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Cancro da mama inicial: vigiar ou tratar?

"Demasiada quimioterapia, excesso de radioterapia e um exagero de mastectomias." O alerta da revista Time correu mundo e deixou muitas mulheres cheias de dúvidas. Tire-as aqui.

13 de maio de 2016 às 12:18 Máxima
A palavra "cancro" tem o peso de nenhuma outra e, por muito que nos acenem com taxas de tratamento e de cura cada vez mais altas, continua a ser, para a maioria de nós, sinónimo de sofrimento e morte. Todos tememos essa sentença cada vez que nos surge um alto em qualquer ponto do corpo, um sinal que muda de tamanho ou umas análises de rotina com valores alterados. E, no cancro da mama, o medo é tal que, apesar das recomendações, muitas mulheres não se atrevem a tocar no seu próprio peito, com receio de encontrar um "caroço". "Prefiro não saber", afirmam, como se não ver fosse não ter. Mas se um dia os seus receios se revelaram verdadeiros – o que acontece a uma em cada oito mulheres –, todas afirmam que sentiram o mundo desabar. E que, independentemente do prognóstico e dos conselhos médicos, só pediam: "Tirem essa coisa de dentro de mim. Matem-na, para me salvar."
Essa tem sido também a forma de reagir da maioria dos oncologistas, apesar do quanto a medicina evoluiu. E evoluiu muito. Hoje sabem que há vários tipos de cancro da mama, que nem todos progridem da mesma forma e que existem, inclusivamente, alguns que se mantêm indolentes. Hoje, têm ao seu dispor uma bateria de análises e exames muito precisos que permitem avaliar com grande exatidão o seu grau de agressividade. Hoje, conhecem melhor os fatores que agravam ou aliviam o diagnóstico, como a idade da mulher e o seu património genético, que revela, ou não, a presença de genes "perigosos", eventualmente herdados de mães ou avós que foram vítimas de cancro em idade jovem (antes dos 40 anos).

O QUE É A VIGILÂNCIA ATIVA

O radiologista José Carlos Marques recorda que no IPO Lisboa não há nenhum caso de pacientes que recusem tratamento imediato "porque não há estatísticas de mulheres que não são tratadas", mas nos EUA o número tem vindo a crescer. Mulheres com um CDIS de baixo risco, sem antecedentes familiares ou risco genético, e que passaram a barreira dos 50 anos, têm um risco quase nulo de vir a desenvolver um cancro, com todas as letras, e, uma vez alertadas para as consequências da cirurgia e da radioterapia, preferem uma abordagem mais cautelosa. Optam, então, pela proposta de Vigilância Ativa: mamografias anuais ou com a frequência que o médico entender e, quando indicado, um tratamento hormonal simultâneo. O que é muito diferente de "não fazer nada", como explica a oncologista e investigadora Shelley Hwang, que acaba de receber uma bolsa de 1,8 milhões de dólares, exatamente para levar a cabo um estudo retrospetivo que irá comparar os resultados de vigilância ativa com os cuidados standard. Há também cinco universidades na Califórnia que estão a colaborar em registos de "esperar-e-vigiar", para mulheres diagnosticadas de CDIS, a fim de obter dados que permitam avaliar o verdadeiro risco de desenvolver cancro metastático, aquele que realmente coloca a mulher em perigo.

Contudo, o sucesso da batalha que tem permitido diagnosticar o cancro da mama cada vez mais cedo e atacar cada sinal cancerígeno com toda a artilharia terapêutica disponível não encontra correspondência na redução da mortalidade e no aumento da sobrevivência das mulheres e tem danos colaterais graves, vem agora alertar uma reportagem recentemente publicada pela revista Time, referindo-se aos tumores diagnosticados em fase muito, muito inicial.
Diante dos novos factos, os dois grandes desafios atuais, afirmam os especialistas, são procurar os melhores tratamentos para as mulheres que continuam a morrer de cancro da mama e, simultaneamente, poupar aquelas que, do outro lado do espectro, acabam por ser sujeitas a tratamentos tóxicos e inúteis, a cirurgias desnecessárias e, inclusive, a riscos de novos cancros. Como é que isto se consegue? Foi essa a pergunta que fizemos aos especialistas do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa.
 
Mamografias a partir de que idade
O radiologista José Carlos Marques, responsável pela Unidade de Radiologia Mamária do IPO Lisboa, discorda da advertência veiculada no artigo da Time de que a mamografia de rastreio ? o exame de mulheres sem qualquer sintoma ou sinal de tumor mamário ? só faz sentido a partir dos 50 anos. Prefere seguir recomendações mais recentes da American Cancer Society (ACS), que indica que deve realizar-se anualmente entre os 45 e os 54 anos, de dois em dois anos depois dos 55 anos e a cada dois ou três anos a partir dos 69 anos. O que a experiência lhe diz é que estes exames permitem um diagnóstico precoce do cancro da mama, permitindo agir quando os tumores são muito pequenos, retirando-os, mas conservando a mama, o que pode não acontecer se a mulher só der por eles mais tarde. 
João Oliveira, oncologista e diretor clínico do IPO Lisboa, concorda, mas só em parte: "É inequívoco que quanto mais inicial é o estádio da doença maior é a sobrevida das mulheres. Mas isto não é o mesmo que dizer que nalguns tumores em estado muito inicial se deva sempre agir e muito menos com urgência." José Carlos Marques também reconhece que "alguns cancros diagnosticados e tratados nunca causariam dano ou morte" mas enquanto não for possível saber, com toda a certeza, quais são os inofensivos e quais os letais, defende que mais vale pecar por excesso.
 
