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“Caiu o Marcelo! Caiu o Marcelo!”

Para Conceição Matos, o 25 de Abril foi sabido em Paris. Uma mulher de corpo inteiro que combateu a Ditadura e que pagou por isso. Mas viu a alvorada da Liberdade. Hoje, aos 81 anos, esse tempo ainda lhe parece um sonho.

25 de abril de 2018 às 12:00 Maria Flor Pedroso

A história de Conceição Matos não pode começar no momento em que soube, na estação de metropolitano de Cadet, em Paris, que tinha havido o 25 de Abril. Aliás, nem foi assim que lhe contaram. O jovem advogado com quem tinha um encontro político quando a vê não resiste e começa aos gritos: "Caiu o Marcelo! Caiu o Marcelo!" Conceição Matos, de 38 anos, não percebe. "Querem ver que foi outro que caiu da cadeira?" Precisamos de recuar, ainda mais, para perceber Conceição. Na sua segunda prisão, esta apenas uns meses, mas em total isolamento, da qual sai em meados de 1969, da Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE, sem dinheiro, apanha o primeiro táxi. Queria ir ter com o irmão que trabalhava num hospital, mas "fiquei convencida de que o motorista era um PIDE" por causa da conversa dele. "‘Então está a sair daqui?’… ‘Sim, estive presa.’ E disse-lhe que eles eram uns bandidos e tal, até que ele me diz: ‘Mas, sabe, já não há problema porque o Salazar caiu da cadeira.’ Agora é o Marcelo." Um 25 de Abril que começa aos poucos, este de Conceição que ainda vai ter de esperar pela libertação do marido, um ano antes do 25 de Abril. Voltemos a Cadet, ao encontro político que Conceição devia ter tido, mas não teve. Nada era mais importante do que saber que tinha havido uma Revolução. "Fiquei entusiasmadíssima, mas não sabia mais nada." A preocupação era como ia contar ao marido, que estava em Bruxelas, a revolução, da qual pouco ou nada sabia. Prática, decide comprar um gravador de cassetes. Objetivo: gravar os noticiários da rádio e da televisão para que Domingos Abrantes pudesse ouvir quando voltasse. "Fui eu que lhe disse que tinha havido o 25 de Abril quando [ele] chegou, à noite." Conceição e Domingos viviam "em casa de um casal de camaradas emigrantes", nos arredores de Paris. Na primeira noite do 25 de Abril estiveram os quatro agarrados à televisão francesa que, nessa noite e nas seguintes, deu notícias de Portugal. Alguma perplexidade passou por aquela sala. Viam o Spínola "e depois aquelas ‘múmias’ da Junta de Salvação Nacional, e era tudo muito estranho, eu até pensava que era um golpe de ultras". Ao mesmo tempo, questionava-se porque se ouviam as músicas do Zeca. "Bom, se calhar, isto é mesmo uma coisa boa."   

Uma coisa era certa. Naquela altura, Conceição já não pensava na última prisão de Domingos Abrantes, um ano e pouco antes do que nos interessa, aqui. A certeza de que "isto era mesmo uma coisa boa" foi quando viu a primeira libertação dos presos de Caxias, que Spínola não queria, logo no dia 26. "As lágrimas correram-me pela cara abaixo. Foi uma emoção tão grande, tão grande, porque pensei que tinha acabado o pesadelo das prisões, das torturas e das clandestinidades." Peniche, o forte de Peniche de onde tinham fugido Cunhal e o marido e outros, demorou mais tempo a libertar. "Era onde estavam os presos com mais responsabilidade." Mas o 25 de Abril começa mesmo para Conceição quando sabe que voltará a Portugal e com o Álvaro. Se ele voltava, era porque a coisa era do lado certo. Conceição, que passou das maiores provações na prisão e na tortura, quem a vê hoje, dos seus lindos 81 anos, olhar vivo, sorriso quase sempre, e a voz suave e baixa e doce, quase a passar despercebida. Foi emocionante, conta, quando souberam que vinham com Álvaro. "Aí cantámos, dançámos, eu sei lá… Quem é que nos havia de dizer que, dois meses depois de chegarmos a Paris, acontecia o 25 de Abril e vínhamos com o Álvaro para Lisboa. Não pode imaginar o inimaginável que isso era para nós." O avião que os trouxe ficou conhecido como ‘O avião da Liberdade’. Vinham também outros exilados, como Luís Cília e José Mário Branco. Foi uma festa, cantou-se, claro, mas na memória de Conceição fica uma frase do cantor e compositor José Mário Branco que se questionou: "E se prendem o homem e se nos prendem a todos?" Não era um tempo de certezas, aquele, e Conceição notou a tensão em que, afinal, estavam todos por não saberem, exatamente, o que viriam encontrar. Cunhal vinha sentado entre o casal e escrevia o discurso que depois leu à chegada ao aeroporto. Quando passa o carrinho com a comida e as bebidas, Conceição conta: "Não sei bem como aconteceu, mas caiu tudo em cima dele e é por isso que ele [nas fotografias] nunca tirou a gabardina porque não conseguiu tirar a nódoa das calças e não quis ajuda." Quando o avião aterrou, veio ordem de terra que o líder do PCP devia sair sozinho. "Mas nós somos três", disse logo Álvaro Cunhal para Jaime Neves, que foi quem tinha ficado com a tarefa de receber o secretário-geral do PCP no exílio, conforme recorda Conceição Matos. "Aquilo era uma loucura, toda a gente a querer abraçar o Álvaro. Nós íamos sendo esmagados, tal a multidão." Mas este 25 de Abril, que foi no dia 30, ainda teve outro sabor porque ninguém sabia que Conceição e Domingos estavam fora do país, a família deles, por exemplo. Não se telefonava a dizer que se vinha. Enquanto Cunhal discursava em cima do tanque, Conceição mete-se num carro. Começa a ver gente que conhece, até que vê a cunhada, mulher do irmão que esteve preso uma série de anos. De tão emocionada ficou que lhe faltou o ar quando viu Conceição e só conseguiu respirar quando se agarraram as duas, a chorar. Mas "ver as bandeiras vermelhas por todo o lado e os vivas à liberdade, ao Álvaro, ao PCP… [emociona-se] mas, sobretudo, à Liberdade ficaram-me gravados na memória para a vida, uma pessoa não esquece". E daí, o 25 de Abril de Conceição continuou para a Cova da Moura "porque o Álvaro ia falar com o Spínola, mas o engraçado é que foi uma coluna enorme de carros atrás do do Álvaro para a Cova da Moura". Ah… mas o 25 de Abril da Conceição chegou mesmo no primeiro 1.º de Maio. Combinaram, ela e o Domingos, um encontro com um casal amigo, na Alameda, para seguirem para o estádio do INATEL e, surpresa, trouxeram-lhe uma enorme bandeira de cetim com a foice e o martelo bordados. "Eu acho que era a única bandeira do partido no comício. Depois houve um jovem que me ajudou a transportar a bandeira porque ainda era grande e, às tantas, começa a juntar-se gente e juntou-se uma multidão atrás dessa bandeira… Que emoção." Conceição pensa sobretudo naqueles que não puderam ver aquele dia e para um pouco para retomar o discurso. "Aquela alegria do povo, aquela ânsia de viver… Nós pelo que mais lutámos foi pela liberdade e chegar àquele dia e pensar nos muitos que não conseguiram lá chegar, que não chegaram a ver, uns porque morreram nas prisões, nos campos de concentração ou na rua, a tiro… Ai, é uma felicidade enorme."

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