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Cristina Ovídio - Para deixar marca

Professora, tradutora, revisora, editora. Passos de uma mulher que, sem largar a Literatura, ajuda a que aquilo que lemos seja melhor, mais bonito e mais útil. Cristina Ovídio, hoje na editora Clube do Autor, é posta à prova e ganha tem mesmo uma vida que não vem nos livros.

Cristina Ovídio - Para deixar marca
Cristina Ovídio - Para deixar marca
10 de janeiro de 2013 às 09:36 Máxima

Se alguma vez se cruzarem com ela, que habitualmente segue em marcha rápida e elegante, ritmo marcial mas balançado consciente, e não a virem carregar um, dois, mais, muitos livros, podem abordá-la – digam que vão da minha parte – e questioná-la sobre o mal que a aflige. A Cristina sem livros é um jardim sem flores… Há, no entanto, uma hipótese extrema, camuflada, estratégica: a de que o volume maior de que ela for portadora, um saco de plástico banal ou uma mala XL, esconda as provas de um livro novo. Também acontece. Na última dúzia de anos, o livro rearrumou-lhe a vida, ao passar de objeto de desejo a ferramenta de trabalho, sem que esta nova condição operária se mostre incompatível com a magia e o mistério anteriores. Nesse período, olhado com a lentidão de algumas horas ou a voracidade de alguns dias, o nome de Cristina Ovídio foi-se tornando familiar, à medida que os autores, os leitores, o mercado olhavam com crescente atenção para as editoras livreiras por onde passou – a Oficina do Livro, a Planeta e, agora, já com participação nas quotas (ela chama-lhe simbólica, admite que é lógica, olha-a mais como desafio do que à laia de prémio), a Clube do Autor.

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Fomo-nos cruzando, aqui e ali. Mas, confesso, quis realmente conhecê-la depois de convidado pela mulher que a rendeu, na Oficina do Livro, a apresentar numa história de crimes e paixões, mais divertida do que macabra, escrita a muitas mãos. Fiquei espantado, depois curioso, a seguir encantado, com a devoção que meia dúzia de consagradas autoras manifestava a esta Cristina de cabelos largos e braços esguios, olhos calmos mas incapazes de descanso.

'Perante iliteracia, nada há de mais estúpido do que ser elitista. O que não significa que não haja critérios'

Estava, até então, convencido de que o escritor e o editor mantinham uma relação do género daquelas que o paciente alimenta com o médico, que o esforçado sustenta com o dietista, que o titular de conta tolera com o respetivo gestor – os segundos estão quase sempre encafuados na prateleira dos males necessários. Nada mais falso, no caso da Cristina. Coubera-lhe dimensionar o volume em causa, equilibrando a arte necessária e a rentabilidade indispensável. Coordenara reuniões para travar ímpetos assassinos e resgatar (ressuscitar?) personagens, acessos de loucura, mergulhos de desânimo às suas autoras. Percebi que, num universo de rigor e num terreno em que é sempre preciso semear muito para que a colheita seja razoável, porque há talentos que murcham e outros que não chegam a ver a luz do dia, ainda há lugar para os afetos e para aquilo que, noutros quadrantes, seria referido como o “tratamento personalizado”. O que não significa, longe disso, tratamentos diferentes para os autores bem distintos a que empresta os seus talentos, que ela funcione por “castas”.

Entendamo-nos: conhecendo muitos dos segredos e truques dessa figura tantas vezes indecifrável, o leitor-comprador, Cristina tem a noção rigorosa de quem são os seus trunfos e dos outros, aqueles que, estabelecendo uma fasquia mínima mais do que aceitável, se revelam mais imprevisíveis no desfecho. Uma das suas artes está em tornar quase impossível a quem a ouve detetar diferenças no carinho, no entusiasmo, no empenhamento com que lida com cada um. E tem cuidados adquiridos – nunca se refere a “correção” de texto, o que poderia levar um autor a considerá-la intrusiva.

Admite não ter nenhum método científico para lidar com os seus artistas – o tempo e a intuição permitem que ela fale à vontade das personalidades e das obras de gente como Miguel Sousa Tavares, Mário Zambujal, Alice Vieira, Margarida Rebelo Pinto, Luísa Castel- Branco. A lista continua, estes são apenas exemplos imediatos, quase automáticos para quem, mais recentemente, descobriu – ou ajudou a descobrir – uma romancista a valer na pele de uma jornalista, Ana Sofia Fonseca. É significativo que, a respeito de cada um dos seus protegidos, Cristina tenha algo a acrescentar, e sempre na fronteira do positivo. E é transparente a forma como defende que, quando falha o instinto, mais do que a técnica acumulada ou o saber justaposto, o editor corre o risco de se tornar intrusivo – e é essa queda no abismo que ela quer evitar a todo o custo.