Cancro em estádio zero
Agora que a mamografia de rastreio consegue visualizar alterações que não são palpáveis nem dão qualquer sinal, fazem-se mais diagnósticos de cancro da mama e cerca de 25 por cento são carcinoma ductal in situ (CDIS), também chamado cancro da mama em "estádio zero". Há duas décadas, não eram mais de três por cento. Ora, se a palavra "cancro" deixa qualquer mulher sem chão, é importante que esteja muito bem informada para poder decidir o que fazer, em conjunto com o médico, diante de uma lesão pré-maligna que pode nunca passar disso mesmo: "O Instituto Nacional do Cancro dos Estados Unidos (NCI)

NOVOS TESTES PARA SABER A EFICÁCIA DOS TRATAMENTOS 

Foi recentemente introduzido um teste genómico – o Oncotype DX CDIS® – que ajuda a tomar decisões sobre os tratamentos a efetuar após a cirurgia, dando informação sobre o risco de recorrência como CDIS ou como carcinoma invasivo e ainda sobre o eventual beneficio da radioterapia após a cirurgia.

Este teste é realizado sobre uma amostra de tecido do tumor e analisa um grupo de genes, cujo resultado é dado numa escala de zero a cem (Score de Recorrência). Quanto menor o score, menor o risco de recorrência tanto na forma de CDIS como invasivo. Há grupos que consideram um score menor de 39 como indicador de CDIS com baixo risco de recorrência e com menor benefício da radioterapia e um score maior de 54 indicando CDIS com alto risco de recorrência e maior benefício da radioterapia.

Este score de recorrência deve ser considerado em conjunto com outros fatores como o tamanho, o grau do CDIS, a presença ou ausência de recetores hormonais positivos e a idade da paciente. Na posse destes dados deve então ser tomada a decisão sobre efetuar ou não a radioterapia.

tem proposto que se elimine o termo ‘carcinoma’ na designação CDIS, o que poderia eventualmente diminuir a reação emocional associada ao termo e à pressão para tratamentos desnecessários", afirma João Oliveira. O oncologista esclarece que "o CDIS é uma proliferação de células dos canais glandulares que, observadas ao microscópio, apresentam algumas características malignas, mas que estão contidas na sua localização original. Ou seja, são células neoplásicas, mas não invadem as estruturas que lhes estão adjacentes no tecido mamário".
Mas podem vir a invadir? Sim. Todavia, estima-se que uma parte (que alguns estudos calculam em mais de 50 por cento) não evolui para formas invasivas de doença. Quais são os 50 por cento é a pergunta para um milhão de dólares! E é por isso que, uma vez diagnosticado um CDIS, o passo seguinte é fazer a biopsia da lesão para confirmar se é, de facto, um CDIS (há outras alterações com que se pode confundir) e, se for, qual o grau – baixo, intermédio ou alto. O radiologista José Carlos Marques conta que, numa revisão recente de 323 casos de CDIS analisados no IPO Lisboa, o grupo de baixo grau representava 10 por cento, os de grau intermédio, 42 por cento, e os de alto grau, 48 por cento.
 
