“Corpos de plástico”, o submundo da testosterona e dos anabolizantes para aumentar os músculos
O estado de saúde do ator Ângelo Rodrigues pela suposta toma de hormonas lançou a discussão sobre um tema que há muito corre nas passadeiras dos ginásios – muito peso, poucas medidas e a busca pelo corpo perfeito. Fomos saber quem vende, quem compra e o que defendem os especialistas sobre um problema que também afeta as mulheres.

É uma espécie de microcosmos, aquele que encontramos à segunda-feira (dia em que se expiam as culpas do fim de semana) um pouco por toda a cidade. Passadeiras em andamento acelerado, bicicletas estáticas viradas para o ecrã de uma aula virtual e música de dança em repetição contínua. É um ginásio como outro qualquer, onde tanto se respira saúde, como se transpiram substâncias que promovem o crescimento dos músculos. Sem controlo médico nem grandes limites, a testosterona e a venda de anabolizantes e outras fórmulas que aumentam os músculos ganhou espaço nos ginásios sem que ninguém desse por isso. "Há um mercado paralelo e completamente instalado destas substâncias", avança Francesco Troisi, personal trainer em Lisboa, que conhece vários casos de abuso. "O ginásio é uma espécie de cenário de caça, há o animal que atrai os outros, porque tem o corpo perfeito e é muito simpático, e de repente todos são apanhados", descreve.
É durante os treinos que tudo pode acontecer. "O corpo de quem vende funciona como um espelho dos possíveis resultados. Comenta-se com um certo rapaz que está em ótima forma, ainda por cima é tão acessível que mete conversa com os outros, depois alguém lhe pergunta o que faz para estar tão bem, ele menciona que arranja umas ajudas… e quando a pessoa se apercebe, esteve a falar com alguém que vende." Francesco, que nasceu em Itália, mas vive em Lisboa há vários anos, conta que os esteróides anabolizantes são mais fáceis de conseguir do que a testosterona, que precisa de receita médica, e que estas "ajudas" se tornaram prática comum para ter resultados. O ginásio é terreno próspero para a compra destes produtos, mas não o único, muitos estão à venda online e noutras plataformas. "O que as pessoas muitas vezes não sabem é que o trabalho que estas substâncias fazem é uma ilusão, primeiro porque o crescimento do músculo acontece em todo o corpo e não naquela zona onde se quer crescer, depois porque os resultados são muito voláteis. Aquele corpo é uma ilusão. Chega uma altura em que é preciso parar – e depois?"

É nesta fase que alguns dos pacientes chegam ao consultório de Inês Sapinho, endocrinologista e coordenadora da Unidade de Endocrinologia do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa. "E aí temos de lidar com as consequências ou dizer às pessoas o que elas não querem ouvir." Para a especialista, autora do livro Os Segredos da sua Tiróide (Manuscrito) é preciso alertar para os perigos escondidos do abuso da testosterona e para os seus riscos. "A testosterona só deve ser administrada por prescrição médica. E apenas a quem tenha um défice comprovado da mesma e sempre com vigilância," explica. "Há um declínio normal da testosterona com a idade, por exemplo." O problema é que a tendência nos últimos anos é a de um crescente uso por pessoas sem esse défice e que compram a ideia de um corpo mais bonito e tonificado e até de uma vida com mais energia, mais saúde e melhor desempenho sexual. Tudo não passa de um mito. "Estas doses contínuas, excessivas e administradas de forma inadequada com o principal objetivo do aumento de massa muscular, sem que exista o tal défice de testosterona vão criar uma sobrecarga no organismo, que pode provocar outras doenças," explica ainda a endocrinologista.
Para o sociólogo Bernardo Coelho, professor no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e investigador na área do género, pensar estes acontecimentos, como a situação do ator Ângelo Rodrigues, implica pensar no que significa ser homem nas sociedades contemporâneas. A resposta é mais complicada do que parece. O sociólogo acredita que fatores como a competição continuam muito presentes nesta definição. "É-se tão mais homem quanto os outros homens o reconheçam." E nada mais óbvio que o corpo para o tornar evidente. "Um corpo que revele estar em forma (quanto mais próximo do corpo atlético melhor), e que demonstre força, agilidade, inviolabilidade, é um corpo que revela alguém com poder e que garante honorabilidade", explica. Já um corpo enfezado, marreco, que revele fragilidades de saúde será um corpo desprestigiante perante a afirmação da masculinidade.
O problema, sublinha ainda o sociólogo, é que o sucesso corporal tornou-se tão importante como qualquer outro. "A afirmação pessoal nos diferentes contextos por onde as pessoas circulam passa também por esse reconhecimento do corpo como algo trabalhado, produzido, cuidado", diz. "Nas sociedades contemporâneas ocidentais, o corpo passou a ser percebido como objeto de investimento e dedicação." E isso é válido para homens e mulheres. O nível seguinte é "transformar o corpo – ou partes do corpo – aperfeiçoando-o, ou melhor, aproximando o de arquétipos estéticos e/ou atléticos que pareciam inalcançáveis ao comum dos mortais." Aqui entram as cirurgias plásticas, as intervenções estéticas, as dietas cada vez mais sofisticadas e especializadas ou os esteróides anabolizantes, a testosterona ou programas e ciclos mais ou menos complexos de dopping, alguns mais inofensivos que outros.

Por outras palavras, querem-se resultados à medida da era das redes sociais e do streaming – ou seja imediatos. "São aquelas pessoas que vemos no ginásio com umas gordurinhas a mais e que de repente têm definição muscular", descreve Rafaela Rede, licenciada em Desporto e Educação Física que, tal como muitos personal trainers defende uma abordagem gradual e acompanhada. São sobretudo homens, mas também algumas mulheres, que tomam combinações hormonais específicas para "secar", conta. "Querem ter um corpo fantástico e musculado, mas sem dieta rigorosa e sem muito treino. É impossível", explica. "Os resultados que depois se obtêm duram um curto espaço de tempo e só são visíveis durante o ciclo da toma. Quando param, normalmente ficam pior do que quando começaram. A questão é: será que vale a pena pôr a vida em risco para ficar um bocadinho melhor? Não existem comprimidos milagrosos." Francesco Troisi concorda. "A maioria destas pessoas não quer estar dois anos no ginásio para conseguir resultados, querem chegar lá rapidamente e sem grande esforço. E depois deixam de se ver a elas próprias como são, começam a querer ficar cada vez maiores." No entanto, Francesco acredita que nos últimos anos o consumo tem estabilizado, por exemplo com o aparecimento de modalidades que promovem o treino funcional.
Inês Sapinho, lembra que ainda este ano a SPEDM (Sociedade Portuguesa de Endocrinologia Diabetes e Metabolismo), o Núcleo de Estudos de Geriatria (NEGERMI) da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, e o Colégio da Especialidade de Endocrinologia e Nutrição (CEEN) alertaram para o uso abusivo de suplementos hormonais na medicina anti-aging, muitas delas não aprovadas. É a eterna obsessão pela juventude e a perfeição? Bernardo Coelho diz que sim: "o arquétipo do corpo perfeito, tal como o da masculinidade perfeita, é inalcançável". É uma armadilha. Por mais que se insista, o corpo nunca vai corresponder ao modelo que se imaginou – e não há mal nenhum nisso.

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