Conversamos sobre o país, sobre a parte de abatimento sumário que nos tolhe a iniciativa que vá além da sobrevivência, sobre o desapego e o desprezo dos poderes por aquilo que pode, com a tal sustentação que outros veem noutros alicerces, abrir-nos à mudança. Chegamos à conclusão de que muitos dos que mandam e ditam e ordenam e conduzem nunca leram o “antepassado” de Cristina, o poeta romano Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), que deixou dita uma enorme verdade: “Tudo em nós é mortal, menos os bens do espírito e da inteligência.”

Falamos a respeito das mecânicas e das dinâmicas que o tempo e a experiência lhe vão trazendo, no seu papel profissional. Por exemplo: o cálculo cada vez mais aproximado de quanto vale, em exemplares vendidos, uma determinada obra. Nem a crise, nem os apertos que semeia, conseguem afetar-lhe drasticamente os “palpites” que vai colecionando. Mas já errou, claro. A elegância e o bom senso conduzem-na ao silêncio quando a questiono sobre uma grande deceção. Já sobre uma enorme alegria e uma ótima surpresa, nem hesita – recorda o difícil livro Morrer É Só Não Ser Visto, da jornalista Inês de Barros Baptista, que editou na sua passagem pela Planeta. A própria natureza da obra, centrada na recolha de testemunhos sobre a perda por morte de entes queridos, tornou a concretização do livro “meio complicada”. Mas, de repente, “graças à sensibilidade da autora e ao facto de estarmos a percorrer caminhos pouco usados em Portugal”, as vendas batiam a fasquia das 30 mil cópias. Gratificante? Claro. Mas, por essa altura, já um e outro e mais aquele projeto lhe repartem as energias.

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Há uma dúzia de anos, depois de gorada uma hipótese de enveredar pelo jornalismo (o seu estágio curricular na SIC acabou de forma intempestiva, com um anúncio cumprido de que no dia seguinte já não a veriam), a paixão pelas Letras era a mesma. A diferença? Menos livros e mais aulas: Cristina Ovídio era professora profissionalizada de Português e lecionava no Colégio do Ramalhão, em Sintra. Sem nostalgia mas com a convicção do dever cumprido, recorda até o lado mais físico do ensino, quando montava longas sessões de slides para ajudar os alunos com a Língua e com a Literatura, quando até os trabalhos manuais contribuíam. É aqui que a ouço falar, de uma forma mais desabrida, do “espírito de missão”, de nunca falhar uma aula, mesmo quando se tornou mãe (os seus orgulhos chamam-se Maria e António, aproximam-se também eles da dúzia de anos) e quando começou a acumular com as traduções (depois de desafiada por Guilherme Valente, da editora Gradiva). Chegou à revisão de texto, estreando-se com Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, de Miguel Sousa Tavares. Ao longo de três anos, letivos, oficiais, é o turbilhão: acumula aulas e coordenação editorial da Oficina do Livro. Ainda arrisca uma licença sem vencimento no Colégio mas o trilho estava desenhado: deixou para trás a sua Madre Teresa, a do Ramalhão, e nunca mais saiu do universo das páginas impressas, da ficção e do resto.

Se calhar, tudo isto começou com o seu papel de leitora, ávida, incansável, desde miúda e de, por exemplo, Charlotte’s Web. Ou porventura no gosto que ainda mantém de passar horas nas livrarias para apurar o que é procurado e por quem. Se calhar, tudo isto se deve à forma convicta como argumenta que os maiores êxitos literários têm como grande motor de divulgação o “boca a boca”. Caso paradigmático: Equador, de Miguel Sousa Tavares. Ou à defesa que faz do positivo que há na adesão a uma Literatura tida como leve (light também que dizer “luz”…): “Perante a iliteracia, nada há de mais estúpido do que ser elitista. O que não significa que não haja critérios.”

Pergunto-lhe pelo livro dela. Melhor: aquele que há de escrever. Sorri, abana a cabeça e defende-se com tudo o que de bom tem para ler e editar. Mas nem por isso, enquanto nos perdemos nos esquecidos Rilke e Sartre, enquanto me fala, olhos brilhantes outra vez, de um projeto à volta de inéditos de Camilo, abdica: quer “deixar marca”. Cita dois filmes: Uma Separação e A Vida dos Outros. E, mais uma vez, deixa-me surpreendido, quando me diz que anda a pensar na realização de documentários, “de exposição, de intervenção, de contemplação, o que for”. Aqui, desmente o seu ilustre homónimo romano, chamado de novo: “Não se deseja o que não se conhece.” Com a Cristina, a inversa é que é verdadeira.

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