Pressão dos doentes e dos médicos
Decidir o que fazer a seguir obriga a que a equipa médica, multidisciplinar, estude o caso. José Carlos Marques explica que "as diferentes opções terapêuticas disponíveis (mastectomia e tumorectomia, com ou sem radioterapia e com ou sem hormonoterapia) são definidas em função das características do tumor (grau, extensão, recetores hormonais) e da paciente (idade, outros fatores de risco, comorbilidades). Cada caso individual é diferente, mas se o CDIS for extenso, de alto grau e mais agressivo, o tratamento será obrigatoriamente adequado a essa situação. O mesmo acontece se a paciente tiver menos de 40 anos, em que o risco de recorrência é elevado".
A decisão final sobre o tratamento a seguir é tomada pela mulher em conjunto com a equipa médica, mas, na maioria dos casos, esta tende a passar para os médicos todas as decisões. Sente-se frágil e assustada e, regra geral, quer apenas que lhe retirem uma lesão que pode evoluir para tumor. O diretor clínico do IPO reconhece que assim é: "Apesar de diversos estudos terem demonstrado sobreavaliação do risco da doença, tanto por médicos como por doentes, a nossa cultura de saúde e de medicalização transmite fortes pressões para detetar e tratar o mais cedo possível tudo o que pareça cancro." E, a par disso, "há uma subavaliação prévia dos efeitos adversos e complicações que um tratamento pode implicar, seja ele cirúrgico, de quimioterapia ou de radioterapia".
Mas no momento do diagnóstico, o que a mulher quer é saber que vai ficar "livre da doença" e o facto de lhe falarem de cicatrizes, de várias cirurgias ou de outros tratamentos complexos parece-lhe irrelevante. Afinal, é tão mais fácil hipotecar o futuro do que o presente.
A maioria dos médicos também prefere agir a esperar. Porque temem pela saúde do seu doente, como é evidente, mas também porque receiam que um desvio da norma, mesmo que mínimo, possa mais tarde vir a resultar num processo judicial, afirma a revista Time. O diretor clínico do IPO concorda que, por todas estas razões, "os médicos atuam defensivamente, preferindo errar por excesso do que por defeito". E recorda, com ironia: "De resto, são frequentes as reclamações ou acusações a médicos e hospitais por tratamento ‘a menos', mas ainda é difícil identificar reclamações por tratamento ‘a mais'."
O cirurgião João Leal de Faria, também do IPO Lisboa, discorda da ideia de que os médicos operam para se sentirem mais seguros: "Pelo menos a mim isso nunca aconteceu", diz, e acrescenta que, perante um carcinoma invasivo, não tem qualquer dúvida quanto ao tratamento cirúrgico. Mas se for um CDIS? João Leal de Faria reconhece que a resposta já não é tão fácil, sobretudo porque se o tumor for grande "maior é a possibilidade de ter focos invadidos e é menor a proporcionalidade recolhida na biopsia". Por isso, afirma com convicção que "também no CDIS, e baseado nos conhecimentos atuais, opto por cirurgia". A exceção, explica o cirurgião, pode ser "uma mulher de idade avançada, com risco cirúrgico moderado a alto, com um CDIS de baixo grau e de tamanho milimétrico. Neste caso, poderia optar por vigilância se essa fosse a vontade da doente". Mas, alerta, "a própria vigilância é um enorme fator de stress".
 
Comunicação mais transparente
João Oliveira concorda que a abstenção terapêutica nos casos de baixo risco é geralmente desconfortável e provoca ansiedade. Possivelmente, diz, "só deixará de o ser no dia em que a opinião pública e profissional estiver menos imbuída do conceito ‘quanto mais cedo melhor’. Este é transversal à atual imagem social da intervenção sobre as doenças que deriva, em grande parte, dos sucessos das vacinas e dos êxitos da ciência médica, prevalecente desde a primeira metade do século XX". O que faz sentido, se pensarmos que o mesmo princípio se aplica, por exemplo, à forma desenfreada como em Portugal se utilizam antibióticos.

AS BOAS NOTÍCIAS 

 

As estatísticas estão do lado das mais de 4500 mulheres que são diagnosticadas anualmente com cancro da mama em Portugal. De acordo com os últimos dados recolhidos, Portugal está entre os países com a mortalidade mais baixa (inferior a 20 por cento), o que prevê uma enorme possibilidade de cura quando diagnosticado e tratado de início.

Na prática isto significa, explica o diretor clínico do IPO Lisboa, que "mesmo quando a observação e a experimentação científica demonstram outra coisa, a ideia de intervenção precoce é tão persuasiva que muitas pessoas talvez até se sentissem marginalizadas se não fossem tratadas". Por outras palavras, "talvez o sentimento de estar a ser tratado, independentemente da maior ou menor efetividade objetiva da terapêutica, seja uma fonte de ‘qualidade de vida’ superior à perda de qualidade de vida pelos tratamentos tóxicos mas desnecessários".
É certamente assim hoje, mas à medida que a ciência for avançando, sobretudo na sua capacidade de descobrir a diferença entre os cancros mais agressivos e os que nem são dignos desse nome, espera-se que o tratamento do cancro da mama também possa ir mudando. E que as mulheres, cada vez mais informadas, sejam encorajadas a optar por aquilo que sentem ser, de facto, melhor para elas. João Oliveira não tem dúvida de que "é necessário aumentar a transparência na comunicação aos doentes dos riscos das doenças e dos tratamentos. A par de maior sensibilidade para pesquisar as possibilidades de tratar menos, em vez da habitual procura de lugar para aplicar sempre mais tratamento". Assim seja. 
Em outubro de 2015, a revista Time publicou um artigo de fundo onde compilou os testemunhos de várias mulheres diagnosticadas com cancro da mama, mas também de médicos. A decisão de não intervir em estádios iniciais da doença ainda é muito polémica mas, nos Estados Unidos, já vai sendo frequente.
Em outubro de 2015, a revista Time publicou um artigo de fundo onde compilou os testemunhos de várias mulheres diagnosticadas com cancro da mama, mas também de médicos. A decisão de não intervir em estádios iniciais da doença ainda é muito polémica mas, nos Estados Unidos, já vai sendo frequente. Foto:
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