Internacional de Técnicos de Moda (CITEM), de 1982 a 1984.
Acabaria por juntar-se ao atelier que Mário Matos Ribeiro (de quem tem a filha, Sofia Matos Ribeiro) abriu no Bairro Alto, surgindo, assim, o atelier Abbondanza Matos Ribeiro, em 1989. Mário e Eduarda produziam, conjunta e individualmente, nas áreas da moda, cinema e teatro, criando desde figurinos para espetáculos de dança a fardas da Marinha e da Força Aérea. Em 1991, fundaram o projeto que tem mostrado mais talentos nacionais na moda: a ModaLisboa (o certame surgiu primeiro e a associação homónima foi criada em 1996). Em outubro de 2018, Eduarda Abbondanza foi distinguida com a Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Lisboa.

A Eduarda fez ballet e conheceu, desde cedo, a música clássica. Cresceu com uma forte sensibilidade para as artes e só mais tarde se apaixonou pela Moda. Tudo isso foi decisivo para traçar os seus sonhos?Eu não tenho muitos sonhos porque vou fazendo as coisas naturalmente. A dimensão do ballet era onde eu me sentia como um peixe na água. Não era tanto a música clássica porque eu também tocava violino e isso era um inferno. O ballet não. Era mesmo onde eu me sentia equilibrada. Era o meu mundo… Comecei muito cedo no Teatro de São Carlos e tinha aulas várias vezes por semana. Eu ia para a escola de manhã e à tarde ia para o teatro. Era muito rigoroso e os pormenores fazem a diferença.
Já era uma criança independente, a brincar?Eu brincava muito. A memória que eu tenho é de brincar muito e isso para mim é tão incrível! Brincava com o meu primo nos quintais… Não havia muitas raparigas a fazê-lo. Como eu tinha o meu lado ginasticado, andava sempre com uns calções por debaixo da roupa para poder subir às árvores e fazer a roda, o pino e andar de bicicleta. A minha irmã chamava-me "a cueca de ferro" [risos]. E cortava as minhas calças porque queria ter liberdade nas pernas. Cortava também a minha franja.
Mas foi mais tarde que descobriu a moda, depois de casar e de ter ido viver para Milão, em meados da década de 80. É assim?Eu percebi a história da moda e o meu fascínio pela moda em 15 dias. Foi tudo muito rápido porque eu tinha vivido durante dez anos num país pós-25 de Abril, onde não acontecia nada e em que tudo girava à volta das "guerras" entre partidos. A juventude estava toda na rua a fazer coisas...

Como é que Portugal era visto pelos italianos?Não era visto! A minha sogra, já eu me tinha vindo embora, continuava a enviar-me cartas [com o endereço] "Lisbona - Portogallo - Spagna". Eu era quase uma indígena quando era apresentada em Milão. Diziam-me: "O quê? Onde? Isso existe?" E tinha uma dificuldade: eu não podia dizer que era portuguesa, mas sim que era de Portugal. Porque, em Itália, a expressão "il portoghese" referia-se àqueles que entravam à borla… Eram os "penduras". Eles adoravam que eu tratasse toda a gente por "você" porque para eles isso era um formato antigo, mas que eles apreciavam imenso.
Quando regressa, no fim da década de 80, surge o atelier Abbondanza Matos Ribeiro. Como é que isso acontece?Antes disso eu criei a minha marca e vendia-a na loja do Mário Matos Ribeiro. Nós tínhamos um território conceptual de pesquisa e passávamos horas a falar de moda. Portanto, a certo ponto éramos os maiores amigos e também os maiores concorrentes. Fundimos as duas marcas.
O que é que a move, o que a inspira, todos os dias?Eu sou uma pessoa que está a colher informação diariamente há "quinhentos mil anos". Sou mesmo uma investigadora nata. Posso ter um assunto que quero saber e vou ter de o saber. É o entendimento da sociedade que me atrai: como é que a sociedade global se movimenta, o que são os novos desafios, como é que funcionam as novas gerações... Isso é o meu core. Depois, a moda é a disciplina que melhor o expressa.

Acredita nas tendências de moda?Faz parte do trabalho de moda consultar tendências… Mas, hoje em dia, elas não existem. Tendências no sentido de que se vai usar isto ou aquilo, há que "séculos" que isso não existe. Existem tendências de cor, mas para mim isso era mais ou menos irrelevante porque eu tinha de encontrar as coisas pelas pesquisas que fazia. A história dos cadernos de tendência era uma consulta complementar.
Como é que recorda o aparecimento dos primeiros designers, estando a Eduarda entre eles?Aparecemos em conjunto, como um fenómeno. No início dos anos 80 e porque eu não estava cá, não me recordo de muitas coisas. Quando eu voltei, isto já estava no auge, Lisboa já tinha elementos que me interessavam e, portanto, eu podia regressar. Antes, vinha apenas por um ou dois dias. Quando eu regressei, o Frágil já existia, já se fazia as Manobras de Maio e o Bairro Alto já fervilhava com lojas.
Não viveu a génese de tudo isso em Portugal, mas viveu o boom em Milão…Sim, eu tinha uma perceção mais global. Eu vivi os anos de ouro de Milão e que são os anos 80. Quando regressei a Portugal, senti que tinha deixado para trás uma cidade que respirava moda. Eu só tinha descoberto a minha paixão em Milão e em Portugal não tinha elementos para a explorar. Via as pessoas a começarem esses processos, no pós-25 de Abril, mas que não tinham apoios. Para mim, um país democrático é aquele que oferece aos seus cidadãos as oportunidades (…) e, nesse tempo, as pessoas que queriam fazer coisas tinham de emigrar.
Foi a vontade em querer que o país crescesse que a levou a pensar na ModaLisboa, que surge em 1991?A minha ideia foi que através dessa generosidade do pós-25 de Abril, eu pudesse ajudar a criar um sistema que fosse bom para mim e para essas pessoas que achava serem efervescentes. Talvez tenha sido devido à minha sensibilidade e à minha perceção das coisas, antes do tempo, que sempre pensei que a melhor maneira fosse ir fazendo, ir mostrando. Foi por aí que tudo aconteceu.
O que é que o digital roubou e deu à moda nestes últimos 30 anos?Os gabinetes de tendências desapareceram… Os trendsetters já existiam, mas agora não precisam de organizações ou de agências para estruturar o trabalho. A chegada do digital fez com que nós, estando em Cabo Verde, na China ou em Portugal, possamos ter o mesmo nível de conhecimento. O que acontece é que tudo isso cria uma irrealidade de que somos amigos do mundo inteiro e que nos conectamos com o mundo inteiro… E conectamos! Mas as relações pessoais sofreram com isso.
As mulheres são cada vez mais reconhecidas, não só na moda, mas em todas as áreas?Estamos a viver uma época feminina. Não estamos [as mulheres] no apogeu mas, nesta época, as mulheres estão a posicionar-se na liderança. Até podemos viver numa sociedade em que as mulheres já ganham igual aos homens… Mas a questão tem a ver com os cargos de poder. Com quem está lá em cima. E se fizermos esse rácio, a diferença ainda é gigantesca…

